O "FUNK" TEM COMO HABILIDADE A DEMAGOGIA PSEUDO-ATIVISTA PARA TENTAR IMPRESSIONAR A OPINIÃO PÚBLICA.
Por Alexandre Figueiredo
No último dia 17 de abril, em Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro, a equipe de som Furacão 2000, de Rômulo Costa - DJ e empresário, além de ser um dos homens mais ricos do Estado - se autopromoveu fazendo a trilha sonora de uma manifestação contra a abertura do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, marcada para a noite daquele domingo.
O "funk", ritmo dançante e dotado dos mais explícitos interesses comerciais, apelou para um falso ativismo e buscou a promoção na manifestação, usando a causa da defesa da permanência de Dilma Rousseff como tentativa de agradar os movimentos sociais, impressionar a opinião pública e, acima de tudo, garantir uns trocados em verbas futuras do Ministério da Cultura.
Com um esquerdismo comparável ao do sargento José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, que promoveu uma manifestação de militares de baixa patente durante a crise do governo João Goulart, em 1964, e depois se revelou traidor das forças progressistas, o "funk" tem um tendenciosismo similar.
A exemplo de Cabo Anselmo, que depois foi revelado colaborador da CIA, o "funk" também foi denunciado com a mesma associação, por nomes como a sambista Beth Carvalho e o historiador Sérgio Cabral, pai do ex-governador do Rio de Janeiro, do mesmo nome.
Curiosamente, os partidários do "funk" reagiram à acusação com um esnobismo reacionário digno de leitores da revista Veja, a publicação famosa por sua hostilidade aos movimentos sociais mas que fez cobertura generosa do gênero, na edição de 27 de setembro de 2013. Justamente a Veja, ansiosa em ver Dilma Rousseff definitivamente fora do poder.
O tendenciosismo do "funk", conhecido por forjar um coitadismo pretensamente progressista quando está ao lado dos movimentos de esquerda, mas capaz de comemorar as conquistas em cenários da mídia direitista, como a Rede Globo de Televisão, que sempre apoiou o estilo, mostra o quanto a degradação cultural enfraqueceu as forças progressistas e abriu caminho para as reacionárias.
POVO REDUZIDO A UMA CARICATURA
O "funk", seja o "funk carioca", o "funk ostentação" paulista ou outros derivados, não é o único estilo da música brega-popularesca, mas é o principal e o mais pretensioso, dotado de muita demagogia supostamente ativista e uma campanha marcada pelo coitadismo, que é fazer pose de falsa vítima.
O histórico do "funk", no entanto, desmerece toda essa reputação alcançada pelo gênero, que nunca assumiu no discurso seu apoio ao poder midiático, mas claramente se beneficiou desse mesmo domínio para crescer comercialmente.
Assim que os discípulos do antigo pesquisador da black music dos EUA, o radialista Newton Duarte, o Big Boy (1943-1977), começaram a morrer, como Cidinho Cambalhota, em 1989, Messiê Limá, em 1993 e Ademir Lemos, em 1998, os DJs Marlboro e Rômulo Costa deixaram de lado a música e passaram a nivelar o antigo funk eletrônico ainda mais abaixo, com vocais medíocres e letras maliciosas.
Era uma ruptura com a natureza musical do funk original, famoso por sua forte preocupação instrumental, com o trio guitarra, baixo e bateria, mais órgão e acompanhamento orquestral e cujo exemplo brasileiro foi Tim Maia (1942-1998) com sua banda e orquestra Vitória Régia.
Mas mesmo o funk eletrônico de Afrika Bambataa e dos DJs de freestyle, seu derivado mais famoso, tinham uma preocupação musical e melódica, pela herança das influências do grupo alemão Kraftwerk, homenageado por Afrika e seu Soul Sonic Force em "Planet Rock", através de acordes da música "Trans-Europe Express". Os músicos do Kraftwerk tiveram formação clássica e são discípulos da música erudita concreta.
O que era funk eletrônico brasileiro passou a um formato simplório de um DJ tocando uma bateria eletrônica e um vocal primário como de um karaokê. A degradação musical acompanhava, nessa época, a década de 1990, outros movimentos de queda de qualidade musicais, como o "sertanejo" e o "pagode romântico", que respectivamente transformaram música caipira e samba em pastiches.
Esses estilos musicais, derivados da música brega original de Waldick Soriano, Odair José e similares, formatavam um paradigma comercial e ideologicamente conservador de "cultura popular", trazendo a seu reboque também as mulheres siliconadas e os jornalistas policialescos, criando uma "cultura popular" estereotipada que explorava de forma caricatural o povo pobre.
INTELECTUAIS COMPROMETIDOS COM A BREGALIZAÇÃO
Embora erroneamente associado aos movimentos progressistas, a "cultura" brega-popularesca, feita claramente por interesses comerciais, tem origem conservadora. A sua supremacia mercadológica, que afastou a antiga canção popular da apreciação plena das classes populares, foi permitida pelo esquema de clientelismo político feito por antigos oligarcas favorecidos pela ditadura militar.
Foi na década de 1980, entre 1985 e 1987, quando o presidente José Sarney, conhecido oligarca do Maranhão, e seu ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães, ofereceram concessões para grupos políticos e empresariais que lhes oferecessem apoio político.
Isso "desenhou" o mapa midiático que incluiu rádios FM "populares" controladas por grupos oligárquicos regionais, e redes de televisão que, juntos, formataram um padrão de "cultura popular" marcado pelos referenciais confusos e precários, inclinados ao grotesco, à pieguice, ao sensacionalismo e uma imagem sutilmente ridicularizada do povo pobre.
Essa "cultura popular" era uma forma de espetacularização das classes populares e transformação do povo pobre em caricatura. Pessoas banguelas davam seus sorrisos em programas popularescos, que carregavam no pitoresco em vários aspectos. Mulheres com glúteos arredondados os mostravam para o close da câmera de um programa de auditório. A violência era espetacularizada num horário acessível para o público infantil. A pieguice carregava os quadros "assistenciais" na TV.
Todo esse processo sempre teve e possui um viés conservador. Mas, com a vitória eleitoral do operário Luís Inácio Lula da Silva, a intelectualidade que deveria representar o governo José Serra (Paulo César Araújo, Pedro Alexandre Sanches, Denise Garcia etc) resolveu, de forma tendenciosa, respaldar o governo petista.
Com isso, a conservadora ideologia brega-popularesca era camuflada por um discurso supostamente ativista, falsamente modernista, de intelectuais badalados pela mídia e pelo mercado e que se passavam por "progressistas" e "polêmicos", defendendo a degradação sócio-cultural sob a desculpa do "combate ao preconceito".
INVERSÃO DISCURSIVA
Beneficiados pela visibilidade, esses intelectuais lançavam seus preconceitos sutis, a pretexto de serem visões "desprovidas de todo tipo de preconceito". No seu discurso, estabelecia uma forma espetacularizada de classes populares, envolta num paradigma chamado "periferia", claramente herdado de abordagens da Teoria da Dependência de Fernando Henrique Cardoso.
Na Teoria da Dependência, o Brasil sonhado por FHC tinha que manter sua posição subalterna, se desenvolvendo dentro dos limites desta condição, o que, no âmbito da cultura popular, equivalia ao povo pobre se expressando de forma limitada, conquistando mais consumismo do que cidadania.
Na ideologia desses intelectuais, o povo pobre é visto sob uma imagem pretensamente "pueril", "infantilizada", por isso é "mais positivo" que as classes populares se divirtam no entretenimento brega-popularesco do que lutando por melhorias de vida. Além disso, o "recreio" da breguice cultural e seus fenômenos "populares demais" era feito sem incomodar as classes dominantes.
Apesar desse tom conservador, os intelectuais dessa espécie, por estarem tendenciosamente vinculados ao esquerdismo político-midiático, tiveram que investir na inversão discursiva, para disfarçar suas intenções nada progressistas de manter o povo fora do debate público das forças esquerdistas.
Essa inversão consiste em "reverter" simbolicamente atitudes e posturas conservadoras para pretextos "progressistas". Assim, o povo seria visto como "ativista" quando tão somente consome os sucessos popularescos. As mulheres-objeto do machismo expressariam pretenso feminismo através de aparente misandria. Até os negros são caricaturalmente explorados, sob o pretexto de uma suposta negritude.
A reboque disso tudo, há a apologia à ignorância e à pobreza, num tom ufanista que exalta as favelas, contrariando uma visão sociológica que via nessas construções um problema social grave, e não um "motivo de orgulho" que os intelectuais da breguice queriam promover.
O "orgulho de ser pobre" incluiu em seu repertório ideológico a desculpa de que a alienação cultural era "despretensão e espontaneidade", a ignorância uma "intuição criativa", e mesmo valores retrógrados como a pedofilia e a prostituição eram vistos, respectivamente, como "iniciação sexual das jovens pobres" e "afirmação de liberdade sexual das mulheres adultas".
Até os idosos eram entregues a essa "cultura" através do alcoolismo, um vício "democratizado" pelas canções do brega mais antigo, desde "Garçom", de Reginaldo Rossi, até os recentes sucessos do "sertanejo universitário" e do "forró eletrônico", o que subentende o patrocínio de grandes companhias cervejeiras nesse espetáculo "popular demais".
ABORDAGEM ENVERGONHARIA INTELECTUAIS ESTRANGEIROS
A partir desse discurso, difundiu-se a espetacularização das classes populares, através do rótulo "periferia", herança ideológica de Fernando Henrique Cardoso e transformada numa espécie de Disneylândia de ruas sujas e casas degradantes, paisagens "miseráveis" para o consumo simbólico de intelectuais e turistas.
Só que essa visão "provocativa" trazida por Pedro Alexandre Sanches, Eduardo Nunomura e tantos e tantos outros, que tanto causa orgulho na intelectualidade brasileira, causaria vergonha para intelectuais do mundo desenvolvido, que sabem as armadilhas feitas por trás da espetacularização da miséria e da ignorância das classes populares.
Críticos como Umberto Eco, Jean Baudrillard e Guy Debord alertavam sobre armadilhas da mídia e do entretenimento, como a "overdose de informação" e a "sociedade do espetáculo", como processos traiçoeiros de manipulação do inconsciente coletivo.
Aqui, porém, a "overdose de informação" foi, durante anos, vista como "liberdade de informação" e "formação de opinião", ou tinha seu sentido distorcido na sobreposição de placas de neon nas grandes cidades, inocentando a grande imprensa de "sobrecarregar" o público. Essa visão foi aceita até a própria grande mídia começar a ser criticada por seus processos traiçoeiros de manipulação da opinião pública, manifestos nas campanhas contra os governos Lula e Dilma.
Já a "sociedade do espetáculo" tem seu sentido deturpado na confusão entre fofocas de famosos e colunismo social (setor da imprensa que mostra pessoas ricas, nem sempre conhecidas do grande público) e nas abordagens fúteis restritas a esses ambientes.
Até agora, ainda não há uma análise em larga escala que possa considerar como "sociedade do espetáculo" os fenômenos da "cultura popular demais", seja no âmbito musical, com o "sertanejo" e o "funk", seja no âmbito comportamental como nas "musas siliconadas". Mas tais fenômenos se inserem nesse contexto, sobretudo quando evocam aspectos do grotesco analisados por Eco.
O que observa também é que, voltando à inversão discursiva, a "inclusão social" do brega-popularesco como "cultura séria" simboliza, na verdade, a exclusão do povo pobre no debate público das esquerdas, ou seja, uma exclusão social que fez o debate das forças progressistas ser esvaziado, sem a presença do povo pobre, que está "ocupado", "descendo até o chão".
Esse esvaziamento é que enfraqueceu as esquerdas brasileiras. A intelectualidade comprometida em defender o brega-popularesco na trincheira esquerdista, falsamente solidária às forças progressistas, na verdade contribuiu para enfraquecê-las e abrir caminho para outra intelectualidade, mais reacionária e pouco inclinada à transmissão de conhecimento, como Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi, Rodrigo Constantino, Rachel Sheherazade, Olavo de Carvalho e Kim Kataguiri.
E aí vemos o fim do espetáculo. A intelectualidade festiva e falsamente progressista de Pedro Alexandre Sanches, promovendo a espetacularização da pobreza e da ignorância, esvaziaram o ativismo progressista para liberar a área para um falso ativismo das forças reacionárias que se tornaram vitoriosas na votação do impeachment, de 367 contra 137, mais sete abstenções e duas ausências.
Daí que, nesse espetáculo todo, o "funk", sendo o "Cabo Anselmo" do momento, tenha distraído a população desavisada durante a manifestação em favor de Dilma Rousseff e contra seu impedimento político, enquanto os políticos reacionários tramavam votar contra a presidenta. Rômulo Costa pode ter falado mal do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, mas fez o jogo dele. É a inversão discursiva.
REFERÊNCIA
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 5.ed. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1993.
FONTES: Carta Capital, Blogues Mingau de Aço, Linhaça Atômica.
Por Alexandre Figueiredo
No último dia 17 de abril, em Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro, a equipe de som Furacão 2000, de Rômulo Costa - DJ e empresário, além de ser um dos homens mais ricos do Estado - se autopromoveu fazendo a trilha sonora de uma manifestação contra a abertura do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, marcada para a noite daquele domingo.
O "funk", ritmo dançante e dotado dos mais explícitos interesses comerciais, apelou para um falso ativismo e buscou a promoção na manifestação, usando a causa da defesa da permanência de Dilma Rousseff como tentativa de agradar os movimentos sociais, impressionar a opinião pública e, acima de tudo, garantir uns trocados em verbas futuras do Ministério da Cultura.
Com um esquerdismo comparável ao do sargento José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, que promoveu uma manifestação de militares de baixa patente durante a crise do governo João Goulart, em 1964, e depois se revelou traidor das forças progressistas, o "funk" tem um tendenciosismo similar.
A exemplo de Cabo Anselmo, que depois foi revelado colaborador da CIA, o "funk" também foi denunciado com a mesma associação, por nomes como a sambista Beth Carvalho e o historiador Sérgio Cabral, pai do ex-governador do Rio de Janeiro, do mesmo nome.
Curiosamente, os partidários do "funk" reagiram à acusação com um esnobismo reacionário digno de leitores da revista Veja, a publicação famosa por sua hostilidade aos movimentos sociais mas que fez cobertura generosa do gênero, na edição de 27 de setembro de 2013. Justamente a Veja, ansiosa em ver Dilma Rousseff definitivamente fora do poder.
O tendenciosismo do "funk", conhecido por forjar um coitadismo pretensamente progressista quando está ao lado dos movimentos de esquerda, mas capaz de comemorar as conquistas em cenários da mídia direitista, como a Rede Globo de Televisão, que sempre apoiou o estilo, mostra o quanto a degradação cultural enfraqueceu as forças progressistas e abriu caminho para as reacionárias.
POVO REDUZIDO A UMA CARICATURA
O "funk", seja o "funk carioca", o "funk ostentação" paulista ou outros derivados, não é o único estilo da música brega-popularesca, mas é o principal e o mais pretensioso, dotado de muita demagogia supostamente ativista e uma campanha marcada pelo coitadismo, que é fazer pose de falsa vítima.
O histórico do "funk", no entanto, desmerece toda essa reputação alcançada pelo gênero, que nunca assumiu no discurso seu apoio ao poder midiático, mas claramente se beneficiou desse mesmo domínio para crescer comercialmente.
Assim que os discípulos do antigo pesquisador da black music dos EUA, o radialista Newton Duarte, o Big Boy (1943-1977), começaram a morrer, como Cidinho Cambalhota, em 1989, Messiê Limá, em 1993 e Ademir Lemos, em 1998, os DJs Marlboro e Rômulo Costa deixaram de lado a música e passaram a nivelar o antigo funk eletrônico ainda mais abaixo, com vocais medíocres e letras maliciosas.
Era uma ruptura com a natureza musical do funk original, famoso por sua forte preocupação instrumental, com o trio guitarra, baixo e bateria, mais órgão e acompanhamento orquestral e cujo exemplo brasileiro foi Tim Maia (1942-1998) com sua banda e orquestra Vitória Régia.
Mas mesmo o funk eletrônico de Afrika Bambataa e dos DJs de freestyle, seu derivado mais famoso, tinham uma preocupação musical e melódica, pela herança das influências do grupo alemão Kraftwerk, homenageado por Afrika e seu Soul Sonic Force em "Planet Rock", através de acordes da música "Trans-Europe Express". Os músicos do Kraftwerk tiveram formação clássica e são discípulos da música erudita concreta.
O que era funk eletrônico brasileiro passou a um formato simplório de um DJ tocando uma bateria eletrônica e um vocal primário como de um karaokê. A degradação musical acompanhava, nessa época, a década de 1990, outros movimentos de queda de qualidade musicais, como o "sertanejo" e o "pagode romântico", que respectivamente transformaram música caipira e samba em pastiches.
Esses estilos musicais, derivados da música brega original de Waldick Soriano, Odair José e similares, formatavam um paradigma comercial e ideologicamente conservador de "cultura popular", trazendo a seu reboque também as mulheres siliconadas e os jornalistas policialescos, criando uma "cultura popular" estereotipada que explorava de forma caricatural o povo pobre.
INTELECTUAIS COMPROMETIDOS COM A BREGALIZAÇÃO
Embora erroneamente associado aos movimentos progressistas, a "cultura" brega-popularesca, feita claramente por interesses comerciais, tem origem conservadora. A sua supremacia mercadológica, que afastou a antiga canção popular da apreciação plena das classes populares, foi permitida pelo esquema de clientelismo político feito por antigos oligarcas favorecidos pela ditadura militar.
Foi na década de 1980, entre 1985 e 1987, quando o presidente José Sarney, conhecido oligarca do Maranhão, e seu ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães, ofereceram concessões para grupos políticos e empresariais que lhes oferecessem apoio político.
Isso "desenhou" o mapa midiático que incluiu rádios FM "populares" controladas por grupos oligárquicos regionais, e redes de televisão que, juntos, formataram um padrão de "cultura popular" marcado pelos referenciais confusos e precários, inclinados ao grotesco, à pieguice, ao sensacionalismo e uma imagem sutilmente ridicularizada do povo pobre.
Essa "cultura popular" era uma forma de espetacularização das classes populares e transformação do povo pobre em caricatura. Pessoas banguelas davam seus sorrisos em programas popularescos, que carregavam no pitoresco em vários aspectos. Mulheres com glúteos arredondados os mostravam para o close da câmera de um programa de auditório. A violência era espetacularizada num horário acessível para o público infantil. A pieguice carregava os quadros "assistenciais" na TV.
Todo esse processo sempre teve e possui um viés conservador. Mas, com a vitória eleitoral do operário Luís Inácio Lula da Silva, a intelectualidade que deveria representar o governo José Serra (Paulo César Araújo, Pedro Alexandre Sanches, Denise Garcia etc) resolveu, de forma tendenciosa, respaldar o governo petista.
Com isso, a conservadora ideologia brega-popularesca era camuflada por um discurso supostamente ativista, falsamente modernista, de intelectuais badalados pela mídia e pelo mercado e que se passavam por "progressistas" e "polêmicos", defendendo a degradação sócio-cultural sob a desculpa do "combate ao preconceito".
INVERSÃO DISCURSIVA
Beneficiados pela visibilidade, esses intelectuais lançavam seus preconceitos sutis, a pretexto de serem visões "desprovidas de todo tipo de preconceito". No seu discurso, estabelecia uma forma espetacularizada de classes populares, envolta num paradigma chamado "periferia", claramente herdado de abordagens da Teoria da Dependência de Fernando Henrique Cardoso.
Na Teoria da Dependência, o Brasil sonhado por FHC tinha que manter sua posição subalterna, se desenvolvendo dentro dos limites desta condição, o que, no âmbito da cultura popular, equivalia ao povo pobre se expressando de forma limitada, conquistando mais consumismo do que cidadania.
Na ideologia desses intelectuais, o povo pobre é visto sob uma imagem pretensamente "pueril", "infantilizada", por isso é "mais positivo" que as classes populares se divirtam no entretenimento brega-popularesco do que lutando por melhorias de vida. Além disso, o "recreio" da breguice cultural e seus fenômenos "populares demais" era feito sem incomodar as classes dominantes.
Apesar desse tom conservador, os intelectuais dessa espécie, por estarem tendenciosamente vinculados ao esquerdismo político-midiático, tiveram que investir na inversão discursiva, para disfarçar suas intenções nada progressistas de manter o povo fora do debate público das forças esquerdistas.
Essa inversão consiste em "reverter" simbolicamente atitudes e posturas conservadoras para pretextos "progressistas". Assim, o povo seria visto como "ativista" quando tão somente consome os sucessos popularescos. As mulheres-objeto do machismo expressariam pretenso feminismo através de aparente misandria. Até os negros são caricaturalmente explorados, sob o pretexto de uma suposta negritude.
A reboque disso tudo, há a apologia à ignorância e à pobreza, num tom ufanista que exalta as favelas, contrariando uma visão sociológica que via nessas construções um problema social grave, e não um "motivo de orgulho" que os intelectuais da breguice queriam promover.
O "orgulho de ser pobre" incluiu em seu repertório ideológico a desculpa de que a alienação cultural era "despretensão e espontaneidade", a ignorância uma "intuição criativa", e mesmo valores retrógrados como a pedofilia e a prostituição eram vistos, respectivamente, como "iniciação sexual das jovens pobres" e "afirmação de liberdade sexual das mulheres adultas".
Até os idosos eram entregues a essa "cultura" através do alcoolismo, um vício "democratizado" pelas canções do brega mais antigo, desde "Garçom", de Reginaldo Rossi, até os recentes sucessos do "sertanejo universitário" e do "forró eletrônico", o que subentende o patrocínio de grandes companhias cervejeiras nesse espetáculo "popular demais".
ABORDAGEM ENVERGONHARIA INTELECTUAIS ESTRANGEIROS
A partir desse discurso, difundiu-se a espetacularização das classes populares, através do rótulo "periferia", herança ideológica de Fernando Henrique Cardoso e transformada numa espécie de Disneylândia de ruas sujas e casas degradantes, paisagens "miseráveis" para o consumo simbólico de intelectuais e turistas.
Só que essa visão "provocativa" trazida por Pedro Alexandre Sanches, Eduardo Nunomura e tantos e tantos outros, que tanto causa orgulho na intelectualidade brasileira, causaria vergonha para intelectuais do mundo desenvolvido, que sabem as armadilhas feitas por trás da espetacularização da miséria e da ignorância das classes populares.
Críticos como Umberto Eco, Jean Baudrillard e Guy Debord alertavam sobre armadilhas da mídia e do entretenimento, como a "overdose de informação" e a "sociedade do espetáculo", como processos traiçoeiros de manipulação do inconsciente coletivo.
Aqui, porém, a "overdose de informação" foi, durante anos, vista como "liberdade de informação" e "formação de opinião", ou tinha seu sentido distorcido na sobreposição de placas de neon nas grandes cidades, inocentando a grande imprensa de "sobrecarregar" o público. Essa visão foi aceita até a própria grande mídia começar a ser criticada por seus processos traiçoeiros de manipulação da opinião pública, manifestos nas campanhas contra os governos Lula e Dilma.
Já a "sociedade do espetáculo" tem seu sentido deturpado na confusão entre fofocas de famosos e colunismo social (setor da imprensa que mostra pessoas ricas, nem sempre conhecidas do grande público) e nas abordagens fúteis restritas a esses ambientes.
Até agora, ainda não há uma análise em larga escala que possa considerar como "sociedade do espetáculo" os fenômenos da "cultura popular demais", seja no âmbito musical, com o "sertanejo" e o "funk", seja no âmbito comportamental como nas "musas siliconadas". Mas tais fenômenos se inserem nesse contexto, sobretudo quando evocam aspectos do grotesco analisados por Eco.
O que observa também é que, voltando à inversão discursiva, a "inclusão social" do brega-popularesco como "cultura séria" simboliza, na verdade, a exclusão do povo pobre no debate público das esquerdas, ou seja, uma exclusão social que fez o debate das forças progressistas ser esvaziado, sem a presença do povo pobre, que está "ocupado", "descendo até o chão".
Esse esvaziamento é que enfraqueceu as esquerdas brasileiras. A intelectualidade comprometida em defender o brega-popularesco na trincheira esquerdista, falsamente solidária às forças progressistas, na verdade contribuiu para enfraquecê-las e abrir caminho para outra intelectualidade, mais reacionária e pouco inclinada à transmissão de conhecimento, como Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi, Rodrigo Constantino, Rachel Sheherazade, Olavo de Carvalho e Kim Kataguiri.
E aí vemos o fim do espetáculo. A intelectualidade festiva e falsamente progressista de Pedro Alexandre Sanches, promovendo a espetacularização da pobreza e da ignorância, esvaziaram o ativismo progressista para liberar a área para um falso ativismo das forças reacionárias que se tornaram vitoriosas na votação do impeachment, de 367 contra 137, mais sete abstenções e duas ausências.
Daí que, nesse espetáculo todo, o "funk", sendo o "Cabo Anselmo" do momento, tenha distraído a população desavisada durante a manifestação em favor de Dilma Rousseff e contra seu impedimento político, enquanto os políticos reacionários tramavam votar contra a presidenta. Rômulo Costa pode ter falado mal do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, mas fez o jogo dele. É a inversão discursiva.
REFERÊNCIA
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 5.ed. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1993.
FONTES: Carta Capital, Blogues Mingau de Aço, Linhaça Atômica.
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