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A POLÊMICA DA HISTÓRIA DAS MENTALIDADES



Por Alexandre Figueiredo

Recentemente, a mídia lançou mão da história das mentalidades para legitimar tendências e ídolos musicais de gosto bastante duvidoso. O "funk carioca", o pagode baiano, o forró-brega, o breganejo e outros fenômenos comerciais da música feita no Brasil sempre lançam mão de dados biográficos, de sentimentos, hábitos pessoais dos envolvidos, chegando ao ponto da ostentação da vida pessoal. Também são mostradas platéias, e se faz uma pretensa história sociológica de seus fãs. Fala-se até em "rituais" e as letras de duplo sentido - na maioria das vezes encomendada por executivos de gravadoras ou pelos empresários dos ídolos em questão - são atribuídas a uma suposta expressão da iniciação sexual dos jovens.

Com essa exploração das mentalidades de ídolos duvidosos, cujo grande êxito na venda de discos, execução de rádios e apresentações lotadas é simétrico à qualidade musical, parece que a História das Mentalidades, que tomou conta da abordagem histórica dos fatos mundiais entre o final dos anos 60 e meados dos anos 90, se tornou inválida na medida em que seu uso se banalizou até mesmo na "cultura de massa" brasileira, visando legitimar o que não é legítimo às custas da exploração dos sentimentos, hábitos e do "cotidiano" de seus ídolos.

Na verdade, a História das Mentalidades tornou-se polêmica pela ênfase que ela faz no que as pessoas pensam ou sentem. Estudar o cotidiano ou o comportamento das pessoas, ao invés de se limitar aos fatos de grande relevância e aos agentes sócio-históricos mais significativos - seja positiva ou negativamente - à uma sociedade, seja local ou internacional, foi a grande mudança na análise da história trazida pelo século XX. Apesar da História das Mentalidades ter se definido recentemente, mais precisamente no final da década de 1960, suas raízes remetem à primeira metade do mesmo século.

A idéia partiu dos historiadores franceses Marc Bloch e Lucien Febvre, no final da década de vinte do Século XX. Buscando uma nova abordagem da História, deixando de lado a tendência "historicizante" de abordar os fatos históricos a partir dos chamados "grandes heróis", das autoridades e dos líderes religiosos, sobretudo católicos. Buscava-se não apenas considerar esses fatos, mas analisá-los de outra forma e acompanhar o estudo das realidades históricas através de outro foco: as pessoas comuns, anônimas, as grandes massas populares de cada período histórico e os vários tipos de indivíduos que nelas se inseriam. Criando uma história dos "pequenos" em contraposição à história dos "grandes", a Nova História busca, na sua interpretação dos fatos históricos, saber dos hábitos e costumes dos mais diversos segmentos sociais de um determinado lugar, durante um determinado período, pesquisar sobre os personagens anônimos ocultos e invisíveis pela História oficial da humanidade.

Era o embrião da História das Mentalidades, cujos primeiros vestígios vieram dos textos publicados no períodico de Bloch e Febvre, Annales d'Histoire, Economique et Sociale, uma publicação fundada em 1929 que, pela sua gama de conhecimentos transmitida, deu origem à Escola dos Annales, tal a relevância do jornal na revisão da abordagem dos fatos históricos. A publicação existe até hoje sob o nome de Annales, Economies, Societés. A partir das lições apresentadas pelos Annales, deu impulso o movimento da Nova História.

Outro avanço da Escola dos Annales foi a interdisciplinaridade como forma de enriquecer a abordagem histórica. Os historiadores levaram a isso ao encontrar limitações na pesquisa de sociedades antigas de períodos históricos analisados na antiga forma da "narrativa dos heróis". Os vestígios das pessoas comuns, anônimas e de "menor expressão" no contexto sócio-político que antes "movia" a História humana, se encontravam sobremaneira nas obras de ficção. Pouco havia, dentro do estudo da História, de referências sobre as pessoas anônimas, o que levou os precursores da Nova História e, por conseguinte, da História das Mentalidades, a estabelecer um diálogo da pesquisa histórica com a Antropologia, a Arqueologia, a Sociologia, além da Filosofia e Economia, entre outras ciências sociais. Estas outras áreas de pesquisa ofereciam subsídios fundamentais para entender como faziam, pensavam, acreditavam e produziam as pessoas comuns em cada época estudada e de cada local analisado.

Bloch e Febvre tinham como seu principal discípulo o historiador Fernand Braudel, que começou a colaborar nos Annales a partir dos anos 30. Braudel se tornou então o pioneiro da Nova História, em especial durante a Segunda Guerra Mundial, quando o historiador, que lutava na guerra, ficou prisioneiro das tropas nazistas em 1940, na Alemanha. A Gestapo, no mesmo ano, durante a invasão alemã na França, prendeu o professor Marc Bloch, que morreu fuzilado. Foi uma grande perda na equipe dos Annales, que tinha no seu co-fundador um dos especialistas em História Medieval e também um militante da resistência francesa contra o exército de Adolf Hitler. Bloch deixou incompleta a obra Apologia da História.

Braudel, por sua vez, fez uso de sua bagagem intelectual como professor e pesquisador e escreveu, durante a prisão na Alemanha, o livro La Méditerranée et le Monde Méditerranéen a l'époque de Philippe II, feito, a princípio, sem utilizar qualquer fonte bibliográfica como apoio. Apenas após o final da guerra, Braudel finalizou sua célebre obra, aperfeiçoando com as devidas referências bibliográficas. Ela foi lançada em 1949, um período em que os regimes fascistas se tornaram passado e a Guerra Fria se havia configurado após fatos históricos como o acordo de Bretton-Woods, ocorrido ainda dentro do período bélico e que definiu o perfil do capitalismo contemporâneo com a criação do Banco Mundial e do FMI, e o Plano Marshall, ajuda norte-americana às nações destruídas pela guerra, como Alemanha e Japão, ambas potências mundiais. Por outro lado, o comunismo prosseguia com a influência da União Soviética sobre as nações do Leste Europeu e em parte das nações divididas pela GF, como Coréia e China.

A História das Mentalidades e a Nova História já tinham suas bases lançadas pelos Annales, na década de 20, e tais denominações já eram mencionadas, como maneiras alternativas de compreensão dos fatos históricos. As mudanças propunham o estabelecimento da história total, ou seja, entender a história não como uma história dos acontecimentos, como era a abordagem tradicional, mas uma história das estruturas, em que qualquer fenômeno humano pudesse ser entendido como um fenômeno histórico, seja o cotidiano de um grupo de crianças ou o funeral de um líder de uma tribo indígena. Sejam, também, fatores como a história de uma rua comercial, com suas transformações espaciais na medida em que, por exemplo, uma casa onde abrigava uma padaria passa a abrigar depois uma farmácia e, em seguida, uma loja de brinquedos, ou a história da religiosidade de um povo de uma cidade do interior brasileiro, suas crenças, temores, anseios e hábitos.

Diante desse enfoque, o historiador norte-americano Peter Burke questiona até mesmo o termo "pré-história" para definir a trajetória da humanidade antes dos registros da escrita, perspectiva base da história dos acontecimentos, que se fundamenta nos registros de documentos considerados verdadeiros. Inferindo nesse questionamento e considerando as perspectivas das novas abordagens históricas, não seria possível existir uma "história da pré-história", uma abordagem interdisciplinar para verificar as organizações sociais, políticas, econômicas e culturais dos povos das cavernas?

A História das Mentalidades alcançou grande impulso com o período de transformações sócio-culturais da década de 60, depois de um período - a década de 50 - marcado pela visão totalizante e sócio-econômica da História. Segundo várias fontes, o marco teria sido o livro Magistrats et sorciers en France au CXVII siècle, de Robert Mandrou, publicado em 1968. Mandrou havia sido um historiador pouco destacado na França, quando Braudel se tornou o herdeiro dos Annales ao assumir o comando do periódico, após a morte de Lucien Febvre em 1956.

Algumas transformações ocorridas nessa época, marcada pela Contracultura mundial impulsionada pelas rebeliões estudantis na França, que formaram as chamadas Barricadas de Paris em maio de 1968, permitiram que a História das Mentalidades florescesse por definitivo. Antes esse tipo de abordagem da História era uma possibilidade em ascensão, com a Contracultura ela se tornava uma realidade urgente, uma vez que, nesse ano, vários segmentos sociais reclamavam direitos e expressavam sua personalidade social, dos operários aos homossexuais, dos negros aos budistas. Surgia, então, a necessidade, cada vez maior, de saber quem são esses grupos sociais, em entender a História através dos excluídos que mostravam o outro lado da sociedade que não a civilização oficial.

O problema que talvez tenha estimulado a reação negativa à História das Mentalidades é o fato de muitos de seus trabalhos serem puramente descritivos, ou então que vários trabalhos simplesmente deixem a abordagem histórica de lado em nome de uma abordagem exageradamente sociológica, antropológica ou econômica. No primeiro caso, ela se limita à narrativa dos fatos, ficando a abordagem de seus problemas no nível da promessa, ou, na melhor das hipóteses, para a iniciativa de outra pessoa arriscar um debate. No segundo caso, a preocupação em estudar os aspectos econômicos, antropológicos, sociológicos etc. fazem esquecer da análise histórica prometida em tais estudos, sendo, na prática, estudos mais relacionados a essas outras áreas.

Mas o primeiro caso é que oferece mais riscos de equívocos, uma vez que a abordagem carece de nível crítico, de ver onde está errado, quais os problemas, quais as limitações em determinado lugar e em dado grupo de pessoas. A abordagem descritiva se tornou até um vício nas teses acadêmicas das Universidades, a ponto de cair em redundância nos temas confortavelmente aceitos pelos professores que dirigem os cursos, dependentes estes de verbas do Estado, da reputação docente e mesmo como capricho de alguns professores em recusar alunos que, no ponto de vista daqueles, são "pretensiosos demais" em seus projetos, o que expressa a vaidade de parte do corpo docente em eliminar aspirantes que ameacem tomar o lugar dos veteranos.

Com as críticas feitas contra a História das Mentalidades, a tendência, da maneira como era concebida, declinou a partir dos anos 80, suas lições, ainda que sem uma alusão aberta à idéia de estudar as mentalidades, influíram tendências como os micro-recortes e a micro-história. Os micro-recortes podem ser exemplificados por livros como a História da Vida Privada, de Georges Duby e Michelle Perrot, e História das mulheres, de Duby e Phillippe Ariès, este um historiador que se considerava "domingueiro", destoando do perfil dominante dos historiadores profissionais, herança do século XIX. Já a micro-história, por sua vez, se constituiu sobretudo de histórias de lugares ou episódios específicos, sobretudo mencionando biografias de exorcistas, aventureiros, criminosos ou corruptos, se beneficiando das fontes de processos jurídicos e reportagens relacionadas.

No entanto, a herança da História das Mentalidades se deu com a História Cultural. Esta, no entanto, nega o conceito de mentalidade por considerar muito impreciso diante das relações entre o âmbito social e os aspectos mentais. Ela apenas vai além da pesquisa sobre o mental, sobre a etapa antropológica da "longa duração" (ou seja, a evolução lenta da humanidade) e sobre o estudo do cotidiano. E vai além, também, da noção antiga de história cultural, investindo na pesquisa das manifestações das massas anônimas, suas festas, suas iniciativas de revolta e resistência, suas crenças de caráter heterodoxo, saus rituais.

Infelizmente, as distorções a respeito das mentalidades geraram, no entanto, seus efeitos. Na música feita no Brasil, exemplo usado no início do texto para ilustrar a aplicação das lições da História das Mentalidades, vemos o caso oportunista da mídia em legitimar tendências de gosto duvidoso, que são as tendências do brega-popularesco brasileiro. A grande imprensa que lança mão desse recurso cria um discurso que junta a metodologia da História das Mentalidades com a narrativa do new journalism, tendência lançada pela imprensa norte-americana que narra os fatos jornalísticos da maneira de uma obra literária. Através disso, cria uma narrativa persuasiva que garante maior durabilidade a ídolos popularescos, inicialmente projetados para a popularidade descartável. Toma-se um modismo comercial, que em muitos momentos chega a ser calculado pelos homens de negócio envolvidos com o mundo do entretenimento, como se fosse uma atividade artesanal, a ponto de superestimar vestuários, hábitos e linguagem do público correspondente a tal tendência.

Embora se reconheça uma significativa contribuição sociológica e histórica dessa abordagem - ela acaba por mostrar, de uma maneira ou de outra, o comportamento social de determinados povos locais - , ela comete equívocos, como atribuir letras de cunho pornográfico, "acertadas" nas mesas de negócio das gravadoras, como se fosse uma "natural" expressão da iniciação sexual dos jovens. Toma-se, assim, o mercadológico como se fosse "sociológico", e o bastardo como se fosse legítimo. O brega-popularesco apresenta contradições demais para seu estudo se limitar a uma contemplação descritiva.

O discurso socializante acaba por vulgarizar a abordagem histórica e a, mais uma vez, comprometer o estudo crítico, substituído pelo estudo descritivo, mais uma menção daquilo que acontece do que sua explicação e apresentação de problemas e soluções. E desconhece que, por trás dessas tendências brega-popularescas, há todo um quadro de degradação social herdada da ditadura militar e a estrutura de classes que sustenta esse universo musical. A abordagem socializante acaba por mostrar apenas a aparência, banalizando a narrativa histórico-mental e literário-jornalística em um enfoque acrítico, simplesmente descritivo, constituindo um texto "racional" cuja essência não é mais do que a de uma peça publicitária.

No que se diz às ciências sociais como um todo, apesar de toda polêmica a História das Mentalidades tem como maior legado permitir que se pesquise a história não apenas no ponto de vista dos políticos, celebridades, sacerdotes e outros privilegiados, mas também no ponto de vista dos mais diversos estratos da sociedade, além de permitir a integração entre a metodologia histórica com a de demais ciências sociais.

BIBLIOGRAFIA

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MAROTTA, Cláudia Otoni de Almeida. O que é História das Mentalidades. Série Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1991.

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