Por Alexandre Figueiredo
A Lei Rouanet está em crise. As discussões em torno da cultura brasileira revelam uma "diversidade" desigual, ou seja, uma ideia de diversidade restrita à chamada "cultura de massa", que embora em tese acolha todas as manifestações culturais de nosso país, acaba privilegiando tendências comerciais em detrimento das de reconhecido valor artístico.
A Lei de Incentivo à Cultura, chamada Lei Rouanet por ter sido elaborada pelo secretário de Cultura do governo de Fernando Collor, Sérgio Paulo Rouanet, foi decretada em 23 de dezembro de 1991. No entanto, ela nunca foi tão discutida e falada nos últimos anos, a ponto de muitos pensarem que a lei foi instaurada durante o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, há cerca de dez anos.
A lei já causa polêmica por conta de seu idealizador. Sérgio Rouanet é do grupo de intelectuais liderados por Fernando Henrique Cardoso, mas que tinha também Fernando Gasparian, José Serra, Francisco Weffort e outros. O grupo pensava a cultura privilegiando a abordagem econômica, era mais uma "economia da cultura" do que a cultura propriamente dita.
Isso significa que a cultura é vista sob o prisma do mercado. E a geração desses intelectuais educou e inspirou a linha de pensamento de gerações posteriores, nas quais se destacam, na Bahia, o historiador Milton Moura, em Minas Gerais, o professor Eugênio Arantes Raggi, no Rio de Janeiro, Paulo César Araújo e Hermano Vianna e, em São Paulo, Pedro Alexandre Sanches.
A partir dessa geração, se trabalhou um discurso supostamente ativista, que usava como pretexto o "combate ao preconceito" para que tendências abertamente comerciais e de valor artístico-cultural duvidoso ganhassem espaços de divulgação em redutos da MPB autêntica e em públicos considerados "mais exigentes".
VERBAS PRIVADAS
O discurso parecia simpático, mas tornou-se suspeito pela ênfase com que se dava a tendências de gosto duvidoso, simbolizando a supremacia do mau gosto que desnorteou a música brasileira e sinalizou outros retrocessos culturais.
Vivemos uma época de livros "para colorir" e de colunistas alucinados do YouTube, por isso chamados youtubers ou vlogueiros, dos quais poucos realmente têm a dizer (como a famosa Kéfera Buchmann). Ou são peças teatrais que são franquia de produções da Disney, ou filmes brasileiros que imitam as piores comédias de Hollywood.
Isso acontece num contexto em que as pessoas se dividem entre a leitura anestesiante dos mesmos livros religiosos de sempre, prometendo continuidades e obras e autores genéricos, e outras pessoas cultuam mulheres siliconadas que exibem seus corpos de forma compulsiva, como mercadorias eróticas.
É nesse cenário que a música brasileira de hoje sucumbe a um comercialismo cada vez mais totalitário. Wesley Safadão, Anitta, Luan Santana, Ludmilla, Nego do Borel, Thiaguinho, Alexandre Pires, entre veteranos e novatos da música brega-popularesca, todos parecendo dizer que a era da MPB chegou definitivamente ao fim.
Para piorar, a própria MPB autêntica parece resignada ao seu papel revivalista, em que seus artistas nada fazem senão regravar e revisitar seus antigos sucessos, sem sinalizar uma renovação real. Nomes recentes se dividem entre pessoas talentosas sem espaço para divulgação e artistas inócuos que fazem arremedos de Jovem Guarda ou de Rock Brasil.
A Lei Rouanet acaba priorizando a "cultura de massa", o comercialismo musical, e isso acaba prejudicando os artistas emergentes. E isso comete abusos de um lado e injustiças de outro, porque os ídolos "populares demais" contemplados com verbas estatais já recebem um farto investimento de verbas privadas das grandes empresas, do latifúndio e da grande mídia.
Alguns exemplos: o "sertanejo" Luan Santana obteve do Estado R$ 4,1 milhões para realizar uma turnê. O funqueiro MC Guimê, R$ 516 mil para gravar um DVD. O inexpressivo Tchakabum (que revelou a dançarina Gracyanne Barbosa, esposa do cantor de sambrega Belo), nada menos que um valor de R$ 1.629.000 para tocar a carreira em frente.
Cláudia Leitte, cantora de axé-music que soa uma imitação de Ivete Sangalo - que já tem uma reputação discutível para a música brasileira, sendo mais uma hitmaker e entertainer do que uma artista verdadeira - , havia ganho R$ 5,8 milhões para realizar uma turnê, que teve que ser cancelada em algumas apresentações por falta de público.
Recentemente, Cláudia pediu R$ 356 mil para a elaboração de uma biografia sobre a cantora. Foi aí que ocorreu um fato antes inimaginável: o ministro da Cultura, Juca Ferreira, vetou o investimento, alegando que a cantora tem recursos próprios para fazer o livro. Contrariada, Cláudia Leitte desistiu da autobiografia.
O veto abriu uma nova discussão a respeito da utopia da "diversidade cultural", em que os alhos e bugalhos da música brasileira e outras modalidades artísticas - como o teatro, cujas produções de qualidade sofrem discriminação da falta de investimentos - são alvo de um debate ainda mais instigante.
O problema tornou-se muito mais complexo para ser abafado pelo discurso da "ruptura do preconceito", uma fantasia ideológica que acaba criando novos preconceitos. Na prática, o discurso do "combate ao preconceito" apenas transferiu o preconceito antes dado ao brega-popularesco para as verdadeiras expressões artísticas, estas alvo de uma discriminação ainda mais cruel.
Daí que, enquanto nomes como Belo, Wesley Safadão, Mr. Catra e Banda Vingadora podem invadir os redutos da MPB autêntica, só faltando ao "funk carioca" ter evento no erudito Teatro Municipal do Rio de Janeiro, os novos artistas da MPB autêntica se apresentam nas ruas, em espaços culturais mais modestos ou divulgam seus trabalhos em obscuros canais da TV por assinatura.
Daí a desigualdade que acontece na música brasileira, em que o "combate ao preconceito" faz com que o brega-popularesco, que já tinha amplos espaços de divulgação e expressão, tomassem para si redutos e ambientes ligados à MPB autêntica, além de absorver quase toda a demanda de universitários, um meio acadêmico antes vinculado à MPB mais sofisticada.
É irônico que hoje universitários que se dizem "sem preconceitos" rejeitem a MPB autêntica por achar que ela é "maçante", "complicada" e "elitista". Criam um preconceito muito pior contra a MPB, e refletem esse cenário de crise em que a ideia de "não ter preconceito" cria problemas mais graves do que aqueles que dizia combater.
Assim, diante de um Wesley Safadão com dinheiro para se hospedar num dos hotéis mais caros do mundo, mas com direito a receber seu milhão da Lei Rouanet, o incentivo estatal à cultura é debatido mediante esses novos problemas.
O próprio Juca Ferreira anuncia um substitutivo que possa melhorar a política de incentivo à cultura. Resta reconhecer que a tal "ruptura do preconceito", eufemismo para a aceitação da bregalização cultural, só trouxe novos preconceitos.
O público acaba se acostumando mal com a bregalização e hoje prefere o mau gosto que faz sucesso, mas que não traz qualquer avanço para a busca do conhecimento e de valores sociais relevantes. A cultura agrava sua crise quando se torna escrava da mediocridade.
FONTES: UOL, O Globo, Carta Capital, Blogue Linhaça Atômica.
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