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MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, ABA, HELOÍSA TORRES E CASTRO FARIA


Por Alexandre Figueiredo

A historiografia do IPHAN, quando fala de sua origem, sob o nome de SPHAN, associa sua trajetória tradicionalmente às figuras de Rodrigo de Melo Franco, advogado que presidiu a instituição por trinta anos, e seu parceiro na fundação da autarquia, o poeta modernista Mário de Andrade. Evidentemente, os dois tiveram atuação decisiva no desenvolvimento do SPHAN, mas a primeira fase da instituição não somente contou com a atuação de outras pessoas como também foi influenciado ou influenciou outras instituições comprometidas com o âmbito das ciências sociais e com o patrimônio.

A própria ação pioneira de Mário de Andrade, que em 1922 foi não apenas um dos artistas presentes na Semana de Arte Moderna de São Paulo como também um de seus líderes e agitadores culturais, já tinha sido crucial para a criação e trabalho do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico do governo de São Paulo. Foi um convite partido do Ministério da Educação e Saúde do governo de Getúlio Vargas que fez o autor de Macunaíma participar da elaboração do projeto para a criação de um serviço de proteção do patrimônio histórico e artístico. Desta forma, em 1936 se esboçou o SPHAN, que seria fundado em janeiro de 1937 e teria seu primeiro instrumento legal decretado em novembro do mesmo ano, já com o governo Vargas transformado na ditadura do Estado Novo.

Mas a ditadura varguista, em que pese a bandeira da nacionalidade ser usada de forma autoritária, não impediu que os trabalhos em prol da cultura e do patrimônio histórico seguissem num desempenho comparável ao das sociedades democráticas. Isso se deu pela presença, no Ministério da Educação e Saúde, de intelectuais e artistas comprometidos com o legado cultural brasileiro, do qual aliás faziam parte como criadores e representantes. O próprio poeta Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, foi chefe de gabinete do Ministério da Educação e Saúde, cujo titular era Gustavo Capanema.

A história do IPHAN como a primeira grande instituição comprometida com a proteção do patrimônio cultural brasileiro foi precedida de um contexto em que não somente o Governo Federal buscava promover seu ideal de nacionalidade, mas também um contexto em que o país buscava, independente dos interesses políticos, em apreciar, respeitar e proteger o seu legado cultural, como amostra da história do povo brasileiro, tendo já superada a obsessão das elites pela cultura francesa, paradigma de desenvolvimento sócio-cultural mundial ao longo do século XIX, em conseqüência da Revolução Francesa de 1789.



Depois de uma década marcada por projetos regionais de proteção do patrimônio material brasileiro - uma delas de autoria do deputado baiano José Wanderley de Araújo Pinho -, a primeira iniciativa de proteção do patrimônio em projeção nacional foi o tombamento da cidade mineira de Ouro Preto, antiga Vila Rica, em 1933. A cidade foi palco da Inconfidência Mineira, no final do século XVIII, além de maior parte de suas obras arquitetônicas e artísticas ser atribuída a Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, considerado o maior artista da época colonial brasileira.

Em 1934, o governo Getúlio Vargas criou a Inspetoria dos Monumentos Históricos, que para muitos estudiosos é considerado o embrião do IPHAN. A sede da instituição, no Museu Histórico Nacional, na Quinta da Boa Vista (Rio de Janeiro), tem seu valor baseado no fato de que o museu guarda milhares de peças históricas, como documentos, moedas, esculturas, pratarias e outros utensílios. Não bastasse isso, o Museu Histórico Nacional, cujas instalações foram, no passado, do antigo Arsenal de Guerra do Império, foi fundado em 1922 pelo então presidente da República Epitácio Pessoa, para comemorar o centenário da Independência do Brasil. Até hoje o Museu Histórico Nacional promove exposições permanentes, como a Memória do Estado Imperial e Do Móvel ao Automóvel: Transitando pela História. O MHN tem o maior acervo numismático e filatélico da América Latina, com cerca de 127 mil peças.

Até Mário de Andrade ser chamado para participar, ao lado de Rodrigo de Melo Franco e outros, do projeto de criação do SPHAN, ele organizou, como diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, entre outras atividades, a criação das Bibliotecas Circulante e Infantil, da Sociedade de Etnologia e Folclore, e aquele que foi o maior desejo do poeta modernista no departamento, que foi o Congresso de Língua Nacional Cantada.



A relação entre o Museu Histórico e o SPHAN foi reforçada pelo fato de que alguns integrantes da Divisão de Antropologia do museu integraram também o primeiro Conselho Consultivo do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Aqui vamos destacar as figuras dos antropólogos Luís de Castro Faria, que começou sua carreira no museu, e sua colega e eventual mestre Heloísa Alberto Torres.

Quando Castro Faria iniciou seu trabalho no Museu Nacional, Heloísa Alberto Torres era diretora do Departamento de Etnologia. Era o ano de 1936 e o SPHAN era ainda um projeto provisório. Mas entidades como a Inspetoria dos Monumentos Históricos e o Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas, no Rio de Janeiro, e o Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico, em São Paulo, já atuavam expressivamente pela preservação do patrimônio histórico. E o exemplo de Ouro Preto, tombado em 1934, já dotava de grande reputação.

Em 1938, o antropólogo francês Claude Levi-Strauss, em missão de pesquisa que, em seu país, tem o valor de um serviço militar obrigatório, veio ao Brasil para estudar as populações indígenas do país. A princípio a autorização demora e, antes disso, o iniciante Castro Faria quase não foi escolhido representante do Museu Histórico Nacional na expedição. Castro Faria já havia sido designado para o evento, por iniciativa de Heloísa Torres, quando ainda havia a demora da autorização pelo órgão de fiscalização público. Houve intervenção do DPHA paulista, sobretudo na pessoa de Mário de Andrade, para ajudar na viabilização da expedição. O poeta modernista já não dirigia o DPHA, cargo então responsabilizado por Sérgio Milliet, mas mesmo assim sua atuação no órgão continuava significativa.

Levi-Strauss já havia ministrado aulas a convite da Universidade de São Paulo, quando iniciou a expedição. Sérgio Milliet financiou a viagem de Castro Faria, que foi pesquisar com Levi-Strauss e sua equipe no Mato Grosso. Era uma pesquisa que envolvia estudos com minerais e contato antropológico com tribos pouco afetadas pela chamada civilização. Não tinha motivação nacionalista, do contrário que muitos imaginavam, e recomendações eram dadas para a equipe evitar determinadas tribos indígenas. Uma delas, a Nambiquara, situada na comunidade jesuíta de Juruena, havia massacrado tempos antes uma família de missionários. Os integrantes tiveram que andar armados. Mais de mil fotografias foram colhidas da expedição.

Depois dessa experiência, que foi uma espécie de "batismo" profissional de Castro Faria, ele percorreu outras partes do país, pesquisando não somente os povos indígenas, como também os sítios arqueológicos, sobretudo os sambaquis. Entre outras colaborações, destaca-se o empenho do antropólogo, no final dos anos 1950, em chamar a atenção da sociedade para a preservação dos sambaquis, cujo resultado foi a Lei n° 3.924, de 26 de julho de 1961, que amplia a proteção legal do patrimônio para os objetos e sítios arqueológicos.

A importância de Heloísa Alberto Torres, por sua vez, está, acima de tudo, na sua dedicação como diretora do Museu Histórico Nacional e como orientadora de jovens pesquisadores, inclusive estrangeiros. Numa época em que a emancipação feminina ainda era uma utopia nem sempre respaldada na sociedade, Heloísa se destacou na direção do MHN, até de forma enérgica, desagradando alguns, que não tardaram a fazer oposição à sua gestão.

Enfrentando corajosamente a oposição, Heloísa venceu a resistência contra sua administração no Museu Histórico, mas perdeu na disputa da vaga de interina na cátedra de Antropologia e Etnologia da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (atual URFJ). Discriminada por ser uma liderança feminina no Museu, Heloísa foi acusada de autoritarismo, irregularidades administrativas e até de racismo (por não ter liberado uma exposição sobre a História do Brasil em Portugal), mas Heloísa desmentiu todas as acusações e permaneceu durante anos como diretora do Museu. Numa delas, em que os opositores se queixavam da obrigação do livro-ponto, Heloísa afirmou que era uma recomendação deles próprios. "Parecem ter mudado de opinião", queixou a diretora.

Por outro lado, Heloísa não conseguiu obter uma cátedra no corpo docente da Faculdade Nacional de Filosofia, e a essas alturas já se relacionando de forma conflituosa com o antropólogo Artur Ramos (depois que Heloísa fez um comentário irônico no julgamento de uma tese de Ramos), cuja reputação era comparável a Heloísa, ela perdeu a disputa para ocupar interinamente a vaga de Artur, convidado este para dirigir o Departamento de Ciências Sociais da UNESCO. Artur preferiu que sua vaga fosse preenchida por sua assistente de muitos anos, Marina Vasconcelos.

Mas antes da relação conflituosa entre ela e Ramos tivesse se iniciado, as relações entre ambos eram cordiais, e numa das cartas de 1941, houve a proposição do Primeiro Congresso Brasileiro de Antropologia. Era cogitado que o evento fosse realizado assim que fosse reaberto o Museu Nacional, então em obras, no ano de 1943. Diante de tantas discussões, foi somente em 1948 que o então Ministro da Educação e Saúde do governo Eurico Dutra, o também banqueiro baiano Clemente Mariani, designou, por meio de portaria, uma comissão para organizar o Congresso. Na comissão, nem Heloísa nem Ramos estiveram presentes, mas ambos foram representados por Castro Faria, que redigiu um documento sugerindo a Heloísa os parâmetros da reunião.

Somente em 1953 o Primeiro Congresso de Antropologia foi realizado, no Museu Histórico Nacional, em novembro de 1953. O congresso foi presidido por Herbert Baldus e foi dedicado à memória de Edgar Roquette-Pinto, falecido um mês antes. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) só foi fundada durante o Segundo Congresso, realizado em Salvador (BA), tendo os antropólogos Luís de Castro Faria, Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira como diretores do evento.

A ABA constitui numa entidade dedicada não apenas aos trabalhos de pesquisa antropológica ou à reunião de seus respectivos profissionais, mas também participa do debate público em prol da Educação e das políticas a esta referentes, e também na ação social e na defesa dos direitos humanos. Procurando sobreviver durante a ditadura militar, mesmo enfrentando falta de quorum (como no Primeiro Encontro de Estudos Brasileiros, realizado na Universidade de São Paulo - USP, em 1971), a ABA atua num segmento afim com o IPHAN, uma vez que a antropologia comunga com o tema do patrimônio uma vez que se dedica à ação histórica do homem.

Ainda é pouco para mostrar a dimensão das Ciências Sociais no Brasil, mas este texto pelo menos tem o propósito de mostrar um pouco mais dos esforços feitos para a preservação e valorização do legado histórico nacional. Para os leigos, é uma maneira de conhecer um pouco mais sobre os personagens relacionados aos primórdios do IPHAN, uma instituição que, antes de merecer maior atenção das autoridades, deveria ser vista com carinho e zelo pela mesma sociedade que cobra mais ação em prol do nosso patrimônio.

FONTES: Wikipedia, Portal Planeta Educação, Revista Museu, Associação Brasileira de Antropologia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Rodrigo e o SPHAN: coletânea de textos sobre o patrimônio cultural. Rio de Janeiro: SPHAN/Pró-Memória, 1987.

ARAS, Lina Maria Brandão de e TEIXEIRA, Maria das Graças de Souza. Os museus e o ensino de História. In: IV Seminário de Perspectivas do Ensino de História. Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto. Ouro Preto (MG), abr. 2001. Disponível em http://www.ichs.ufop.br/perspectivas/anais/GT1603.htm. Consultado em março de 2008.

CORREA, Mariza. Dona Heloísa e a pesquisa de campo. In: Revista de Antropologia, vol. 40 n.1. São Paulo: USP, 1997. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ra/v40n1/3240.pdf. Consultado em março de 2008.

GOMES, Ângela de Castro e NEDER, Gizlene. Entrevista com o professor Luís de Castro Faria. Antropologia no Brasil: Trajetória intelectual do professor Luís de Catro Faria. In: Tempo. Vol. 2, n.4. Rio de Janeiro, UFF, dez. 1997.

PINHEIRO, Maria Lúcia Bressan. Origens da Noção de Preservação do Patrimônio Cultural no Brasil. In: Revista Risco. N.3. São Paulo, EECS/ISO, fev. 2006. Disponível em http://www.eesc.usp.br/sap/revista_risco/Risco3-pdf/art1_risco3.pdf. Consultado em setembro de 2006.

SIMÃO, Lucieni. Elos do Patrimônio. In: Revista ACHEGAS.Net - Revista de Ciência Política. N.19. Rio de Janeiro, Out.-Nov. 2004. Disponível em http://www.achegas.net/numero/dezenove/lucieni_simao_19.htm. Consultado em setembro de 2006.

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