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O CULTURALISMO CONSERVADOR QUE ILUDIU AS ESQUERDAS NO BRASIL

 
ENTRE OS ERROS DAS FORÇAS PROGRESSISTAS ESTAVA O DE EXALTAR A PROSTITUIÇÃO COMO UM DOS SÍMBOLOS DO FEMINISMO POPULAR.


Por Alexandre Figueiredo


Aparentemente, quando descreve o problema do chamado "culturalismo conservador" e o "racismo científico" - que ultrapassa os limites dos critérios meramente raciais no que se diz à discriminação dos "excluídos sociais" - , o sociólogo Jessé Souza não mencionou o entretenimento popularesco que, até o surgimento de sua série de livros a partir de A Tolice da Inteligência Brasileira, de 2015 - o mesmo ano do meu livro Música Brasileira e Cultura Popular em Crise - , era exaltado e blindado por setores deslumbrados de nossas esquerdas.


Isso se deve porque a especialidade de Jessé Souza é sociológica e, aparentemente, evitou-se qualquer conflito contra os dogmas que, dez anos antes, foi introduzido na agenda esquerdista depois que o suposto "combate ao preconceito" da bregalização cultural foi propagado pela mídia empresarial a partir de 2002.


No entanto, se pudéssemos sair do horizonte analítico de Jessé Souza e aproveitarmos seus questionamentos - a façanha do sociólogo foi também romper com a viciosa demonização do senso crítico que praticamente monopolizava o ambiente acadêmico, que confundia pensamento crítico com "opinião" - , veremos que a sua linha de pensamento pode ser usada para confrontar a abordagem "sem preconceitos" de uma elite intelectual paternalista, mas que se achava "mais povo que o povo".


Afinal, o discurso pelo "fim do preconceito" a supostas expressões, de caráter midiático e mercantil, da população pobre foi completamente cheio de falhas. Como o poder político estava nas mãos do Partido dos Trabalhadores, essa armadilha não foi percebida pelas esquerdas, porque, aparentemente, o povo tinha uma perspectiva de prosperidade e, como a bregalização apresentava uma imagem idealizada de um "povo feliz", as forças esquerdistas morderam a isca direitinho.


Intelectuais de uma forma ou de outra associados ao poder midiático, como a "santíssima trindade" (assim chamada pela imagem santificada que possuem por parte influente da opinião pública) do historiador Paulo César de Araújo, do jornalista Pedro Alexandre Sanches e do antropólogo Hermano Vianna, vieram com a falsa ideia de que a bregalização era uma "modernização" da cultura popular e atribuiu a ela falsas motivações de caráter progressista, desafiador e libertário.


A bregalização envolveu meros fenômenos de entretenimento e consumismo, que na verdade são formas de "filtrar" a imagem do povo pobre para um caráter mais inofensivo e estereotipado. É algo ainda mais perverso do que foi feito pela indústria das chanchadas dos anos 1940-1950 e começo dos anos 1960, que mostrava um povo pobre "feliz" na imagem carnavalesca inserida nas comédias brasileiras de inspiração hollywoodiana.


Afinal, a imagem do povo pobre nas chanchadas pode ter sido uma leitura mercadológica e midiática, porém mais inocente do que a perversa estereotipação do povo pobre a partir de leituras que eram trazidas pelas novelas da Rede Globo, que acabaram povoando o imaginário de setores das esquerdas - entendidos, pelo ideário marxista, como a "pequena burguesia" - com formas caricaturais e espetaculosas de religiosidade, manifestação cultural ou mesmo entretenimento esportivo.


Sem questionar a armadilha do discurso "contra o preconceito", que forçava a aceitação acrítica da bregalização - no fundo, bem mais preconceituosa do que a rejeição que costuma ser dada aos fenômenos popularescos - , as esquerdas também deixaram correr o problema da falta de conscientização política do povo pobre, ao mesmo tempo em que acreditavam que a bregalização, através de supostas provocações comportamentais, iria cumprir essa missão.


IMAGEM JÁ PRECONCEITUOSA


O que pouca gente percebeu, entre 2005 e 2014 - época em que a campanha pela bregalização "sem preconceito" tornou-se intensa na trincheira esquerdista, principalmente através de Pedro Alexandre Sanches, cria do anti-esquerdista Projeto Folha - , é que a exaltação dos fenômenos popularescos, que é o que estrava por trás dessa retórica, consiste na aceitação de uma abordagem das classes populares que já nasce preconceituosa.


A bregalização tem como ponto de partida a mediocrização musical e o colonialismo cultural em áreas pobres, que criava, no povo das chamadas "periferias", uma relação confusa entre uma mentalidade bairrista, suburbana e rural, marcada pela ignorância trazida pela baixa escolaridade e pelo isolamento social de muitas localidades, e a obsessão pela "modernidade" estrangeira, que aparece aqui através dos filtros da transmissão midiática.


Isso desmente o mito de "antropofagia cultural" que os ideólogos da bregalização chegaram a pregar. Afinal, se assim fosse, o modernista Oswald de Andrade seria um dos escritores de maior vendagem no Brasil. Oswald concebeu os conceitos antropofágicos em 1928, complementando a brasilidade de seu colega de movimento (e sem parentesco algum, apesar do sobrenome), Mário de Andrade.


Na antropofagia cultural, o indivíduo de uma região assimila, por vontade própria, um elemento cultural de fora, porque se identifica o com ele, mas com a preocupação de adaptá-lo à sua realidade local. É muito diferente da bregalização, da qual não existe essa maneira horizontal de assimilação do elemento estrangeiro, mas uma maneira vertical, decidida "de cima", por mais que o público receptor se sinta aparentemente identificado pelo "bem cultural" estrangeiro.


A influência dos executivos de rádio e televisão e a própria simbologia de que o elemento estrangeiro expressa o poder e a influência de um veículo de mídia hegemônico em uma região - como a Rede Globo e o SBT, na televisão, e as rádios popularescas regionais, controladas por oligarquias locais - garante o caráter hierárquico da bregalização, através de uma colonização cultural em que o elemento estrangeiro é assimilado por uma demanda despreparada para entender o que ocorre lá fora.


São processos que envolvem um sentimento de vergonha de sua brasilidade - já que os pobres levam a pior diante de contextos político-econômicos que lhes são desfavoráveis - e uma ilusão de que o elemento de fora é "divinizado" refletem exatamente o culturalismo conservador de Jessé Souza que, por incrível que pareça, está presente e explícito até mesmo no pop "progressista" do ídolo brega Odair José, influenciado pelo rock italiano do começo dos anos 1960.


A dicotomia do "Estado corrupto versus mercado divino" se coloca na bregalização, na qual o pop estrangeiro e o paternalismo das classes médias "ilustradas" - a classe intelectual da qual se incluem a "santíssima trindade" e "devotos" que vão de Ivana Bentes a Eugênio Raggi - são considerados a salvação, junto ao mercado, só foi dissimulada, para a cooptação das forças progressistas de esquerda, por um aparato discursivo "pró-estatal", procurando usar a Lei Rouanet para sustentar, via verbas públicas, os ídolos popularescos, já sustentados por generosas verbas do setor privado.


É um discurso dissimulado que mascara o principal problema, de uma elite intelectual incomodada com a prevalência de formas tradicionais de cultura popular autêntica, como o samba, o baião, as modinhas, as catiras etc, reforçada e reciclada pela geração emepebista dos anos 1960-1970. Nesse discurso, as elites intelectuais definem como um contraponto "viável" a bregalização, que, embora americanizada, é muitas vezes narrada sob uma falsa analogia com as tradições culturais brasileiras.


Esse discurso se deu quando Pedro Alexandre Sanches, ao interagir com seu entrevistado Chico Kertèsz - filho do empresário e dublê de radiojornalista Mário Kertèsz, ícone da direita midiática que, eventualmente, tenta cooptar as esquerdas baianas para seu controle - , que lançava o documentário Axé - Canto do Povo de um Lugar, definiu a axé-music como um fenômeno que surgiu como um fenômeno empresarial da Era FHC e que, na visão do jornalista, teria se tornado "esquerdista e sustentado por verbas estatais".


Isso é um discurso falso e causou sérios problemas. Afinal, os fenômenos popularescos, mesmo aqueles que sucumbem ao esquecimento, já contavam com sustentação privada, com a blindagem do poder midiático e até mesmo com a proteção do próprio empresário de cada famoso, ele mesmo uma figura de âmbito economicamente privado.


Os problemas vieram quando a Lei Rouanet passou a ser associada ao sustento abusivo de ídolos que nem precisavam de verbas estatais, quando, em nome do "fim do preconceito", havia maior ênfase no financiamento de nomes inexpressivos como o grupo Tchakabum - que arrecadou um generoso investimento público de R$ 1,6 milhão - em detrimento de eventos culturais significativos, como várias festas folclóricas do interior do Brasil.


Havia o agravante de que os fenômenos popularescos abordavam o ideal da "pobreza linda", que, num contexto de relativa prosperidade do povo pobre, enganou as esquerdas. A imagem espetacularizada de pobres debiloides nos programas de auditório e todo o ideal da "periferia legal" se prevaleceu e, por mais que houvesse, nos discursos intelectuais, uma retórica chorosa de "apelo para o fim do preconceito", o que se pedia era a aceitação de formas "populares" que já nasciam preconceituosas.


A ideia de que "é lindo" viver em casas precárias nas favelas, em trabalhar na prostituição, em vender produtos piratas no comércio informal, em falar errado e outras deficiências, foi propagada sob a "carteirada" de que seus ideólogos "entendiam de cultura", tinham diplomas de pós-graduação ou, no caso de cineastas, potencial capacidade de serem premiados em respeitáveis festivais de cinema. Uma dessas "carteiradas" era a de que Pedro Alexandre Sanches "sacava muito de MPB", vide o elenco de entrevistados que ele acumulou desde 1995.


Diante dessa suposta "sabedoria" dos intelectuais pró-brega, as forças progressistas caíram na armadilha de ver como "progressista" uma realidade degradante. Falava-se até mesmo do alcoolismo, na velhice, como um "lazer saudável", para "consolar as mágoas afetivas", algo que soa mais um mershandising para as indústrias de bebidas, o que desconfia de um lobby dos intelectuais pró-brega com o empresário Jorge Paulo Lemann, também engajado em movimentos "sociais", ao lado de nomes como o apoiador do "funk" e do brega-popularesco em geral, Luciano Huck.


Para piorar as coisas, sob o rótulo do "feminismo" verdadeiras barbaridades sociológicas e nada feministas eram trazidas por ideólogos marcados pelo prestígio e pela formação acadêmica. Chegou-se a usar o eufemismo da "iniciação sexual" das jovens da periferia como desculpa para permitir a pedofilia e a exploração sexual precoce. E usava-se a objetificação sexual do corpo feminino como uma pretensa arma "contra o machismo", dentro de uma retórica sem pé nem cabeça.


A desculpa de que certas mulheres - do nível de Solange Gomes, ex-musa da Banheira do Gugu, e a funqueira Renata Frisson, a Mulher Melão - "sensualizam demais" seria um "jogo" para enganar machistas pela sedução é bastante falacioso, até por não haver a esperada tensão nessa relação, como não há tensão que justificasse a relação "enfrentamento x apropriação" que o "funk" em geral supostamente estabelecia com a mídia hegemônica.


Nessa relação, os machistas acolhiam felizes a "oferta", ainda que virtual, principalmente por fotos publicadas na Internet, de glúteos e peitos siliconados, exibidos de maneira obsessiva e ininterrupta, sendo portanto um espetáculo de rebaixamento do corpo feminino a uma mercadoria, a um objeto de consumo. As esquerdas erraram por passar pano em tudo isso, sob a desculpa da "liberdade do corpo".


O culturalismo conservador que estava por trás do discurso "contra o preconceito" criava contrastes editoriais muito fortes. Vendo as revistas Caros Amigos, Fórum e Carta Capital ao longo de 2010 a 2014, notava-se a disparidade entre a abordagem realista de um povo batalhador, insubmisso e mobilizado, nas pautas políticas e sociais, com a abordagem idealizada de um povo domesticado e supostamente provocativo, através do "mau gosto", trazida pelas editorias culturais.


Parecia que Pedro Alexandre Sanches ainda escrevia para a Folha de São Paulo e o O Estado de São Paulo, trazendo para a mídia esquerdista os mesmos preconceitos elitistas da mídia hegemônica, forçando a intelectualidade progressista a apreciar os mesmos ídolos popularescos que encontram palco aberto a eles nos programas de Luciano Huck, Raul Gil, Fausto Silva e Sílvio Santos, uns apoiadores do PSDB, outros do bolsonarismo.


Esquece-se que a bregalização foi desenvolvida a partir do coronelismo midiático das rádios popularescas, da imprensa popularesca (comprometida com fofocas que, não raro, manipulam reputações para o bem ou para o mal), e, depois, de toda a mídia nacional associada à ditadura militar. Soou como fake news Paulo César de Araújo alegar que a popularização do brega foi uma resposta automática ao AI-5.


Analisado pelo meu livro Esses Intelectuais Pertinentes num dos capítulos, Araújo comete uma série de equívocos que chegaram mesmo a fazer com que o Jornal do Brasil, numa série dedicada ao livro Eu Não Sou Cachorro Não, de 2000, fosse obrigado a admitir, mesmo com todo o respaldo à obra, de que muitas das (supostas) revelações eram mais dignas de matérias fictícias lançadas pelo Planeta Diário, jornal de parte dos integrantes do grupo Casseta & Planeta.


Há muita hipocrisia nesse discurso pró-brega, mais preconceituoso do que o dito "combate ao preconceito" fingia negar. Intelectuais sob o apoio do poder midiático - mas fingindo se opor a esse mesmo poder - , se aproveitando da relativa prosperidade dos brasileiros nos governos Lula e Dilma Rousseff, vendeu a falsa ideia da "pobreza feliz" para iludir a opinião pública de esquerda.


Só que, por trás do aparato de "povo feliz" no discurso de defesa da bregalização, havia um plano secreto de, na verdade, promover uma imagem "inofensiva" do povo pobre para desmobilizá-lo e garantir, desse modo, o poder e o domínio de uma classe dominante que não tardou a recuperar seus privilégios a partir do golpe político, jurídico e midiático de 2016.


Dessa forma, o discurso da bregalização, mesmo com intelectuais pretensamente alinhados à esquerda, foi usado para imobilizar o povo pobre, aproveitando o descaso com a conscientização política, abrindo assim o caminho para as forças golpistas derrubarem Dilma Rousseff sem que houvesse uma resistência popular para tentar salvá-la.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.


SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro, Leya, 2017.

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