O COMPLEXO DO ALEMÃO É APENAS UM DOS SÍMBOLOS DA DECADÊNCIA DO RIO DE JANEIRO.
Por Alexandre Figueiredo
Até dez anos atrás, imaginava-se que Salvador permaneceria na sua situação de atraso social enquanto o Rio de Janeiro permaneceria, mesmo com seus defeitos, como um símbolo de civilidade e modernidade.
Mas, nos últimos sete anos, o Rio de Janeiro sucumbiu a uma decadência tão grande que colocou a outrora Cidade Maravilhosa numa situação de inferioridade até em relação a Estados considerados atrasados, como os do Norte e Nordeste.
E essa crise não é só econômica, como também não é só por causa da violência ou da corrupção política. É uma crise simbolizada até mesmo por fenômenos que muitos, por boa-fé, consideram "positivos", como o "funk carioca", a programação "roqueira" da Rádio Cidade e as empresas de ônibus ocultadas pela pintura padronizada, que por trás do oba-oba publicitário também revelam aspectos de profunda decadência.
Diante desse processo, em que, até no setor econômico, se manifesta pela decadência dos serviços e pela falta de produtos no mercado - um dado surreal, se levarmos em conta que o Rio de Janeiro está entre os principais centros de fabricação e distribuição dos mais diversos bens de consumo - , Salvador, mesmo longe de ser cidade-modelo para qualquer coisa, começa a se despertar.
É notável, na capital baiana, o declínio dos tempos de coronelismo político e midiático, marcado pelo poder político de Antônio Carlos Magalhães e pelos latifúndios eletrônicos de gente como Mário Kertèsz e Marcos Medrado, articulados com a ganância de dirigentes esportivos dos clubes Bahia e Vitória e animados pela "monocultura" da axé-music e seus derivados, o "pagodão" e o arrocha.
Todo esse coronelismo político, midiático, esportivo e musical, provenientes de sistemas de alianças que vieram da ditadura militar e se consolidaram durante os governos conservadores de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, apoiados pelo "cacique" ACM, começou a ruir de 2008 para cá.
Denúncias de jabaculê esportivo em FM, "racha" na banda Chiclete Com Banana com a expulsão do prepotente cantor-empresário Bell Marques, "pagodeiros" do New Hit acusados de estupro, escândalos de propina envolvendo Kertèsz e Medrado fizeram, pelo menos, reduzir drasticamente o poder de influência e prestígio desses pretensos "donos da Bahia e dos baianos".
Enquanto declina esse sistema coronelista, um esquema similar se ascende no Rio de Janeiro que, aparentemente, não tem nem pode ter um Antônio Carlos Magalhães, mas inaugurou um antes inimaginável neo-coronelismo no qual se articulam também seus empresários de entretenimento, dirigentes esportivos e midiáticos, no qual o aparato "democrático" e "impessoal" não significa inexistência de focos de prepotência e autoritarismo.
Tanto que é no Rio de Janeiro que se reconhecem a maior parte das práticas reacionárias na Internet, como as práticas de cyberbullying e trolagem cujos internautas demonstram se comportar como "cães de guarda" de padrões sociais ultraconservadores e preconceituosos ou de decisões associadas a quem possui maior status social (mesmo celebridades e tecnocratas se inserem neste caso).
Não por acaso, surtos moralistas fizeram com que o Rio de Janeiro se tornasse o núcleo raiz do atual cenário político, em que se sobressaem figuras retrógradas como Eduardo Cunha e Jair Bolsonaro, integrantes do cenário carioca, e que respaldam "estrangeiros" como o paulista Michel Temer, hoje presidente interino da República, e o mineiro Aécio Neves, senador.
Isso é um reflexo de que o Rio de Janeiro tornou-se ao mesmo tempo conservador e insensível, gerando trocadilhos como "Riley Day Janeiro" (alusão à Síndrome de Riley Day, doença manifesta pela incapacidade de sentir dor) ou "Calibama", uma combinação comparativa entre a imponência litorânea da Califórnia e o ultraconservadorismo do Alabama, ambos Estados dos EUA.
E ainda existe o projeto de "monocultura" do "funk carioca", à maneira do que se fez com a axé-music, só que, no lugar do discurso em prol da "baianidade negra" do "povo do Pelô", a ideologia funqueira remete a argumentos como "cultura das periferias", "expressão das favelas" e outros pretextos para firmar um mercado ainda mais voraz e marqueteiro do que o baiano, este já decadente.
RESISTÊNCIA DEU LUGAR À DESISTÊNCIA
É o Rio de Janeiro que, antes um foco de resistência da sociedade contra os arbítrios diversos, virou um reduto de desistência e consentimento de uma sociedade perplexa, mas resignada, que acredita ser capaz de encarar os sucessivos prejuízos que atingem diariamente o Estado do Rio de Janeiro, em todos os sentidos.
Uma Baixada Fluminense que beira a ser o "Oriente Médio" do Grande Rio, com sua violência descomunal. Uma Niterói que não parece honrar o antigo status de "elevado Índice de Desenvolvimento Humano", se transformando, no dizer de muitos, em uma "cidade do interior que nenhuma cidade do interior gostaria de ser". E uma Cidade Maravilhosa que soa velha, decadente e provinciana. E tudo isso diante de uma população que aceita tudo de bandeja.
Mesmo a figura "folclórica" do cidadão "indignado", geralmente um senhor de idade que, depois de ler as notícias diárias nos jornais, reage comentando "não tem mais jeito, está tudo perdido mesmo", mais parece, conforme se lamenta na Internet, um cidadão feliz de vida confortável que se passa por "revoltado" para impressionar os amigos.
Arbitrariedades, irregularidades, transtornos e deslizes acontecem por causa do estarrecedor conformismo do povo fluminense, que parece aceitar tudo passivamente, seja pela impotência em resolver tais problemas, seja, em outros casos, porque tais retrocessos são vistos como "necessários" para obter hipotéticos benefícios futuros.
É isso que explica, por exemplo, a estranha postura de setores ligados à cultura rock autêntica, como pessoas ligadas a projetos e iniciativas que, nos últimos anos, derivaram do legado da antiga rádio Fluminense FM, como o memorial Maldita 3.0 e as emissoras Kiss FM Rio e Cult FM, de evitar um confronto com a canastrice eletrônica representada pela Rádio Cidade.
A Cidade tem melhor estrutura empresarial que contrasta com a desastrosa abordagem do segmento rock - reduzido, a um "vitrolão" sob uma base de programação genérica à de rádios como a Jovem Pan e Mix FM, já que a Rádio Cidade não tem uma grade roqueira, mas se restringe a programas de hit-parade temático e outros de besteirol, da mesma linha Pânico da Pan.
Mesmo assim, a complacência de setores do rock autêntico remete à ilusão de que, aceitando a Rádio Cidade como "representante máxima" da mídia roqueira, se permita fortalecer o mercado roqueiro, estimulando os promotores de eventos a garantir a vinda de atrações internacionais de rock para tocarem no Rio de Janeiro, fazendo com que a Rádio Cidade, com toda sua incompetência, seja vista como "alimentadora" de um mercado estratégico.
Só que essa ilusão não permite um fortalecimento real do mercado roqueiro como era feito pela antiga Fluminense FM, até pelo fato da Rádio Cidade nunca ter tido tradição no segmento e ser operada por radialistas sem ligação ao gênero (o coordenador, Van Damme, por exemplo, é um ex-radialista da breguíssima Beat 98 e se especializa em "sertanejo universitário").
Tanto que, com dois anos de retorno, a Rádio Cidade não conseguiu estimular uma cena rock que, em apenas seis meses, a Fluminense FM havia estimulado em 1982. As únicas novas bandas que a Cidade começou a tocar, como Malta, Scalene e Suricato, foram na verdade lançadas por reality shows musicais da Rede Globo de Televisão, e não têm metade do talento dos roqueiros lançados pela antiga "Maldita".
Curiosamente, o Rio de Janeiro vive tardiamente a desastrosa experiência da rádio baiana 96 FM, que, controlada por um coronel do interior da Bahia, Nilo Coelho, rival de ACM, fez a mesma experiência no rock que a Rádio Cidade faz hoje, que se revelou um grande fracasso, diante da indignação dos ouvintes, pelo fato de ter sido apenas uma "rádio de sucessos que tocava rock" controlada por radialistas que pareciam "sobras" de FMs de axé-music.
Curiosamente, a 96 FM, também conhecida como Rádio Aratu e hoje de propriedade da Igreja Universal do Reino de Deus, havia sido envolvida num deslocamento de controle midiático de Antônio Carlos Magalhães, então ministro das Comunicações do governo José Sarney, depois de beneficiar o empresário Roberto Marinho, das Organizações Globo, transferindo-lhe o controle da empresa de telecomunicações NEC, antes de responsabilidade de Mário Garnero.
ACM recebeu de Roberto Marinho a representação operacional das Organizações Globo, por meio de concessões que o próprio ministro fez para sua família, dando origem à atual Rede Bahia. A TV Aratu e a 96 FM perderam a representação, respectivamente, da TV Globo (transmissão em rede) e da carioca 98 FM (padrão de formato, mas com programação local), de perfil popularesco.
Por outro lado, a TV Bahia passou a representar a rede e a Iemanjá FM ganhou o nome de fantasia de Globo FM e passou a representar o pop adulto. Diante dessa manobra, em 1987, e com o sucesso comercial da paulista 89 FM - primeira a deturpar o perfil rock se tornando apenas uma "rádio pop que 'só toca rock'", a 96 FM investiu em experiência similar em 1989 descartada em 1993 por baixa audiência.
PARADIGMAS DA DITADURA MILITAR
Outro motivo de complacência dos cariocas é quanto ao fenômeno dos ônibus com pintura padronizada, que na prática é um amontoado de prejuízos e malefícios. Contrariando a tradição de diferenciação de identidade visual, as várias empresas de ônibus passaram a ter um mesmo visual, só variando em pequenos detalhes conforme o "consórcio" estabelecido pelo poder estatal, a Prefeitura do Rio de Janeiro.
A medida é nociva em todos os sentidos, não traz transparência para o transporte público, não atende a princípios legais e contraria explicitamente o interesse público. Embora determinada pelo prefeito Eduardo Paes, os retrocessos que a pintura padronizada representam remetem mais aos delírios autoritários e demagogos do seu xará Eduardo Cunha, hoje deputado federal afastado do mandato.
A complacência dos cariocas, que não raro sofrem com os acidentes dos ônibus "padronizados" que levam uma média de 20 feridos aos hospitais - isso quando não morrem - , além da falta de informação sob o mal de esconder diferentes empresas de ônibus sob a mesma pintura (o que faz empresas ruins e boas parecerem iguais), é motivada por paradigmas "técnicos" originários da ditadura militar.
Havia também os "atrativos" que se mostraram inócuos e até prejudiciais quando supervalorizados, como os ônibus articulados (BRTs) e o cartão eletrônico (Bilhete Único), pretextos para as alterações nocivas do sistema de ônibus que, antes de 2010, era, mesmo com suas imperfeições, bem melhor e bem mais funcional que o atual. Tais "atrativos" escondem iniciativas socialmente excludentes, como o fim de linhas de ônibus ligando diretamente da Zona Norte à Zona Sul cariocas.
Era a época da supremacia tecnocrática, que no caso dos transportes remete a Jaime Lerner, equivalente do setor ao economista Roberto Campos. A pintura padronizada foi imposta no Rio de Janeiro mediante padrões de "disciplina" e "técnica" que prevalecem mais pelos prestígios de poder envolvidos, pela ilusão de melhorias que prometem trazer e pelo jogo de interesses relacionados.
Diante disso, muitos acham normal que ônibus de empresas particulares diferentes tenham um mesmo visual que enfatiza mais o logotipo da prefeitura do que seus respectivos nomes. Não sabem que males como as mudanças repentinas de nomes, trocas de empresas nas linhas e irregularidades jurídicas (como documentação irregular ou vencida) acontecem sob o manto da pintura padronizada.
TRAGÉDIAS E GAFES
De 2010 para cá, casos de corrupção, gafes do prefeito Eduardo Paes (uma delas, para defender a pintura padronizada em ônibus, resultou numa ofensa a imigrantes portugueses, esculhambando a pintura de uma empresa, Braso Lisboa, que lembrava azeite português), tragédias com incêndios e explosões em prédios históricos, aumento da corrupção e da violência, ocorreram.
Denúncias de corrupção no sistema de ônibus - sobretudo nas sucessivas trocas de nomes do grupo Breda, com City Rio virando Via Rio ou Vigário Geral, depois virando City Rio novamente e virando VG, e no troca-troca de linhas e extinção de empresas - , de envolvimento de políticos cariocas com empreiteiras, fizeram o Rio de Janeiro mostrar sua decadência nos noticiários nacionais.
Da queda de um ônibus (padronizado) num viaduto de Bonsucesso, apenas um entre uma constante ocorrência de acidentes, e somando a uma série de tragédias que matam pessoas por quedas de velhos edifícios, acidentes de trânsito (mesmo envolvendo BRTs), assaltos, balas perdidas e pelo descaso da saúde pública.
Um dos exemplos da crise do Rio de Janeiro é o fracasso das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), que não consegue resolver o problema da segurança nas favelas e áreas semelhantes, e se mostrando impotente à violência que cresceu ainda mais, causando mortes não só de cidadãos inocentes, mas também de muitos policiais.
POSIÇÕES INVERTIDAS
Esse quadro, que, conforme citamos, tem até mesmo a crise no abastecimento, com produtos demorando em média duas semanas para serem repostos, criando uma antes nunca imaginável carência de produtos no Rio de Janeiro centro dos grandes fabricantes e distribuidores, mostra o declínio do Rio de Janeiro e a gradual recuperação de Salvador.
A situação era antes inimaginável pelo histórico de atraso social a que se sujeitaram, durante décadas, as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, durante décadas dominadas pelo coronelismo rural, suburbano e urbano, com ramificações na política, na mídia, no entretenimento e outros setores.
Tais regiões começaram a reagir a essa situação de dominação e ao habitual conformismo forçado, sobretudo, pelo arbítrio da ditadura militar, que no caso de Salvador simplesmente derrubou uma cidade em ascensão, que no ano de 1964 interrompeu seu crescimento e modernização a não ser no aspecto de sua estrutura urbana.
No entanto, durante décadas a expansão urbana não foi acompanhada pela amplitude social, e Salvador ainda sofreu um surto de provincianismo mais intenso entre 1989 e 2007, quando se estabeleceu uma extensão do coronelismo político através da mídia, do entretenimento e mesmo no futebol.
Em compensação, Salvador apresentava vantagens em relação ao Rio de Janeiro como práticas de logística no mercado que a capital fluminense deixou de ter. Só no âmbito dos supermercados, enquanto tais estabelecimentos no Rio de Janeiro se "congelavam" no tempo, com instalações apertadas, mal iluminadas e com operadores de caixa lerdos, os de Salvador mostravam ambientes mais espaçosos, bem iluminados e com operadores de caixa mais ágeis.
O fato de Salvador ter parado no tempo antes do Rio de Janeiro permitiu que, em contrapartida, os soteropolitanos percebessem os males desse declínio mais cedo do que os cariocas, que até agora estão sem entender direito por que o Rio de Janeiro está decadente.
Hoje Salvador consegue se recuperar de maneira expressiva, pois, embora longe de se tornar um primor de qualidade de vida, pelo menos em diversos aspectos sua população consegue se despertar e questionar antigos paradigmas, além de contestar a validade dos poderes dominantes estabelecidos e buscar meios para melhorar a vida cotidiana de seus cidadãos.
Quanto à decadência do Rio de Janeiro, reduzi-la a uma crise política e econômica que não combate setores como o caos da saúde pública e a violência, soa bastante simplório. Esses aspectos compõem, com certeza, a crise no Estado do Rio de Janeiro, mas eles são apenas parte de uma crise ainda maior, de uma calamidade que não é a de dados governamentais, mas de um conjunto de fatores e valores que contribuem para todo esse declínio.
FONTES: Carta Capital, Diário do Centro do Mundo, O Dia, Blogue Cinegnose, Blogue Dossiê Espírita, Blogue Caos Carioca, Blogue Movimento Anti-Padronização, Blogue Linhaça Atômica, Blog do Miro, O Fluminense, Blogue Benvindo Sequeira, O Globo, A Tarde, Jornal Extra.
Por Alexandre Figueiredo
Até dez anos atrás, imaginava-se que Salvador permaneceria na sua situação de atraso social enquanto o Rio de Janeiro permaneceria, mesmo com seus defeitos, como um símbolo de civilidade e modernidade.
Mas, nos últimos sete anos, o Rio de Janeiro sucumbiu a uma decadência tão grande que colocou a outrora Cidade Maravilhosa numa situação de inferioridade até em relação a Estados considerados atrasados, como os do Norte e Nordeste.
E essa crise não é só econômica, como também não é só por causa da violência ou da corrupção política. É uma crise simbolizada até mesmo por fenômenos que muitos, por boa-fé, consideram "positivos", como o "funk carioca", a programação "roqueira" da Rádio Cidade e as empresas de ônibus ocultadas pela pintura padronizada, que por trás do oba-oba publicitário também revelam aspectos de profunda decadência.
Diante desse processo, em que, até no setor econômico, se manifesta pela decadência dos serviços e pela falta de produtos no mercado - um dado surreal, se levarmos em conta que o Rio de Janeiro está entre os principais centros de fabricação e distribuição dos mais diversos bens de consumo - , Salvador, mesmo longe de ser cidade-modelo para qualquer coisa, começa a se despertar.
É notável, na capital baiana, o declínio dos tempos de coronelismo político e midiático, marcado pelo poder político de Antônio Carlos Magalhães e pelos latifúndios eletrônicos de gente como Mário Kertèsz e Marcos Medrado, articulados com a ganância de dirigentes esportivos dos clubes Bahia e Vitória e animados pela "monocultura" da axé-music e seus derivados, o "pagodão" e o arrocha.
Todo esse coronelismo político, midiático, esportivo e musical, provenientes de sistemas de alianças que vieram da ditadura militar e se consolidaram durante os governos conservadores de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, apoiados pelo "cacique" ACM, começou a ruir de 2008 para cá.
Denúncias de jabaculê esportivo em FM, "racha" na banda Chiclete Com Banana com a expulsão do prepotente cantor-empresário Bell Marques, "pagodeiros" do New Hit acusados de estupro, escândalos de propina envolvendo Kertèsz e Medrado fizeram, pelo menos, reduzir drasticamente o poder de influência e prestígio desses pretensos "donos da Bahia e dos baianos".
Enquanto declina esse sistema coronelista, um esquema similar se ascende no Rio de Janeiro que, aparentemente, não tem nem pode ter um Antônio Carlos Magalhães, mas inaugurou um antes inimaginável neo-coronelismo no qual se articulam também seus empresários de entretenimento, dirigentes esportivos e midiáticos, no qual o aparato "democrático" e "impessoal" não significa inexistência de focos de prepotência e autoritarismo.
Tanto que é no Rio de Janeiro que se reconhecem a maior parte das práticas reacionárias na Internet, como as práticas de cyberbullying e trolagem cujos internautas demonstram se comportar como "cães de guarda" de padrões sociais ultraconservadores e preconceituosos ou de decisões associadas a quem possui maior status social (mesmo celebridades e tecnocratas se inserem neste caso).
Não por acaso, surtos moralistas fizeram com que o Rio de Janeiro se tornasse o núcleo raiz do atual cenário político, em que se sobressaem figuras retrógradas como Eduardo Cunha e Jair Bolsonaro, integrantes do cenário carioca, e que respaldam "estrangeiros" como o paulista Michel Temer, hoje presidente interino da República, e o mineiro Aécio Neves, senador.
Isso é um reflexo de que o Rio de Janeiro tornou-se ao mesmo tempo conservador e insensível, gerando trocadilhos como "Riley Day Janeiro" (alusão à Síndrome de Riley Day, doença manifesta pela incapacidade de sentir dor) ou "Calibama", uma combinação comparativa entre a imponência litorânea da Califórnia e o ultraconservadorismo do Alabama, ambos Estados dos EUA.
E ainda existe o projeto de "monocultura" do "funk carioca", à maneira do que se fez com a axé-music, só que, no lugar do discurso em prol da "baianidade negra" do "povo do Pelô", a ideologia funqueira remete a argumentos como "cultura das periferias", "expressão das favelas" e outros pretextos para firmar um mercado ainda mais voraz e marqueteiro do que o baiano, este já decadente.
RESISTÊNCIA DEU LUGAR À DESISTÊNCIA
É o Rio de Janeiro que, antes um foco de resistência da sociedade contra os arbítrios diversos, virou um reduto de desistência e consentimento de uma sociedade perplexa, mas resignada, que acredita ser capaz de encarar os sucessivos prejuízos que atingem diariamente o Estado do Rio de Janeiro, em todos os sentidos.
Uma Baixada Fluminense que beira a ser o "Oriente Médio" do Grande Rio, com sua violência descomunal. Uma Niterói que não parece honrar o antigo status de "elevado Índice de Desenvolvimento Humano", se transformando, no dizer de muitos, em uma "cidade do interior que nenhuma cidade do interior gostaria de ser". E uma Cidade Maravilhosa que soa velha, decadente e provinciana. E tudo isso diante de uma população que aceita tudo de bandeja.
Mesmo a figura "folclórica" do cidadão "indignado", geralmente um senhor de idade que, depois de ler as notícias diárias nos jornais, reage comentando "não tem mais jeito, está tudo perdido mesmo", mais parece, conforme se lamenta na Internet, um cidadão feliz de vida confortável que se passa por "revoltado" para impressionar os amigos.
Arbitrariedades, irregularidades, transtornos e deslizes acontecem por causa do estarrecedor conformismo do povo fluminense, que parece aceitar tudo passivamente, seja pela impotência em resolver tais problemas, seja, em outros casos, porque tais retrocessos são vistos como "necessários" para obter hipotéticos benefícios futuros.
É isso que explica, por exemplo, a estranha postura de setores ligados à cultura rock autêntica, como pessoas ligadas a projetos e iniciativas que, nos últimos anos, derivaram do legado da antiga rádio Fluminense FM, como o memorial Maldita 3.0 e as emissoras Kiss FM Rio e Cult FM, de evitar um confronto com a canastrice eletrônica representada pela Rádio Cidade.
A Cidade tem melhor estrutura empresarial que contrasta com a desastrosa abordagem do segmento rock - reduzido, a um "vitrolão" sob uma base de programação genérica à de rádios como a Jovem Pan e Mix FM, já que a Rádio Cidade não tem uma grade roqueira, mas se restringe a programas de hit-parade temático e outros de besteirol, da mesma linha Pânico da Pan.
Mesmo assim, a complacência de setores do rock autêntico remete à ilusão de que, aceitando a Rádio Cidade como "representante máxima" da mídia roqueira, se permita fortalecer o mercado roqueiro, estimulando os promotores de eventos a garantir a vinda de atrações internacionais de rock para tocarem no Rio de Janeiro, fazendo com que a Rádio Cidade, com toda sua incompetência, seja vista como "alimentadora" de um mercado estratégico.
Só que essa ilusão não permite um fortalecimento real do mercado roqueiro como era feito pela antiga Fluminense FM, até pelo fato da Rádio Cidade nunca ter tido tradição no segmento e ser operada por radialistas sem ligação ao gênero (o coordenador, Van Damme, por exemplo, é um ex-radialista da breguíssima Beat 98 e se especializa em "sertanejo universitário").
Tanto que, com dois anos de retorno, a Rádio Cidade não conseguiu estimular uma cena rock que, em apenas seis meses, a Fluminense FM havia estimulado em 1982. As únicas novas bandas que a Cidade começou a tocar, como Malta, Scalene e Suricato, foram na verdade lançadas por reality shows musicais da Rede Globo de Televisão, e não têm metade do talento dos roqueiros lançados pela antiga "Maldita".
Curiosamente, o Rio de Janeiro vive tardiamente a desastrosa experiência da rádio baiana 96 FM, que, controlada por um coronel do interior da Bahia, Nilo Coelho, rival de ACM, fez a mesma experiência no rock que a Rádio Cidade faz hoje, que se revelou um grande fracasso, diante da indignação dos ouvintes, pelo fato de ter sido apenas uma "rádio de sucessos que tocava rock" controlada por radialistas que pareciam "sobras" de FMs de axé-music.
Curiosamente, a 96 FM, também conhecida como Rádio Aratu e hoje de propriedade da Igreja Universal do Reino de Deus, havia sido envolvida num deslocamento de controle midiático de Antônio Carlos Magalhães, então ministro das Comunicações do governo José Sarney, depois de beneficiar o empresário Roberto Marinho, das Organizações Globo, transferindo-lhe o controle da empresa de telecomunicações NEC, antes de responsabilidade de Mário Garnero.
ACM recebeu de Roberto Marinho a representação operacional das Organizações Globo, por meio de concessões que o próprio ministro fez para sua família, dando origem à atual Rede Bahia. A TV Aratu e a 96 FM perderam a representação, respectivamente, da TV Globo (transmissão em rede) e da carioca 98 FM (padrão de formato, mas com programação local), de perfil popularesco.
Por outro lado, a TV Bahia passou a representar a rede e a Iemanjá FM ganhou o nome de fantasia de Globo FM e passou a representar o pop adulto. Diante dessa manobra, em 1987, e com o sucesso comercial da paulista 89 FM - primeira a deturpar o perfil rock se tornando apenas uma "rádio pop que 'só toca rock'", a 96 FM investiu em experiência similar em 1989 descartada em 1993 por baixa audiência.
PARADIGMAS DA DITADURA MILITAR
Outro motivo de complacência dos cariocas é quanto ao fenômeno dos ônibus com pintura padronizada, que na prática é um amontoado de prejuízos e malefícios. Contrariando a tradição de diferenciação de identidade visual, as várias empresas de ônibus passaram a ter um mesmo visual, só variando em pequenos detalhes conforme o "consórcio" estabelecido pelo poder estatal, a Prefeitura do Rio de Janeiro.
A medida é nociva em todos os sentidos, não traz transparência para o transporte público, não atende a princípios legais e contraria explicitamente o interesse público. Embora determinada pelo prefeito Eduardo Paes, os retrocessos que a pintura padronizada representam remetem mais aos delírios autoritários e demagogos do seu xará Eduardo Cunha, hoje deputado federal afastado do mandato.
A complacência dos cariocas, que não raro sofrem com os acidentes dos ônibus "padronizados" que levam uma média de 20 feridos aos hospitais - isso quando não morrem - , além da falta de informação sob o mal de esconder diferentes empresas de ônibus sob a mesma pintura (o que faz empresas ruins e boas parecerem iguais), é motivada por paradigmas "técnicos" originários da ditadura militar.
Havia também os "atrativos" que se mostraram inócuos e até prejudiciais quando supervalorizados, como os ônibus articulados (BRTs) e o cartão eletrônico (Bilhete Único), pretextos para as alterações nocivas do sistema de ônibus que, antes de 2010, era, mesmo com suas imperfeições, bem melhor e bem mais funcional que o atual. Tais "atrativos" escondem iniciativas socialmente excludentes, como o fim de linhas de ônibus ligando diretamente da Zona Norte à Zona Sul cariocas.
Era a época da supremacia tecnocrática, que no caso dos transportes remete a Jaime Lerner, equivalente do setor ao economista Roberto Campos. A pintura padronizada foi imposta no Rio de Janeiro mediante padrões de "disciplina" e "técnica" que prevalecem mais pelos prestígios de poder envolvidos, pela ilusão de melhorias que prometem trazer e pelo jogo de interesses relacionados.
Diante disso, muitos acham normal que ônibus de empresas particulares diferentes tenham um mesmo visual que enfatiza mais o logotipo da prefeitura do que seus respectivos nomes. Não sabem que males como as mudanças repentinas de nomes, trocas de empresas nas linhas e irregularidades jurídicas (como documentação irregular ou vencida) acontecem sob o manto da pintura padronizada.
TRAGÉDIAS E GAFES
De 2010 para cá, casos de corrupção, gafes do prefeito Eduardo Paes (uma delas, para defender a pintura padronizada em ônibus, resultou numa ofensa a imigrantes portugueses, esculhambando a pintura de uma empresa, Braso Lisboa, que lembrava azeite português), tragédias com incêndios e explosões em prédios históricos, aumento da corrupção e da violência, ocorreram.
Denúncias de corrupção no sistema de ônibus - sobretudo nas sucessivas trocas de nomes do grupo Breda, com City Rio virando Via Rio ou Vigário Geral, depois virando City Rio novamente e virando VG, e no troca-troca de linhas e extinção de empresas - , de envolvimento de políticos cariocas com empreiteiras, fizeram o Rio de Janeiro mostrar sua decadência nos noticiários nacionais.
Da queda de um ônibus (padronizado) num viaduto de Bonsucesso, apenas um entre uma constante ocorrência de acidentes, e somando a uma série de tragédias que matam pessoas por quedas de velhos edifícios, acidentes de trânsito (mesmo envolvendo BRTs), assaltos, balas perdidas e pelo descaso da saúde pública.
Um dos exemplos da crise do Rio de Janeiro é o fracasso das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), que não consegue resolver o problema da segurança nas favelas e áreas semelhantes, e se mostrando impotente à violência que cresceu ainda mais, causando mortes não só de cidadãos inocentes, mas também de muitos policiais.
POSIÇÕES INVERTIDAS
Esse quadro, que, conforme citamos, tem até mesmo a crise no abastecimento, com produtos demorando em média duas semanas para serem repostos, criando uma antes nunca imaginável carência de produtos no Rio de Janeiro centro dos grandes fabricantes e distribuidores, mostra o declínio do Rio de Janeiro e a gradual recuperação de Salvador.
A situação era antes inimaginável pelo histórico de atraso social a que se sujeitaram, durante décadas, as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, durante décadas dominadas pelo coronelismo rural, suburbano e urbano, com ramificações na política, na mídia, no entretenimento e outros setores.
Tais regiões começaram a reagir a essa situação de dominação e ao habitual conformismo forçado, sobretudo, pelo arbítrio da ditadura militar, que no caso de Salvador simplesmente derrubou uma cidade em ascensão, que no ano de 1964 interrompeu seu crescimento e modernização a não ser no aspecto de sua estrutura urbana.
No entanto, durante décadas a expansão urbana não foi acompanhada pela amplitude social, e Salvador ainda sofreu um surto de provincianismo mais intenso entre 1989 e 2007, quando se estabeleceu uma extensão do coronelismo político através da mídia, do entretenimento e mesmo no futebol.
Em compensação, Salvador apresentava vantagens em relação ao Rio de Janeiro como práticas de logística no mercado que a capital fluminense deixou de ter. Só no âmbito dos supermercados, enquanto tais estabelecimentos no Rio de Janeiro se "congelavam" no tempo, com instalações apertadas, mal iluminadas e com operadores de caixa lerdos, os de Salvador mostravam ambientes mais espaçosos, bem iluminados e com operadores de caixa mais ágeis.
O fato de Salvador ter parado no tempo antes do Rio de Janeiro permitiu que, em contrapartida, os soteropolitanos percebessem os males desse declínio mais cedo do que os cariocas, que até agora estão sem entender direito por que o Rio de Janeiro está decadente.
Hoje Salvador consegue se recuperar de maneira expressiva, pois, embora longe de se tornar um primor de qualidade de vida, pelo menos em diversos aspectos sua população consegue se despertar e questionar antigos paradigmas, além de contestar a validade dos poderes dominantes estabelecidos e buscar meios para melhorar a vida cotidiana de seus cidadãos.
Quanto à decadência do Rio de Janeiro, reduzi-la a uma crise política e econômica que não combate setores como o caos da saúde pública e a violência, soa bastante simplório. Esses aspectos compõem, com certeza, a crise no Estado do Rio de Janeiro, mas eles são apenas parte de uma crise ainda maior, de uma calamidade que não é a de dados governamentais, mas de um conjunto de fatores e valores que contribuem para todo esse declínio.
FONTES: Carta Capital, Diário do Centro do Mundo, O Dia, Blogue Cinegnose, Blogue Dossiê Espírita, Blogue Caos Carioca, Blogue Movimento Anti-Padronização, Blogue Linhaça Atômica, Blog do Miro, O Fluminense, Blogue Benvindo Sequeira, O Globo, A Tarde, Jornal Extra.
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