Por Alexandre Figueiredo
A cultura musical brasileira se "maçonizou"? O que conhecíamos como cultura de qualidade, infelizmente, tornou-se um universo posto à margem, com espaços cada vez mais restritivos e um público cada vez menor e envelhecido, resignado com o comercialismo cada vez mais crescente que ocupa cada vez mais os espaços antes conceituados de expressão cultural.
Num contexto em que até o "maldito" Rogério Skylab - da música "Matador de Passarinho" - aceita compor e gravar com o chefão do comercialismo musical, Michael Sullivan (algo comparável a Ernesto Che Guevara convidar o senador estadunidense Joseph McCarthy para fazer a Revolução Cubana), a cultura alternativa deixou de ser resistência e passou a ser um refúgio.
Em outros tempos, não era assim. Os espaços alternativos eram celeiros de criatividade e, embora tivessem sua autonomia e sua própria "geografia" - como a Bossa Nova teve entre 1955 e 1964, nos bares e boates cariocas de Copacabana e Ipanema - , refletiam no grande público sem que as deturpações pudessem estabelecer uma supremacia sobre as expressões originais.
Entre 1966 e 1968, a MPB autêntica, aquela que não depende de plateias lotadas para ser conhecida, podia ter seus espaços na hoje conhecida TV aberta, através dos programas musicais e dos festivais promovidos por emissoras como a TV Record e a TV Excelsior, ambas em São Paulo. Uma música sofisticada e ao mesmo tempo voltada às raízes atingia o grande público sem firulas.
INFINIDADE DE HOMENAGENS
Hoje, infelizmente, o que resta de MPB autêntica nos sucessos de mídia e de mercado se resume a uma infinidade de homenagens e tributos em que velhos repertórios são revisitados sem que se sinalize qualquer renovação cultural. Isso cria uma perspectiva negativa nos especialistas, que temem que essa onda de homenagens seja uma forma da MPB desaparecer do chamado mainstream.
Quem poderia representar um futuro para a MPB autêntica, como vários músicos que buscam algum lugar ao Sol da visibilidade, acaba confinado em espaços fechados, tocando em pequenas casas noturnas, em rádios digitais pouco conhecidas e em programas musicais de fim de noite escondidos em obscuros canais comunitários da TV paga ou em canais legislativos (como TV Câmara e TV Senado).
Isso é um grande contraste para um Brasil que viu Chico Buarque, Edu Lobo e Elis Regina na tela da TV Record, há mais de 45 anos atrás. E que hoje tem que escolher entre um novo talento que toca para quase ninguém ver e os poucos emepebistas que têm acesso às rádios FM tocarem o mais do mesmo dos grandes clássicos viciosamente reprisados.
Maria Bethânia é um caso típico. Ela, que era uma novidade empolgante quando substituiu Nara Leão na peça musical Opinião (que herdava o que restou do ideal do Centro Popular de Cultura da UNE, já no começo da ditadura), em 1965, hoje se repete em tributos a si mesma.
O que era uma modernidade, com a cantora baiana unindo poder vocal e dramaticidade, passa a se repetir em auto-homenagens e, o que é pior, com a apreciação de sua música reduzida a uma mera formalidade, em que até fãs de brega-popularesco que não curtem muito MPB vão vê-la mais por uma norma de etiqueta do que para ouvir música brasileira de qualidade.
Se Maria Bethânia precisa se reinventar, isso é coisa também da MPB restante. Só que, com o comercialismo reinante e a nivelação por baixo da música, fica complicado se reinventar com Tom Zé virando estereótipo de si mesmo fazendo anúncio de Coca-Cola e o ultramodernista Rogério Skylab chamar para compor e gravar um compositor e produtor que é o extremo oposto de seu universo musical.
Se Michael Sullivan é reabilitado por suas próprias vítimas, décadas depois de tentar destruir a MPB com sucessos brega-românticos e com austero comercialismo musical, e o único acesso da MPB autêntica nas rádios são os tributos intermináveis, ou então a canastrice musical de ídolos bregas da "geração 90", hoje reembalados como arremedos de MPB, o problema é mais sério do que se pensa.
E a "maçonização" só faz complicar as coisas. Quem aprecia cultura musical de qualidade tem seus próprios espaços, o que em tese é positivo dentro da diversidade cultural. Mas, da forma com que as expressões alternativas, quando não se vendem para o establishment, se fecham nesses espaços, é preocupante, porque, em vez de resistência, o que se vê é o isolacionismo.
Até mesmo nos poucos espaços de divulgação, nem todo o público restrito tem acesso. Se um músico de MPB instrumental se apresenta num programa de fim de noite da TV Senado, apenas uma parcela de seus já pouquíssimos fãs acaba tendo conhecimento. Se nem toda a "maçonaria" (alegoria às antigas sociedades fechadas da Idade Média) toma conhecimento, é sinal que algo está errado.
ATÉ O ROCK SE "MAÇONIZOU"
O grande problema é que quem aprecia cultura de qualidade se resignou com a perda de seus espaços. Conformou-se com a supremacia de expressões caricatas e tendenciosas que dominam os antigos meios de ampla divulgação.
A cultura musical de qualidade mal consegue um pequeno espaço nos suplementos culturais da grande imprensa, fazendo o papel de um coadjuvante menor dentro de uma linha editorial que privilegia a galopante e quase monopolista bregalização musical.
Mas o que surpreende é que aqueles que apreciam cultura de qualidade já se conformam com seus poucos espaços. Divulgam novos talentos para si mesmos, sem vislumbrar uma chance deles obterem visibilidade. Para piorar as coisas, a renovação da MPB virou refém da indústria de trilhas de novelas da Rede Globo de Televisão.
Ver que a MPB só tem acesso ao grande público se incluir uma música na trilha sonora de uma novela - geralmente a novela das 19 horas é reservada para os emergentes, enquanto os veteranos dependem da novela das 21 para divulgar novos trabalhos - é triste, já que o que é verdadeiramente artístico não possui espaço espontâneo de divulgação.
Mas até mesmo a cultura rock, no Brasil, padece desse sentimento "maçom" e se recolhe em espaços cada vez mais restritos. Como na música brasileira em geral, que baixou a cabeça diante do comercialismo voraz dos bregas, o rock autêntico deixa de soar como resistência às abordagens caricaturais e se refugia nos espaços que se permite para sua livre e privativa expressão.
Exemplo está no público que está saudoso das ondas vibrantes da Rádio Fluminense FM, uma das poucas rádios que explorou a cultura rock de acordo com a realidade de seu público. Diante de deturpações grosseiras cometidas sobretudo pela emissora carioca Rádio Cidade - antiga emissora pop que passou a explorar o jovem roqueiro como uma caricatura debiloide de novela teen - , os roqueiros autênticos se contentam com o refúgio das rádios digitais.
Evidentemente, existe o lado positivo das rádios digitais - conhecidas como webradios - que não apelam para o comercialismo rasteiro do rock domesticado. No Rio de Janeiro, a Cult FM é um exemplo disso. Mas se tais rádios podem ser sintonizadas em qualquer parte do mundo, sua sintonia é bem sucedida apenas por computadores, quando muito laptops.
Só que essas rádios não podem ser sintonizadas nas ruas. Os computadores são muito vulneráveis a poluentes e salitre que tomam conta do ar. Sintonizar rádios digitais pelo celular consome muita bateria e a conexão de Internet para tamanha tarefa é mais lenta e onerosa. No fim, o ouvinte pagará uma conta amarga só por uma problemática meia-hora de sintonia que "cai" a qualquer momento.
Enquanto a Rádio Cidade e seus locutores "estilo Jovem Pan" (fala animadinha que agora "suavizou" para uma dicção "devagar e tranquila" mas ainda assim anti-roqueira) exploram uma imagem caricatural do público roqueiro, os roqueiros autênticos se contentam com a sintonia das rádios digitais que só pegam bem em casa e com o saudosismo do projeto Maldita 3.0.
O projeto Maldita 3.0 é um brilhante projeto de Alessandro ALR, que fez minuciosa pesquisa sobre fotos, informações e produtos ligados à trajetória da Fluminense FM. É um projeto brilhante, se ele fosse além de simplesmente mostrar o passado de uma emissora que marcou a cultura rock nos anos 80. Se fosse até pela vontade de Alessandro e sua equipe, o Maldita 3.0 poderia ir muito além.
Porém, o que se observa é a acomodação do próprio público, cuja apreciação do projeto o faz ameaçar se tornar um "museu da Fluminense FM". Como o projeto da Cult FM, igualmente brilhante, corre o risco de se reduzir a uma "rádio comunitária" de roqueiros "velhos e saudosistas".
É a mesma ameaça que os emepebistas sofrem, diante das caricaturas e pastiches de MPB - inclusive covers de clássicos tendenciosamente gravados, vide o "tributo" que os breganejos Chitãozinho & Xororó gravaram sobre Tom Jobim - que dominam o mercado e a resignação do público culturalmente qualificado em se contentar com seus poucos e fechados espaços.
O isolamento cultural e a fuga dos apreciadores da boa cultura musical não mais para novas trincheiras e sim para "abrigos anti-aéreos" diante do bombardeio do rasteiro comercialismo musical, de bregas e de arremedos de roqueiros, pouco ajuda na valorização da cultura musical autêntica, já que ela continua discriminada e carente de maior visibilidade.
Enquanto isso, a tirania de espaços pouco confiáveis (como Rede Globo, Rádio Cidade e similares) a ditar regras de mercado para a música, e a prevalência de ídolos musicais de valor artístico duvidoso, como Michael Sullivan e Chitãozinho & Xororó, além de milhares de outros que dominam as FMs, mostra que a cultura é empastelada e a "maçonização" da cultura de qualidade não é a solução.
Isso porque o que se observa é o isolamento da cultura musical de qualidade aos espaços que lhe restam, que com toda a sua importância qualitativa, são espaços de pouca repercussão no mercado. Eles nem se tornam focos de resistência, porque os espaços dominantes continuam com sua supremacia divulgando formas caricatas e tendenciosas de expressão artístico-cultural.
A "maçonização" pode transformar a cultura musical de qualidade em coisa do passado, pois os espaços que lhes restam são menos destacados e o público que o aprecia é restrito e se limita a falar consigo mesmo. Isolados da sociedade, não podem reagir às deturpações culturais que acontecem "a céu aberto" ou, se reagem, não podem se comunicar à sociedade dentro de seus feudos culturais.
Outro prejuízo é que a cultura musical de qualidade dificilmente terá uma renovação digna e expressiva, na medida em que seus espaços fechados pouco contribuem para intervir no cenário comercial dominante sem o risco de compactuar com as regras e armadilhas do mercado. Diante de tantos espaços fechados, a cultura autêntica "morrerá" sob o triunfo de suas formas deturpadas.
FONTES: UOL, O Fluminense, O Globo, Jornal do Brasil.
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