LIVRO SOBRE MR. CATRA REFORÇA O RECURSO MARQUETEIRO DE SE APROVEITAR INTELECTUAIS PARA DEFESA DO "FUNK".
Por Alexandre Figueiredo
Uma geração de intelectuais influentes nos debates atuais sobre cultura brasileira está associada a um sério problema que dificulta a reflexão em torno das contradições e problemas acerca da cultura popular, mediante intervenções de processo que são ignorados pela classe acadêmica.
O "funk" é um símbolo bastante típico desse sério problema, em que acadêmicos se recusam a admitir as diferenças entre a "cultura de massa", desenvolvida de forma vertical pelo poder midiático e mercadológico, e o folclore cotidiano, vivida pelas comunidades e transmitida socialmente pelos seus membros.
Durante muitos anos o "funk" tenta vender uma imagem falsa de "fenômeno etnográfico", com uma retórica confusa trazida por antropólogos, sociólogos, cineastas de documentários e jornalistas culturais, entre outros propagandistas. Um discurso que parece sociológico, mas é nada mais do que um discurso acadêmico para fins publicitários, sendo uma sutil estratégia de marketing.
O "funk" - seja o "funk carioca", o "funk ostentação" ou fenômenos derivados - é marcado pelas relações de poder entre empresários e intérpretes, dentro de uma expressão musical e comportamental em que a criatividade não é um aspecto genuíno, apesar de alardeado pelos seus propagandistas, sendo manifesto pela repetitividade dos sons dissimulada pela "diversidade" de fetiches.
ÚNICO DIFERENCIAL É A "BLINDAGEM INTELECTUAL"
Passando pelas ruas, qualquer um que passe perto de alguém ouvindo um CD ou aparelho de MP3 que toque um sucesso de "funk" perceberá que todos os seus sucessos são iguais uns aos outros. As variações apenas são tendenciosas, vindas da decisão dos empresários-DJs que controlam os ditos "artistas" do gênero, que só mudam o "funk" conforme as conveniências.
Só esse aspecto elimina o status de "funk" como "cultura", em que pesem os apelos, por demais chorosos e desesperados, dos defensores e militantes do gênero. Isso porque uma cultura não se processa pelo "abrir e fechar de torneiras" conforme as exigências do momento, a evolução cultural ocorre naturalmente, sem esperar épocas determinadas para "progredir".
O "funk" só mudou, praticamente, duas vezes. Ele começou nos anos 90, apenas com o vocal de MCs - geralmente parodiando o ritmo verbal das cantigas de roda - e uma batida eletrônica, sonoridade que a partir de 2003 foi conhecida como "funk de raiz" ou "funk de protesto", embora ambos os rótulos tenham seu grau de equívoco.
Afinal, eles não são de raiz porque o funk autêntico original - de James Brown e Chic de Nile Rodgers e Bernard Edwards, entre outros - foi marcado por grandes bandas musicais, pela junção de guitarra, baixo e bateria com orquestras de metais e cordas, ou acrescido de um órgão eletrônico. Também não é de protesto, pela postura socialmente mais conformista notada pelos funqueiros.
Depois, em 2002, como forma de atrair turistas e acadêmicos, passou a adotar um som de sintetizador que imitasse as batidas de umbanda, e já em 2005 eram colocados outros efeitos sonoros que imitavam sirenes e galopes de cavalos para "diversificar" e conquistar novos mercados.
ESTRATÉGIAS MAIS SOFISTICADAS DE MARKETING
Ultimamente, as estratégias de marketing em torno do "funk" tornaram-se bem mais sofisticadas. A inserção do gênero em eventos ou procedimentos relacionados à cultura mais sofisticada reforçam uma campanha de ampliar mercados, não necessariamente de promover um zelo cultural ou um reconhecimento como cultura popular de qualidade.
Daí que factoides como a funqueira Valesca Popozuda aparecer classificada como "grande pensadora contemporânea" numa questão escolar do ensino médio e um grupo de funqueiras abrir uma exposição da cantora Josephine Baker, reforçam esse marketing pseudo-intelectualizado dos funqueiros, que no fundo sempre foram alheios e indiferentes a esse âmbito cultural.
Recentemente, os apelos foram além. Um grupo de dançarinos de "funk", que fazem a chamada "Batalha do Passinho" - popularizada pelo sucesso de MC Federado & Os Lelekes, grupo com atividades paralisadas devido a disputas judiciais - , monopolizou as atrações culturais de um evento sobre tecnologia e ativismo social, o TED Global, realizado há poucos dias no Rio de Janeiro.
Agora, é a vez do livro A Estética Funk Carioca - Criação e Conectividade em Mr. Catra, resultante de uma tese de pós-graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, feita pela antropóloga Mylene Mizhari.
O livro, publicado pela editora Sete Letras e que havia recebido o prêmio do Instituto Pereira Passos, em parceria com O Globo e a Prefeitura do Rio de Janeiro há três anos, tem em si o tom pubicitário de ampliação de mercados do "funk carioca", mais parecendo uma propaganda travestida de ensaio etnográfico elaborado.
Nele, a tal "conectividade" de Mr. Catra - nascido Wagner Domingues da Costa e às vezes também conhecido como MC Catra - , um dos funqueiros de maior sucesso na grande mídia e famoso por ter vários filhos com diversas esposas, se configura em si numa ampliação de reservas de mercado.
Segundo o trabalho, o "funk" não seria uma "expressão dos guetos", mas um estilo que "conecta diferentes públicos da cidade". Para justificar a apelação publicitária, a antropóloga lançou o livro na sofisticada Livraria da Travessa, numa filial localizada no bairro de Ipanema, reduto histórico da Bossa Nova, há mais de 50 anos.
Se alimentando de um discurso contraditório, tendencioso e aparentemente imune às polêmicas aparentemente causadas, o "funk" cria um discurso supostamente etnográfico, que não se compromete com a coerência de sentido, mas com a persuasão às custas de um aparato discursivo verossímil e atraente.
Esse discurso pode se contradizer num momento ou em outro, adotar posturas em um dia que, tempos atrás, não seria capaz de adotar, com o objetivo de obter vantagens. Vide o fato de Valesca Popozuda, associada ao "discurso direto" - eufemismo que seus defensores usam para definir os aspectos mais grotescos do gênero - , adotar posturas tendenciosamente mais comportadas.
Daí a "etnografia de mercado", como recurso retórico para perpetuar o sucesso do "funk" e ampliar reservas de mercado para plateias de maior formação acadêmica e maior poder aquisitivo. A associação da comunidade intelectual brasileira ao "funk" põe em dúvidas a própria classe como legitimadora maior da cultura popular, na medida em que ela se rende aos interesses de mercado.
FONTES: O Globo, Editora Sete Letras, O Dia.
Por Alexandre Figueiredo
Uma geração de intelectuais influentes nos debates atuais sobre cultura brasileira está associada a um sério problema que dificulta a reflexão em torno das contradições e problemas acerca da cultura popular, mediante intervenções de processo que são ignorados pela classe acadêmica.
O "funk" é um símbolo bastante típico desse sério problema, em que acadêmicos se recusam a admitir as diferenças entre a "cultura de massa", desenvolvida de forma vertical pelo poder midiático e mercadológico, e o folclore cotidiano, vivida pelas comunidades e transmitida socialmente pelos seus membros.
Durante muitos anos o "funk" tenta vender uma imagem falsa de "fenômeno etnográfico", com uma retórica confusa trazida por antropólogos, sociólogos, cineastas de documentários e jornalistas culturais, entre outros propagandistas. Um discurso que parece sociológico, mas é nada mais do que um discurso acadêmico para fins publicitários, sendo uma sutil estratégia de marketing.
O "funk" - seja o "funk carioca", o "funk ostentação" ou fenômenos derivados - é marcado pelas relações de poder entre empresários e intérpretes, dentro de uma expressão musical e comportamental em que a criatividade não é um aspecto genuíno, apesar de alardeado pelos seus propagandistas, sendo manifesto pela repetitividade dos sons dissimulada pela "diversidade" de fetiches.
ÚNICO DIFERENCIAL É A "BLINDAGEM INTELECTUAL"
Passando pelas ruas, qualquer um que passe perto de alguém ouvindo um CD ou aparelho de MP3 que toque um sucesso de "funk" perceberá que todos os seus sucessos são iguais uns aos outros. As variações apenas são tendenciosas, vindas da decisão dos empresários-DJs que controlam os ditos "artistas" do gênero, que só mudam o "funk" conforme as conveniências.
Só esse aspecto elimina o status de "funk" como "cultura", em que pesem os apelos, por demais chorosos e desesperados, dos defensores e militantes do gênero. Isso porque uma cultura não se processa pelo "abrir e fechar de torneiras" conforme as exigências do momento, a evolução cultural ocorre naturalmente, sem esperar épocas determinadas para "progredir".
O "funk" só mudou, praticamente, duas vezes. Ele começou nos anos 90, apenas com o vocal de MCs - geralmente parodiando o ritmo verbal das cantigas de roda - e uma batida eletrônica, sonoridade que a partir de 2003 foi conhecida como "funk de raiz" ou "funk de protesto", embora ambos os rótulos tenham seu grau de equívoco.
Afinal, eles não são de raiz porque o funk autêntico original - de James Brown e Chic de Nile Rodgers e Bernard Edwards, entre outros - foi marcado por grandes bandas musicais, pela junção de guitarra, baixo e bateria com orquestras de metais e cordas, ou acrescido de um órgão eletrônico. Também não é de protesto, pela postura socialmente mais conformista notada pelos funqueiros.
Depois, em 2002, como forma de atrair turistas e acadêmicos, passou a adotar um som de sintetizador que imitasse as batidas de umbanda, e já em 2005 eram colocados outros efeitos sonoros que imitavam sirenes e galopes de cavalos para "diversificar" e conquistar novos mercados.
ESTRATÉGIAS MAIS SOFISTICADAS DE MARKETING
Ultimamente, as estratégias de marketing em torno do "funk" tornaram-se bem mais sofisticadas. A inserção do gênero em eventos ou procedimentos relacionados à cultura mais sofisticada reforçam uma campanha de ampliar mercados, não necessariamente de promover um zelo cultural ou um reconhecimento como cultura popular de qualidade.
Daí que factoides como a funqueira Valesca Popozuda aparecer classificada como "grande pensadora contemporânea" numa questão escolar do ensino médio e um grupo de funqueiras abrir uma exposição da cantora Josephine Baker, reforçam esse marketing pseudo-intelectualizado dos funqueiros, que no fundo sempre foram alheios e indiferentes a esse âmbito cultural.
Recentemente, os apelos foram além. Um grupo de dançarinos de "funk", que fazem a chamada "Batalha do Passinho" - popularizada pelo sucesso de MC Federado & Os Lelekes, grupo com atividades paralisadas devido a disputas judiciais - , monopolizou as atrações culturais de um evento sobre tecnologia e ativismo social, o TED Global, realizado há poucos dias no Rio de Janeiro.
Agora, é a vez do livro A Estética Funk Carioca - Criação e Conectividade em Mr. Catra, resultante de uma tese de pós-graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, feita pela antropóloga Mylene Mizhari.
O livro, publicado pela editora Sete Letras e que havia recebido o prêmio do Instituto Pereira Passos, em parceria com O Globo e a Prefeitura do Rio de Janeiro há três anos, tem em si o tom pubicitário de ampliação de mercados do "funk carioca", mais parecendo uma propaganda travestida de ensaio etnográfico elaborado.
Nele, a tal "conectividade" de Mr. Catra - nascido Wagner Domingues da Costa e às vezes também conhecido como MC Catra - , um dos funqueiros de maior sucesso na grande mídia e famoso por ter vários filhos com diversas esposas, se configura em si numa ampliação de reservas de mercado.
Segundo o trabalho, o "funk" não seria uma "expressão dos guetos", mas um estilo que "conecta diferentes públicos da cidade". Para justificar a apelação publicitária, a antropóloga lançou o livro na sofisticada Livraria da Travessa, numa filial localizada no bairro de Ipanema, reduto histórico da Bossa Nova, há mais de 50 anos.
Se alimentando de um discurso contraditório, tendencioso e aparentemente imune às polêmicas aparentemente causadas, o "funk" cria um discurso supostamente etnográfico, que não se compromete com a coerência de sentido, mas com a persuasão às custas de um aparato discursivo verossímil e atraente.
Esse discurso pode se contradizer num momento ou em outro, adotar posturas em um dia que, tempos atrás, não seria capaz de adotar, com o objetivo de obter vantagens. Vide o fato de Valesca Popozuda, associada ao "discurso direto" - eufemismo que seus defensores usam para definir os aspectos mais grotescos do gênero - , adotar posturas tendenciosamente mais comportadas.
Daí a "etnografia de mercado", como recurso retórico para perpetuar o sucesso do "funk" e ampliar reservas de mercado para plateias de maior formação acadêmica e maior poder aquisitivo. A associação da comunidade intelectual brasileira ao "funk" põe em dúvidas a própria classe como legitimadora maior da cultura popular, na medida em que ela se rende aos interesses de mercado.
FONTES: O Globo, Editora Sete Letras, O Dia.
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