Por Alexandre Figueiredo
Algo muito estranho acontece na intelectualidade brasileira. Nos últimos 15 anos, historiadores, sociólogos, antropólogos e críticos musicais que deveriam zelar pela verdadeira cultura popular, passam a defender, em vez disso, uma "cultura" marcada pelo comercialismo mais explícito, mas que é considerado oficialmente como "popular".
Desde que o historiador baiano Milton Moura publicou o ensaio "Esses Pagodes Impertinentes...", na publicação Textos de Cultura e Comunicação da Universidade Federal da Bahia - mas com um conselho editorial envolvendo professores de várias universidades - , defendendo o "pagodão" derivado do fenômeno É O Tchan, a intelectualidade pegou gosto de defender a "indústria cultural", mesmo afirmando defenderem a "verdadeira cultura popular".
O É O Tchan chegou até mesmo a ser incluído num documentário sobre folclore, apresentado por Gilberto Gil e produzido pelo antropólogo Hermano Vianna - irmão do músico Herbert Vianna, dos Paralamas do Sucesso - , um dos ideólogos dessa campanha intelectual. O É O Tchan, no entanto, é um dos símbolos do comercialismo musical popularesco, controlado pelo empresário baiano Cal Adan.
Outro grupo "genérico", Gang do Samba, foi jogado para um documentário sobre o veterano sambista Riachão, Samba Riachão (2001), de Jorge Alfredo Guimarães, sob o mesmo propósito "folclorizante" que passava a nortear a intelectualidade brasileira influenciada pela Teoria da Dependência na sua concepção traçada pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso.
Já havia uma canção comercial brasileira, a música brega-popularesca, surgida a partir dos primeiros ídolos considerados cafonas. Sendo uma pretensa "cultura popular" cujo teor de brasilidade é inexpressivo e duvidoso, o brega-popularesco, não só a música mas outros aspectos, como comportamento, mídia etc, nada prima pela produção de conhecimento e pelo progresso social, mas tão somente para o consumo.
E como se dá o discurso que tenta legitimar a pretensa imagem "folclórica" dessa "cultura de massa"? Já se fala de seus processos discursivos na Internet, mas a visibilidade desses intelectuais faz com que os questionamentos contra eles sejam neutralizados pela visão oficial que a intelectualidade dominante propaga sobre o que ela entende por "cultura popular".
O "MAU GOSTO" COMO "CAUSA NOBRE"
O discurso desses intelectuais adota clichês que nem sempre estão de acordo com o compromisso de uma narrativa mais objetiva e uma visão mais coerente. "Esses Pagodes Impertinentes..." mais parece uma propaganda antecipada dos grupos que viriam depois da "onda" do É O Tchan (e do Terra Samba, Companhia do Pagode e Gang do Samba): Harmonia do Samba, Pagodart, Psirico, Parangolé e outros.
Em primeiro lugar, esses intelectuais adotam um apelo nervoso de acusar quem questiona a validade artística dos intérpretes brega-popularescos de expressarem "preconceito", "elitismo" e "purismo", entre outros adjetivos.
Em vários textos pesquisados, como os de Pedro Alexandre Sanches, Hermano Vianna, Bia Abramo, Rodrigo Faour, ou mesmo textos da grande imprensa, há essa mesma orientação ideológica. A alegação que muitos desses intelectuais utilizam é a de que a "cultura popular" de hoje é uma espécie de "revolução do mau gosto", o "mau gosto" trabalhado ideologicamente como se fosse uma "causa nobre".
Para evitar problemas em sua argumentação, eles tentam minimizar os efeitos desse explícito sucesso comercial desses cantores e grupos de diversos estilos musicais, que vão do mais antigo brega ao "funk carioca", passando pela axé-music, "sertanejo", "forró eletrônico" e outros.
Uma dessas manobras é definir o mercado associado desses estilos como "mercado das periferias". Os empresários, ricos, são vistos como "pobres que deram certo e sabem se virar". As rádios têm seu quadro de proprietários - muitos deles políticos que ganharam concessões no governo de José Sarney, com o apoio do baiano Antônio Carlos Magalhães - omitidos, superestimando o poder de radialistas que são apenas serviçais do poder político-midiático regional expresso pelas emissoras.
As gravadoras são vistas como "independentes", o que é um erro, tamanha a dependência que elas têm, pelo menos ideologicamente, dos valores dominantes da grande mídia nacional (sobretudo Rede Globo) e pela indústria fonográfica internacional (como Warner e Universal). Podem ser gravadoras pequenas situadas em algum escritório minúsculo e mal-arrumado, mas a mentalidade comercial não é muito diferente de uma gigante fonográfica com escritório central em Los Angeles (EUA).
O primeiro livro em âmbito nacional que puxou essa pregação ideológica foi Eu Não Sou Cachorro Não, de Paulo César Araújo, publicado pela Editora Record em 2001. Ele investe na raiz da pregação, exaltando os primeiros ídolos cafonas, num trabalho completado com Hermano Vianna, que investe no brega-popularesco mais atual, enquanto o historiador Araújo investe no brega-popularesco mais antigo.
Monografias, documentários, teses acadêmicas, biografias cinematográficas, resenhas, reportagens e especiais de televisão foram feitos para defesa dessa "cultura de massa" brega-popularesca. O discurso adotava recursos considerados sofisticados, que variam da narrativa da História das Mentalidades, como no caso de narrar o passado pobre de ídolos do "funk carioca", ou da narrativa do New Journalism, quando se trabalha uma reportagem como sendo um texto literário.
O 'HIT-PARADE' BRASILEIRO
A intelectualidade, por mais que evoque, no seu discurso, as mais diversas, ainda que contraditórias, alegações de que defende o "moderno folclore brasileiro" ou a "verdadeira cultura popular da atualidade", comete sérios equívocos.
Afinal, o que essa intelectualidade defende é a implantação definitiva do hit-parade norte-americano, o chamado "mercadão" dos sucessos comerciais que alimenta a indústria fonográfica e radiofônica de lá. O discurso intelectual é uma forma disfarçada de discurso publicitário, difundido de forma confusa, com argumentos apelativos e contraditórios aceitos passivamente por um público pouco acostumado a exercer o senso crítico e pronto a aceitá-las, sem verificação, acreditando na visibilidade dos ideólogos.
As monografias, documentários, resenhas, artigos etc apenas representam uma forma velada de passar essa campanha publicitária, enquanto o hit-parade, que já existe no Brasil e é trabalhado sobretudo pelas emissoras de rádio FM de maior audiência, não se instala de forma absoluta em nosso país.
Enquanto o hit-parade brasileiro não se torna um mercado totalitário, ele é considerado pela intelectualidade como "alternativo" e "independente". Seus ricos empresários, como "gente pobre". Seus ídolos medíocres, como "artistas em busca de um espaço" (espaço que já conquistaram e dominam faz tempo), e a mídia que os divulga, como "pequena" e "alternativa".
Mas são só imagens projetadas dentro de um discurso publicitário. Só que, quando o brega-popularesco tirar de vez as demais manifestações culturais, estas ficarão à margem enquanto o mercado dominante tirará sua máscara de "mercado dos excluídos". A cultura será deixada de lado e a "cultura popular" será tão somente uma mercadoria.
FONTE: O Kylocyclo, Mingau de Aço, Caros Amigos, Fórum.
Comentários