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A CONTRADIÇÃO INTELECTUAL ACERCA DA CULTURA POPULAR


MODA DE VIOLA AUTÊNTICA - O etnocentrismo intelectual não consegue discernir a verdadeira cultura de rua (foto) da "cultura popular" de mercado.

Por Alexandre Figueiredo

A cultura popular mudou? O Fim da História finalmente chegou à Música Popular Brasileira? As vozes pretensamente proféticas anunciam o fim dos tempos, o fim da época em que os morros, roças e sertões produziam música de excelente qualidade, onde as melodias, harmonias e ritmos falavam por si só, e cujo fascínio que exerciam fazia com que os cantores de serestas buscassem nos morros as composições que desejariam gravar.

Mas, de repente, Fukuyama virou pop. E, virando pop, foi adotado pela abordagem pós-moderna da nossa intelectualidade da Idade Mídia. Tal qual Fukuyama, que parece agradecer aos inúmeros movimentos sociais pela transformação da humanidade, mas anuncia que a hora agora é consumir as benesses mercadológicas do capitalismo moderno, os intelectuais agradecem aos grandes músicos que produziram o rico patrimônio cultural brasileiro, mas hoje afirmam que a era agora é a chamada "cultura de massa", que eles definem sob o sentido eufemístico de "folclore pop".

O discurso pós-moderno torna-se mais racional? A racionalidade discursiva se afina com a coerência dos fatos ou converte o discurso científico para o sentido publicitário, da mera reafirmação do fenômeno estudado? Existe problemática sem problema? Pop e popular são exatamente a mesma coisa?

A intelectualidade lança mitos, mas espera-se que trabalhos que se pretendam científicos exerçam uma coerência crítica com os temas analisados. Se são problemáticas, é claro que existem problemas. E, se problemas existem, eles é que devem ser contestados, não aqueles que contestam os tais problemas.

Qual o sentido de uma problemática que não tem problemas, e cujos contestadores são definidos como "preconceituosos", "elitistas" e até "moralistas"? Não se pode analisar os temas com o intuito de contestá-los, porque o parecer crítico, o querer compreender, ainda que não positiva, um problema, tornou-se agora sinônimo de "preconceito".

Só que, na compreensão da cultura popular e da chamada cultura de massa, a atribuição de preconceito ao pensamento crítico acerca de fenômenos da música comercial brasileira e dos valores difundidos pela mídia popularesca é totalmente equivocada.

Primeiro, porque a ideia de preconceito, ou pré-conceito, se baseia na compreensão antecipada de alguma coisa. Ou seja, ela é pré-concebida, tenta-se saber de uma coisa mas não se sabe. Eu não conheço algo mas tento defini-lo, isso é que é preconceito.

Por isso não pode haver preconceito em conhecer uma coisa e não aprovar. Mas a própria intelectualidade apegada aos fenômenos da mídia recorre, na verdade, a dois erros. O primeiro é definir como "preconceituosa" a análise crítica e cautelosa, mas que não aprova o fenômeno abordado. O segundo erro é o inverso do primeiro, quando não se conhece o fenômeno em questão, mas sua aprovação é atribuída como "ruptura de preconceito".

CULTURA DE MERCADO

A cultura de mercado é um fenômeno novo no Brasil. Enquanto a mídia e a indústria cultural eram analisados e questionados pela intelectualidade da Europa e dos EUA, pelo menos, desde meados das décadas de 20 e 30 do século passado, no Brasil essa análise se dá desde os anos 60, e, com mais frequência, desde os anos 80.

Afinal, o Brasil ditatorial não permitia uma vida intelectual livre e aberta, e mesmo a indústria cultural é ainda uma novidade, vista a princípio com o deslumbramento otimista. Vide a Jovem Guarda, o Tropicalismo, os programas do Chacrinha.

A intelectualidade passou a seguir uma linha de raciocínio que tenta fundir os sentidos de cultura popular e cultura pop. Essa ideia se baseia na tese de que para o povo da periferia ou das zonas rurais basta apenas a inclusão do mercado de consumo capitalista.

Com isso, a "qualidade de vida", segundo esta tese, está exclusivamente vinculada à relativa prosperidade sócio-econômica do povo pobre, ou, pelo menos, de uma parte menos sofrida do povo pobre. E, dessa forma, a intelectualidade que defende essa tese acredita que a prosperidade econômica, dentro de um contexto político democrático, necessariamente trará cidadania, justiça social e sabedoria para as classes populares.

É uma tese neoliberal. Mas a intelectualidade que, tendenciosamente ou não, se associa à esquerda pensante, tenta acreditar nessa tese como se seu sentido neoliberal fosse apenas mera coincidência. Hermano Vianna, Ronaldo Lemos, Milton Moura, Bia Abramo, Pedro Alexandre Sanches, Rodrigo Faour, Roberto Albergaria, entre tantos outros, defendem tais teses e são integrantes de uma linhagem intelectual dominante, para a qual o zelo da cultura popular está necessariamente associado à indústria cultural.

O POVO "É BOM NAQUILO QUE É RUIM", DIZ A INTELECTUALIDADE DOMINANTE

Quantas falhas pode causar essa tese, apesar dela, aparentemente, estar solidária com o povo pobre, ao qual é associado um tipo de música e de valores sociais duvidosos. Apesar dela exaltar o povo pobre, em comentários elogiosos num discurso que se pretende científico, mas que, no decorrer do texto lança mão de uma retórica publicitária, com comentários irônicos, alegações panfletárias, comentários dignos de resenhas.

No texto "Esses pagodes impertinentes...", do sociólogo baiano Milton Moura, publicado em 1996 na revista Textos de Cultura e Comunicação da Universidade Federal da Bahia, é um sintoma disso. Num discurso claramente irônico, Moura, fazendo uma clara propaganda do pagode 'sensual' surgido a partir do fenômeno É O Tchan, faz ironia com os comentários que reprovam esse tipo de música, claramente comercial e de gosto duvidoso.

Moura acusa aqueles que reprovam esse fenômeno de "elitistas", e cria uma estranha tese de contraste entre o "popular" e o "sofisticado". Ele deixa subentendido no discurso de que o sentido da cultura do povo pobre está na baixa qualidade musical, enquanto a música de boa qualidade é definida, em sutil ironia, como "sofisticada".

O discurso trabalhado no texto por Moura pouco tem da abordagem científica exigida pela comunidade acadêmica, apesar do periódico que o publicou contar com um conselho editorial integrado por professores de várias universidades do Brasil. O que indica o quanto as exigências de rigor acadêmico, que pesam muito nos anônimos que pretendem se inscrever nos cursos de pós-graduação, não pesam nos chamados professores-grifes, que possuem uma projeção fácil não só no meio acadêmico, como também na imprensa.

Na imprensa, o caso de Pedro Alexandre Sanches também é sintomático. É evidente que, num órgão de imprensa, a liberdade discursiva é maior do que um periódico acadêmico, que determina um padrão de produção de texto que esteja próximo de uma monografia. Mas, no caso do texto sobre a cantora Gaby Amarantos, conhecida como a "Beyoncé do Pará" (em alusão à versão de "Single Ladies" que a cantora paraense, imitando a matriz, gravou e se tornou sucesso local), Sanches estabelece um julgamento claramente etnocêntrico.

O título "A índia negra branca do Pará" soa tendencioso. Sanches avalia o tecnobrega, estilo do qual Gaby Amarantos faz parte, de acordo com referenciais que são próprios do jornalista que o escreve, e não do povo que consome o tecnobrega, um tipo de música comercial, baseado numa variação mercadológica do forró-brega, a partir da Banda Calypso.

Afinal, o povo pobre acaba sendo idealizado por Pedro Alexandre Sanches. O povo sofre miséria, é vítima de problemas acerca da Educação, Saúde, Segurança, saneamento e outros, mas de repente é possuidor de uma "sabedoria" que só o autor entende. O povo não entende essa "sabedoria".

É um etnocentrismo "positivo", que expressa a mitificação da "periferia legal", que o povo "sabe" sem saber. Trata-se de uma visão romântica do inconsciente coletivo popular, que trabalha numa tese bastante discutível de que o povo produz lições de "sabedoria" mas que não têm ideia de que essa "sabedoria" singifica.

Daí a contradição. Um povo que faz sem saber, que sabe mas não tem consciência desse saber. No fundo é uma farsa discursiva que, na prática, atribui ao povo pobre referenciais que só são do conhecimento daquele que, com a imaginação de quem cria um conto de fadas, escreve sobre o povo pobre.

O público das tendências da música brega-popularesca - a pretensa "música popular" que aparece nas rádios - não tem ideia do que é a antropofagia cultural pensada por Oswald de Andrade, e nem sequer tem ideia de quem ele seja.

Do mesmo modo, como creditar como "cultura de rua" uma pretensa cultura que se baseia no simples consumo do que o rádio toca. Já não é mais a sociedade que transmite valores, mas rádios, TVs e jornais "populares", mas muitos deles controlados por grupos oligárquicos - sobretudo as rádios FM, ligadas a grupos políticos apadrinhados desde as manobras político-midiáticas de José Sarney e Antônio Carlos Magalhães - que tentam estabelecer os parâmetros e paradigmas do que a intelectualidade etnocêntrica chama de "cultura das periferias".

O próprio fato de muitos desses ídolos serem tutelados por empresários - Milton Moura, sem expressar a menor desconfiança, fala de "grupos com donos", coisa que vale também no caso do tecnobrega - , de suas apresentações serem superproduzidas, das chamadas "aparelhagens" (espécie de "equipes de som" do espetáculo tecnobrega), que lidam com tecnologia de ponta e faturam milhões de reais por mês, contradiz o caráter de "cultura da periferia" de tendências como o tecnobrega, o "funk carioca", a axé-music, o "sertanejo" e outras tendências "populares" de mercado que apostam na visão domesticada do povo pobre.

Por isso, não dá para creditar como "cultura da periferia" ou "cultura das ruas" algo que é tutelado por empresários, que envolve grande quantia financeira, que está associada à grande mídia - ainda que seja pelos referenciais que ela oferece para a produção dessa "cultura popular" - , que, por sinal, difunde essa "cultura" com insuspeito apoio.

Além disso, a apologia à mediocridade cultural, em detrimento da cultura realmente popular de qualidade que artistas como Jackson do Pandeiro, Tião Carreiro, Marinês, Ataulfo Alves, Luiz Gonzaga e Pixinguinha fizeram no passado, se baseia numa visão paternalista da intelectualidade atual, claramente etnocêntrica. Por mais que esses intelectuais "reprovem" o etnocentrismo e o paternalismo.

Afinal, a apologia deles se resume na seguinte ideia: "O povo é bom naquilo que é ruim". O que eles querem dizer não é outra coisa senão esta: "Deixemos que o povo faça coisas ruins, aplaudamo-nos, é o que eles sabem fazer, é o que a maioria gosta".

A apologia acaba se afinando às regras do mercado popularesco, que alimenta todo um sistema de valores sociais baixos, que em nada contribuem para resolver a miséria e as desigualdades sociais existentes.

Isso cria outra contradição. Se um Pedro Alexandre Sanches da vida atribui "sabedoria" no tecnobrega, ou se um Roberto Albergaria define como "feminismo" a "autoesculhambação" das chamadas "popozudas", eles não somente tentam dissimular a miséria do povo pobre e seus problemas com uma falsa "auto-suficiência" pela suposta "sabedoria", definindo como "movimentos sociais" o mero ato de consumo dos "sucessos do povão".

Esses intelectuais, na verdade, acabam afirmando que o povo só produz coisas ruins e medíocres, que apenas temos que acreditar que elas "são boas", se não para a gente, mas para o povo que a consome e "produz", sob o sustento de empresários. E, por isso mesmo, contradizem, porque, se num momento dizem que o povo "sabe" sem saber, no outro admitem que o povo sabe pouco. Num momento, o povo é tomado de referenciais que não conhece, que vão do Modernismo de 1922 ao punk rock inglês, de outro há a resignação intelectual de que o povo "só sabe aquilo" (a tal mediocridade cultural).

Assim, as vozes que se pretendem solidárias à cultura popular, à cultura das ruas, das periferias, das zonas rurais, no entanto se submetem aos seus próprios preconceitos etnocêntricos. O que pesa negativamente numa elite que deseja zelar pela cultura popular, sem separar o joio comercial e popularesco do trigo artístico-cultural.

Afinal, tais teses acabam se alinhando com ideais que a intelectualidade, mesmo numa postura dita "de esquerda", diz questionar, como a tese de Fim da História de Francis Fukuyama, que, aplicada à música brasileira, está presente nos textos apologistas do brega-popularesco, sobretudo nos artigos de Pedro Alexandre Sanches. Além disso, a apologia concorda com muitos procedimentos neoliberais aplicados ao espetáculo do entretenimento.

Definitivamente, a abordagem apologista à ideologia brega-popularesca nada contribui para o progresso do povo pobre, apenas servindo para reafirmar o mercado popularesco que enriquece as elites e oligarquias envolvidas.

FONTES: Revista Fórum, Textos de Cultura e Comunicação, Caros Amigos, Blog Controvérsia.

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