Por Alexandre Figueiredo
Injustiçado pela hegemonia do transporte rodoviário no Brasil, o trem poderia ser uma boa alternativa para minimizar a quantidade de caminhões que rodam nas rodovias, desgastando freqüentemente o asfalto, tornando-o perigoso. O excesso de transportes pesados nas estradas é um dos motivos decisivos para uma série de transtornos que dão nas inúmeras tragédias que dizimam milhares de brasileiros todo ano, numa quantidade que chega a ser comparável com as mortes causadas nos recentes conflitos no Iraque.
A desvalorização do transporte ferroviário - tal como o marítimo, excelente alternativa para a economia brasileira diante do vasto território oceânico nacional - , mesmo com todas as vantagens como menor custo no transporte de cargas e menos gastos com recuperação de asfalto que o sistema traria, é fruto da memória curta que atinge os brasileiros, junto à obsessão exagerada ao "novo", numa ânsia de atingir o desenvolvimento e a modernidade a qualquer custo, menosprezando tradições, como se elas, em si, fossem sinônimo de atraso. Não são.
Os países mais desenvolvidos, muitos deles com experiência de terem sido vítimas do atentado à memória, pois da Antiguidade até os nossos dias, boa parte do legado histórico, artístico e bibliográfico da humanidade se perdeu em meio a guerras e à falta de políticas de preservação, causadas muitas vezes por preconceitos sociais e por uma abordagem histórica que só se tornou socialmente mais abrangente nos últimos oitenta anos, através da História das Mentalidades lançada pelos cientistas sociais dos Annales franceses, que buscaram pesquisar os agentes históricos anônimos, que não eram governantes, militares ou artistas, mas gente do povo, muitas vezes cuja identidade se perdeu na restrita convivência com os entes mais próximos em seu tempo.
Por isso mesmo, os países mais desenvolvidos, com referenciais sólidos da história antiga, como o velho continente Europeu, buscam respeitar melhor a tradição. Países que nem são banhados por oceanos mas por rios, como a Alemanha, possuem um transporte marítimo bem mais atuante que o brasileiro. E o transporte ferroviário, então, nem se fala: o famoso Expresso Trans-Europeu, com seus trens modernos e confortáveis, é uma das referências de sucesso, êxito e respeito às tradições, que podem se adaptar aos tempos modernos sem sacrificar as lições e referências mais antigas.
O Brasil, país de história mais recente, cujos erros políticos acostumaram mal a sociedade, que menospreza o passado mesmo nas suas melhores manifestações, ainda não viu a importância sócio-cultural de referenciais como o transporte ferroviário, não só essencial para a economia brasileira do passado, quanto também para o turismo e simples transporte de passageiros. Felizmente existem, em várias esferas da sociedade brasileira, um número pequeno mas dedicado de pessoas que reclamam a valorização do melhor de nosso legado, ao invés de embarcar no perecível establishment do entretenimento descartável e na valorização do superficial e fútil que está na moda.
Entre essas iniciativas está a dedicação do IPHAN em torno das mais diversas áreas do patrimônio histórico e cultural. Minimizando a subestima ao transporte ferroviário, o IPHAN decidiu investir na preservação da memória deste sistema de transporte, através da avaliação do patrimônio deixado pela Rede Ferroviária Federal, estatal que entrou em liquidação em 17 de dezembro de 1999 e que foi declarada extinta pela Lei Federal n° 11.483, de 31 de maio de 2007.
A 13ª Superintendência Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, unidade do instituto sediada em Minas Gerais, deu início a um levantamento de estações ferroviárias, garagens e oficinas de trens e diversas edificações relacionadas à RFFSA, como a residência de diretores e chefes da empresa, visando a preservação deste patrimônio. Muitas dessas edificações se encontram em ruínas ou abandonadas, embora sejam registros de um tempo áureo, quando as ferrovias influíram expressivamente no desenvolvimento econômico e social do país.
Em todo o Brasil, estima-se que o número de imóveis que pertenciam à RFFSA seja de cerca de 52 mil. A maior parte se encontra nos Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Ainda falta avaliar a dimensão exata do patrimônio da RFFSA nesses Estados, que é pouco conhecida.
A tarefa do IPHAN em avaliar o legado com valor histórico, artístico e cultural da RFFSA foi determinada pela portaria 01, de 11 de dezembro de 2007, da Procuradoria Geral da União, que além de atuar no espólio da antiga estatal, estabelece, no inciso II do artigo 2º, a atuação do IPHAN "nas ações referentes aos bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA, ainda que operacionais". O texto estabelece que os bens móveis, como trens e equipamentos, e imóveis, pertencem à União, o que é aproveitável para atividades operacionais (ou seja, pôr os trens em funcionamento e administrar o trabalho), ficou a cargo do Departamento Nacional de Infra-Estrutura em Transportes (DNIT).
A REDE FERROVIÁRIA
A RFFSA - Rede Ferroviária Federal S/A - foi fundada em 1957 através da autorização da Lei 3.115, de 16 de março de 1957. A estatal resultou da fusão de várias empresas ferroviárias, que já eram notórias pela sua trajetória histórica de várias décadas, como Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, Rede Ferroviária do Nordeste, Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro, Estrada de Ferro Bahia-Minas, Estrada de Ferro Leopoldina, Estrada de Ferro Central do Brasil, Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, Rede de Viação Paraná-Santa Catarina e Estrada de Ferro Dona Teresa Cristina.
Eram ao todo dezoito ferrovias regionais. Houve outras que não integraram a RFFSA, porque estavam arrendadas aos governos estaduais, como a Estrada de Ferro Santa Catarina e a Viação Férrea Rio Grande do Sul, e outras que tiveram regime especial de administração, como a Estrada de Ferro Ilhéus e a Estrada de Ferro Tocantins.
A Rede Ferroviária Federal tinha como objetivo promover o desenvolvimento sócio-econômico através da exploração do transporte ferroviário. A rede esteve em atividade por pouco mais de 40 anos, até suas ferrovias serem desestatizadas, uma a uma, pelo governo Fernando Henrique Cardoso, em 1998, ano de sua liquidação. Antes de ser liquidada, porém, a RFFSA incorporou ao seu patrimônio a Ferrovia Paulista S/A (FEPASA), cuja malha ferroviária foi posteriormente privatizada.
A liquidação da empresa foi efetivada em 17 de dezembro de 1999, mediante deliberação da Assembléia Geral dos Acionistas. Dez dias antes, a estrutura da empresa foi dissolvida pelo Decreto nº 3.277, cujas determinações sofreram alteração três vezes: pelo Decreto nº 4.109, de 30 de janeiro de 2002, pelo Decreto nº 4.839, de 12 de setembro de 2003, e pelo Decreto nº 5.103, de 11 de junho de 2004. A Medida Provisória nº 353, de 22 de janeiro de 2007, determinou a extinção da RFFSA, e foi transformada na Lei 11.483, de 31 de maio de 2007. As ferrovias que integraram a RFFSA ainda estão em processo de privatização.
CONVÊNIOS SERÃO FEITOS
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional contratou uma empresa para detectar e estudar os bens relacionados. O objetivo é saber quais são os imóveis e qual o seu estado de conservação, para assim decidir que propriedades serão assumidas pelo instituto. O diagnóstico teve início em janeiro último, no trecho compreendido entre Belo Horizonte e Diamantina (terra natal do ex-presidente Juscelino Kubitschek), e seu prazo está previsto para abril.
Não existem ainda informações a respeito, mas de acordo com o superintendente do IPHAN em Minas, Leonardo Barreto de Oliveira, a primeira coleta de dados será fonte para uma nova pesquisa, e se realizar este mês (fevereiro). Leonardo também acrescenta que um dado grosseiro indica que, só em estações de trem, teriam existido em Minas Gerais cerca de 1.200, e que boa parte dessas estações podem ter sido desabadas.
A responsabilidade do IPHAN em pesquisar o patrimônio da RFFSA não implica que todos os bens serão tombados e que a instituição vá bancar a restauração de todos eles. Mas muitos desses bens serão preservados. O IPHAN concentrará sua atuação na gestão e na fiscalização dos espaços, que serão aproveitados para projetos culturais. A administração, no entanto, será repassada, através de convênio, às prefeituras e demais órgãos públicos, a organizações não-governamentais e de sociedade civil de interesse público. Estando os projetos aprovados, essas entidades poderão fazer das antigas estações ferroviárias bibliotecas, museus, centros de arte e espaço para eventos culturais, desde que atendam às condições de preservação patrimonial determinadas pelo IPHAN.
Em Belo Horizonte, uma casa existente na Rua Sapucaí está cogitada pelo IPHAN para abrigar o Museu Ferroviário, intenção que, para ser realizada, depende da transferência de responsabilidade do imóvel da Secretaria de Patrimônio do Governo Federal para o IPHAN, o que, segundo o instituto, irá se realizar ainda este ano. O IPHAN espera que, no orçamento federal para 2008, sejam destinados recursos para o IPHAN investir no imóvel, higienizando e tratando as peças e restaurando as imediações do próprio imóvel, de forma que garanta a inauguração do museu para 2009.
FERROVIAS ABANDONADAS
O inventário dos bens móveis e imóveis ocorre dentro de um quadro preocupante de abandono de muitas antigas estações. O site Estações Ferroviárias, do escritor Ralph Mennucci Giesbrecht, especializado no resgate histórico das ferrovias brasileiras, mostra uma relação de lugares esquecidos, como vilas ferroviárias, fazendas e colônias das quais só restam ruínas. Eram povoados que existiram sobretudo por influência do transporte ferroviário que passou pelas áreas que foram, então, ocupadas por residências e outras construções. Há lugares localizados até mesmo em cidades importantes como Araraquara e Piracicaba, ambas no interior paulista.
Em Minas Gerais, os prédios da antiga ferrovia de Araguari, no Triângulo Mineiro, onde funcionaram no passado o almoxarifado e a oficina esperam a ajuda do IPHAN para a restauração desses imóveis. O lugar foi visitado por técnicos do IPHAN, só que da 14ª Superintendência Regional, sediada em Goiânia, cujo Estado, Goiás, integrou a antiga linha ferroviária que começava em Araguari. O prédio da estação, conhecido como Palácio dos Ferroviários e erguido em 1910 pela Estrada de Ferro Goiás (detentora da linha entre Araguari e as estações do oeste mineiro e Goiás), foi restaurado pelo poder público para abrigar a sede da prefeitura de Araguari, o museu ferroviário, algumas secretarias municipais e um espaço cultural. A antiga estação de Araguari foi inaugurada em 1896 pela Companhia Mogiana, e, na segunda metade dos anos 1950, o presidente Kubitschek investiu na implantação de trens de luxo na cidade.
Por sua vez, o presidente da Oscip (Organização de Sociedade Civil para Interesse Público) Movimento Amigos do Trem, Paulo Henrique do Nascimento, o inventário dos bens a ser assumido pelo IPHAN tem caráter de urgência, uma vez que o movimento reivindica há anos a implantação de um trem turístico ligando as estações de Matias Barbosa e Barbacena, na Zona da Mata mineira, apelidado de "Expresso Pai da Aviação", em homenagem ao ilustre mineiro Santos Dumont, pai da aviação, e em comparação da função progressista dos antigos trens com o progresso do transporte aéreo para a humanidade.
Nascimento pretende também implantar escolas profissionalizantes nas estações que forem reativadas, e já entrou em contato com duas universidades federais para estabelecer convênio. Ele também conta com recursos de R$ 1,4 milhão liberado pelo Ministério do Turismo para a recuperação dos trens e vagões ao longo do trecho Matias Barbosa-Barbacena. Mas o início das obras ainda depende das prioridades que o DNIT e o IPHAN darão para o trabalho.
O presidente do Movimento Amigos do Trem lamenta que a burocracia, na medida em que faz demorar a realização dos trabalhos, faça com que trens e vagões estejam em processo de degradação. A RFFSA já havia desativado o ramal em 1999, oito anos antes de sua extinção.
O IPHAN anunciou também que recebeu um pedido de cessão para os Amigos do Trem de uma estação ferroviária em Juiz de Fora. No entanto, o pedido só será efetivado depois do final das férias do presidente nacional do IPHAN, Luiz Fernando de Almeida, já que depende também de negociações com o Ministério Público da União.
FONTES: Site Estações Ferroviárias (Ralph Mennucci Giesbrecht), Wikipedia, Imprensa Nacional, Hoje em Dia (BH).
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