Por Alexandre Figueiredo
- Esse anteprojeto de mestrado reclama das coisas muito mais que velho ranzinza - diz um professor universitário da pós-graduação em Comunicação.
- Ele põe nomes da moda contra a parede, analisa problemas demais sobre a mídia - diz outro professor.
Tomados de preconceito - provavelmente o aspirante a mestrando é um desses nerds sem muita influência social na Faculdade e sem qualquer "pistolão" por trás - , esses professores vetam automaticamente o anteprojeto, cujas cópias em mãos se destinam à lata do lixo.
Enquanto isso, os mesmos professores aceitam, sorridentes, os mesmos anteprojetos que falam coisas abstratas do tipo "O símbolo e o signo: fenomenologias do sentido" e "Problemáticas da comunicação globalitária: análise de método e discurso". Coisas já feitas anos antes e praticamente imitadas por outros alunos, nos anos seguintes, com pequenas variações que nada acrescentam de substancial na produção acadêmica pós-gradual. Sem saberem da situação, os professores simplesmente abortaram uma excelente carreira intelectual daquele nerd cujo anteprojeto se antipatizaram completamente.
Esse é um caso fictício, mas ilustrativo do que acontece nas Universidades brasileiras. A veiculação de senso crítico é um tabu até mesmo em instituições onde ele, em tese, é bem vindo. O senso crítico serve mais, e olhe lá, para as conversas de bar, e mesmo assim com pouco movimento. Não se pode polemizar, não se pode apontar problemas e erros. Interesses por trás desses erros estão em jogo.
Imagine se, na Europa e nos EUA, houvesse restrições desse tipo. Certamente boa parte da intelectualidade, muitos de nossos maiores pensadores teriam sido barrados logo nas primeiras inscrições para a pós-graduação, ou talvez para a mera especialização. A História da Intelectualidade, como conhecemos, simplesmente não existiria. Barrados na pós-graduação, os intelectuais teriam dificuldade para publicar ensaios. Por conseqüência, teriam maior dificuldade para publicar livros. Sem isso, não teriam reputação suficiente para se inscreverem em ciclos de palestras. Suas idéias somente sobreviveriam marginalmente, em conversa de amigos ou, com mais sorte, em fanzines ou em "palestras" embriagadas nos bares da vida.
Como teríamos um Noam Chomsky falando sobre lingüística ou sobre os males do capitalismo internacional, se seu primeiro anteprojeto de pós-graduação "morresse" nas mãos de examinadores presunçosos? Como teríamos Paul Virílio, Jean Baudrillard, Michel Mafesoli, Michel Foucault, Umberto Eco, se, quando eles entregassem seus primeiros anteprojetos de mestrado, os professores rejeitassem terminantemente, por acharem suas idéias fruto de desvarios ressentidos de nerds "pouco influentes" no ambiente discente (discente=relativo a alunos) da Faculdade? Ou mesmo um Alan Sokal que volta e meia aparece para sacudir a intelectualidade mundial, se ele fosse barrado nas salas de pós-graduação, teria que, quando muito, usar um site da Internet oferecido por um provedor gratuito para veicular suas idéias para duas ou três pessoas solidárias.
No Brasil, onde existem grandes cientistas com quantidade e qualidade equiparados à Europa e EUA, mas que são obrigados a saírem do país porque não recebem recursos financeiros, técnicos e tecnológicos suficientes para levarem suas pesquisas adiante, a intelectualidade viciada das Universidades transforma seus ambientes em antros de delírios retóricos, onde os trabalhos mais badalados são aqueles de palavras inofensivas, ingênuas, amontoadas em mais de duzentas páginas de textos prolixos e desinteressantes.
São textos de Ciências Sociais que repisam sempre nos mesmos rituais religiosos do interior nordestino tão fartamente estudados anos antes. Antes, mudavam-se até as cidades ou povoados, mas talvez nem isso mais mude, não bastassem as mesmas descrições dos rituais religiosos, a mesma retórica, a mesma narrativa. Se fossem acrescentar alguma coisa, não seria algo demais, mas tais trabalhos apenas repetem o estudado antes, mudando apenas os personagens e a região, mas mantendo o mesmo conteúdo. E, nas faculdades de Comunicação, textos saturados de análises semióticas, verdadeiros plágios de Merleau-Ponty com Ferdinand de Sausurre, imitações do discurso destes dois filósofos, sem no entanto seguir o talento e a originalidade deles. Ou então cópias do discurso irônico de Jean Baudrillard sem o raciocínio crítico do autor original, mas apenas com a imitação estéril do seu dom de causar polêmica.
Tudo vira, tão somente, uma linha de montagem, pronta para atender às vaidades acadêmicas dos professores brasileiros, que, como anfitriões extravagantes de um país ainda subdesenvolvido, tentam cortejar a intelectualidade européia e norte-americana com o jogo das aparências, com o aparato de uma produtividade intelectual que, aos olhos dos acadêmicos de fora, podem gerar risadas ou demonstrações de pesar, dependendo do caso. Porque é uma produtividade intelectual que, na sua forma, parece dentro das normas acadêmicas "saudáveis", mas, no conteúdo, é apenas um academicismo tímido, acanhado, feito mais para respeitar o rigor das hierarquias e da estabilidade forçada que o falso equilíbrio social, movido pelo conformismo e pela "paz sem voz" escrita por Marcelo Yuka e cantada por Marcelo Falcão da banda O Rappa, que esconde os problemas por sob o tapete para não prejudicar as relações sócio-políticas e econômicas em andamento no Brasil.
UM "BOM TRABALHO" ACADÊMICO... PARA ENFEITAR AS ESTANTES
Imaginemos, para o âmbito da Comunicação Social, um caso fictício, com base na experiência observadora deste autor como estudante de Comunicação da UFBA e bacharel já formado. Não é necessariamente uma experiência pessoal, mas baseada em casos alheios observados. Ainda que barrado nas portas da pós-graduação, o autor deste texto não irá descrever o caso pessoal, nem em nomes nem em alter egos, até porque isso não interessa. Aqui não interessam pessoas, mas procedimentos. O que se faz, o que é feito e o que se deixou de fazer: é isso que importa aqui.
Digamos que o aluno muito querido dos colegas e professores da Faculdade faça um texto sobre a televisão brasileira. Ela, sabemos, possui sérios problemas. Para o cidadão bem-informado, a TV aberta, aquela que existia antes do advento dos canais por assinatura, transmitidos por outros meios tecnológicos avançados, é simplesmente insuportável, difícil de a ela assistir. E muito de suas irregularidades é fruto de interesses políticos e econômicos que, para os estudantes de Comunicação, são muito mais do que óbvios: emissoras controladas por políticos ou oligarquias empresariais, interesses econômicos (gastar menos e faturar mais) acima dos interesses sociais, luta obsessiva por altos pontos de audiência, auto-censura empresarial, autoritarismo de certos anunciantes.
Correto. Eis o pano de fundo para um trabalho crítico. Baudrillard teria feito maravilhas com este tema. Mas o aluninho bem-aplicado limita a mencionar a palavra "problemática" como mero enunciado. "Problemática", para a burocracia intelectual brasileira, é um eufemismo para "fenomenologia" (que é uma palavra "difícil"), ou seja, para a evocação, acrítica e meramente descritiva, do tema apresentado. É muito menos um problema a ser apresentado do que uma novidade a ser exposta. Um pretexto para chamar a atenção das pessoas para um tema que se anuncia "polêmico" mas cuja abordagem carece até da mais leve das polêmicas.
Vejamos. O referido candidato decide localizar o tema, para não falar apenas dos aspectos gerais da TV aberta. Ele então se concentra em alguns programas populares, como os de Xuxa e de Ratinho (Carlos Massa). Beleza. Os amigos da Faculdade que fizeram bacharelado com o aspirante a mestrando devem imaginar: "Esse é um trabalho demolidor". Acreditam que o projeto abrirá as mentes das pessoas para os males da TV aberta e seus vícios em prol da grande audiência.
Apoiado por uma grande quantidade de referências bibliográficas, o aspirante a mestrando, sabendo das regras da sua Faculdade, no entanto procura domesticar seu trabalho, reduzindo o máximo de capacidade crítica. Percorrendo o terreno cômodo da semiótica e da semiologia, o que poderia ser um trabalho de impacto, ao nível dos grandes pensadores europeus, acaba sendo mais um trabalho morno, ou melhor, frio até, de análise do discurso.
Seu projeto constitui na análise dos programas de Xuxa e Ratinho. Seguindo o roteiro das etapas do projeto, ele expõe suas justificativas, objetivos, metodologia etc., dentro das perspectivas "científicas" da pós-graduação. Como se preocupou mais em analisar aspectos formais dos programas, conforme promete no anteprojeto, o aspirante, que também conta com boas relações no corpo docente (docente=relativo aos professores) dominante, tem o seu projeto imediatamente analisado.
E o que ele faz com a "problemática" escolhida? Simplesmente faz um relato dos detalhes dos programas analisados. O já mestrando havia gravado no seu vídeo-cassete alguns programas da Xuxa e outros do Ratinho, e a partir daí estabelece uma narrativa a respeito do que acontece nos programas. Sem fazer, aparentemente, muita crítica, apenas "reconhecendo" a escalada da vulgaridade na televisão brasileira, em vagas citações, que não dá para perceber se o mestrando aceita ou não tais "problemáticas". Ele cita e comenta os detalhes de cada programa, e "recheia" sua análise com teoria semiológica e citações de outros autores, mais para "prolongar" o trabalho do que mesmo comparar substancialmente seu estudo. É, praticamente, um desfile de análise de outros autores, sobretudo "prestigiados" na Faculdade, podendo até ser o incômodo Jean Baudrillard como podem ser autores diversos como Saussure, Jean-Francois Lyotard, Luigi Pareyson, Michel Foucault etc..
Há toda uma divagação em torno dos temas, sobretudo na interpretação semiótica de cada detalhe destacado. Por exemplo, não há como escapar de clichês do tipo comparar a apresentadora Xuxa Meneghel a uma princesa de conto de fadas. Fala-se, com exagerada ênfase psico-semântica, na relação de Xuxa com seus "baixinhos", na simbologia de tais atos, na análise contextualizada dos trajes da "rainha", numa "narrativa científica" onde os argumentos do mestrando se alternam com as citadas citações das fontes pesquisadas, mas sem apontar alguma crítica ao fenômeno Xuxa, nem mesmo no que diz à introdução antecipada do comportamento adolescente nas crianças brasileiras e no estímulo das mesmas ao consumismo, promovidos pelo "Xou da Xuxa", nos anos 80.
Quanto ao apresentador Ratinho, os clichês vão para a afirmação de seu "forte apelo popular". Aspectos como o sensacionalismo, a invenção de casos "polêmicos" e o mershandising são até mencionados, mas nenhum aspecto negativo ou subliminar quanto ao fenômeno é mencionada. Nem mesmo a ideologia do espetáculo, dentro do contexto da indústria cultural numa sociedade capitalista, chega sequer a ser vagamente citada.
No conjunto do trabalho, o que se viu foi apenas um exame sob o enfoque semiológico dos fenômenos Xuxa e Ratinho, sem qualquer análise crítica que ponha em xeque a validade dos dois fenômenos. Com isso, o mestrando atendeu aos interesses da burocracia acadêmica e da vaidade dos professores envolvidos, incluindo seu orientador. E atendeu a um oportunismo ocasional: embarcou na carona de dois fenômenos da televisão brasileira, criou-se um simulacro de análise de discurso (restrita a clichês de "signos", "símbolos" e "índices") e, da "problemática" anunciada, nenhum problema foi mencionado. Entre mortos e feridos, salvaram-se todos, menos a função social da Comunicação, desperdiçada em mais um trabalho acrítico dotado de pretensa objetividade. E, diante de sorrisos de satisfação da sociedade acadêmica, que finge destinar o trabalho apresentado à "toda a sociedade", acaba aprovando uma monografia que só é um bom trabalho para enfeitar as estantes das bibliotecas universitárias.
A FUNÇÃO SOCIAL DA CRÍTICA
O exemplo citado é fictício, mas serve de amostra do que são os trabalhos acadêmicos, não apenas as teses de mestrandos ou doutorandos sobre Comunicação, mas também de artigos de professores que integram a burocracia acadêmica.
É um exemplo comum em várias universidades, mas aqui cabe não se preocupar em nomes, mas em procedimentos. É certo, todavia, que o caminho da intelectualidade é afetado por essa verdadeira barreira, e que o caso não se limita ao Brasil. Mas é justamente neste país que a burocracia intelectual se torna mais forte, onde já temos problemas demais no âmbito do mercado acadêmico, onde mais se importam as "grifes" autorais, o compadrismo, o clientelismo e os padrões ideológicos que garantem a estabilidade das relações docentes envolvidas.
Esse cuidado da burocracia intelectual em não investir em trabalhos realmente polêmicos, temendo uma instabilidade sócio-ideológica que pode prejudicar a estabilidade dos já suados investimentos estatais nas pesquisas acadêmicas, pode garantir, pelo menos durante algum tempo, o equilíbrio social aparente diante do não questionamento de problemas que, no entanto, sofrem o respaldo ou o consentimento de amplas camadas sociais.
No entanto, a realidade depois pode se tornar desfavorável para uma burocracia acadêmica que, durante anos, se demonstra estéril em trabalhos que apenas se tornam inofensivos discursos semióticos ou histórico-descritivos. Na medida em que esses trabalhos se tornam sucessivos, surge então o problema da função social dos mesmos. Cinicamente, coordenadores de curso afirmam o desejo de verem esses trabalhos burocráticos ao alcance da sociedade. Defendem no discurso a função social que combatem na prática. Ou então que até admitem, mas dentro dos limites do conformismo social. Como, por exemplo, no caso dos trabalhos de Ciências Sociais, mostrar sucessivas experiências religiosas de povos interioranos serve apenas para mostrar o "rural" e o "regional" em oposição à idéia de "urbano" e "cosmopolita".
Muitas vezes há também a própria estrutura ideológica da burocracia intelectual. Ela tende a defender projetos ideológicos, e por isso não lhe interessa, por exemplo, melhorar a televisão aberta, como também não interessa a determinados políticos nordestinos combater a seca no Agreste. Até porque a burocracia intelectual, por oportunismo, quer preservar um "diferencial" para uma possível programação de TV da sua Universidade. Mesmo que esse "diferencial" acrescente pouco, e muito pouco, para a programação comercial da televisão aberta, talvez significando os mesmos padrões da TV comercial de 25 anos atrás, apenas acrescido de alguma inclinação "social".
O senso crítico, que no Brasil é sinônimo de atividade "anti-social" ou "ressentida", em outros países é usado como forma de promover melhorias das mais diversas. Mesmo criando instabilidade e até derrubando mitos e totens considerados "inabaláveis", a transmissão e expressão de senso crítico não é desencorajada, pelo contrário, os próprios "totens" são reavaliados, e seus beneficiários têm que prestar contas para a sociedade. Pouco importa se eles acumularam uma reputação de anos, se eles demonstraram algum erro sério, são imediatamente desacreditados, pouco importa a influência que tenham no poder. No Brasil, infelizmente, a corrupção e outros equívocos somente são denunciados quando alguém do grupo de privilegiados é traído e resolve denunciar.
Num país onde o corporativismo absolve até senadores evidentemente corruptos e trata como "acidente" um crime cometido por um veterano jornalista, é difícil a intelectualidade brasileira se renovar de maneira substancial. É preciso muito jogo de cintura, para ao menos diluir menos os trabalhos contestadores, camuflando-os com muita retórica "inofensiva".
Por isso mesmo, existem blogs bem mais interessantes que muitos trabalhos acadêmicos. A verborragia intelectual arranca aplausos e garante a estabilidade acadêmica, dentro de um roteiro prévio e previsível de procedimentos. Apenas se expõem fenômenos e fatos e identifica-se significados e significantes dentro deles. Os trabalhos soam corretos no discurso, mas carecem até da mais elementar função social. E, por isso mesmo, mofam nas prateleiras, na vã esperança de, pelo menos, servir de alguma referência bibliográfica para alguns trabalhos posteriores, enquanto a intelectualidade burocrática dança o "Ilariê" nos bacanais universitários.
Enquanto os cães brasileiros não ladram e a caravana burocrática continua, o pensamento corre solto nos países com quadro acadêmico e intelectual mais atuante e saudável.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SOKAL, Alan. A physicist experiments with cultural studies. In: Lingua Franca, New York, may-jun 1996.
SOKAL, Alan. A razão não é propriedade privada. In: Folha De São Paulo, 06 de outubro de 1996.
SOKAL, Alan. Transgressing the boudaries: towards a transformative hermeneutics of quantum gravity. In: Social Text n. 46-47. New York, spring/summer 1996.
Comentários