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MÚSICA BREGA-POPULARESCA NÃO REPRESENTA FOLCLORE



Por Alexandre Figueiredo

Vivemos a hegemonia de um tipo de música classificado como "popular". Nos últimos dez anos, não faltam discursos de antropólogos, sociólogos e jornalistas querendo afirmar essa música como "uma nova visão de cultura popular". São textos que, em dado momento, não conseguem manter a verossimilhança de alguns de seus argumentos, e por isso apresentam argumentações agressivas, desqualificando aqueles que atuam em defesa de uma música popular de qualidade.

Esses intelectuais do popularesco querem reafirmar o tipo de música que reflete uma perspectiva esquizofrênica, sem qualquer preocupação real com a identidade cultural brasileira, esteticamente confuso e que, em seus bastidores, esconde um esquema de dominação social, política e econômica que favorece uma minoria em detrimento de uma maioria e põe em xeque toda uma argumentação de que essa música se trata de um "novo folclore brasileiro".

Os ídolos são muito conhecidos: Zezé di Camargo & Luciano, É O Tchan, Alexandre Pires, Chitãozinho & Xororó, Chiclete Com Banana, Banda Calypso, Tati Quebra-Barraco, Gretchen, Sidney Magal, Leonardo, Daniel, Roberta Miranda, MC Leozinho, Calcinha Preta, Psirico, Exaltasamba, Wando, Trem da Alegria, DJ Marlboro. Em diversas tendências, trata-se de um universo popularesco, ligado à idéia de "cultura de massa", cuja propagação e repercussão, além de sua atual prevalência no cenário cultural do país, se deve mais às decisões de uma minoria de executivos da indústria do entretenimento do que de uma suposta iniciativa natural das populações pobres. A hegemonia da cafonice, na verdade, mostra-se como uma mera invenção da grande mídia, que quer impô-la como um simulacro de cultura popular para ofuscar, assim, a verdadeira cultura popular, autônoma e de difícil exploração comercial tendenciosa. Esse universo é a música brega-popularesca, cuja raiz remete aos tempos em que a palavra "brega" não existia nos dicionários e nem mesmo no colóquio popular.

OS RETARDATÁRIOS QUEREM ESTAR NA MODA

Em 1960, a campanha eleitoral esquentava os ânimos da sociedade, e a grande mídia, na sua primeira investida contra os projetos políticos nacionalistas, se não conseguiu desmoralizar o governo de Juscelino Kubitschek, impediu a eleição do sucessor por ele apoiado, o general Henrique Lott, de vocação legalista, democrática e nacionalista. A mídia estimulou a eleição de um tipo pitoresco, ao mesmo tempo populista e conservador, de discurso rebuscado mas com trejeitos vulgares, ideologicamente instável e aparentemente feito ao gosto de todos, de trabalhadores a empresários. Jânio Quadros venceu as eleições personificando um tipo pretensamente popular, mas ao gosto das classes dominantes, apoiado pela União Democrática Nacional (UDN, partido de extrema-direita na época, cuja linha ideológica foi depois herdada, na ditadura, pela ARENA, e atualmente pelo PFL). Sem um perfil consistente nem um programa de propostas solidamente modernizantes ou democráticas, Jânio realizou um governo medíocre, com frescuras moralistas e um programa econômico impopular. Renunciou com sete meses de mandato, após assistir a um desfile do Dia do Soldado, em 25 de agosto de 1961, em Brasília.

Paralelamente à trajetória presidencial de Jânio Quadros, emergia um tipo de música que não somente se recusava a admitir o fim da música romântica dos anos 50, como a deturpava de forma grosseira, juntando pieguice e morbidez. Nos anos 50, a música predominante no Brasil era a música de fossa, as serestas, herança dos cantores da Era do Rádio como Francisco Alves, Vicente Celestino e, depois, de Nora Ney, Ângela Maria e Cauby Peixoto. Era uma música de valor cultural autêntico, embora já com os primeiros vestígios de intermediação da indústria cultural. Não era uma música "cafona" (termo que só surgiu em 1962, a partir dos artigos de Carlos Imperial), porque refletia o perfil sociológico do país, ainda predominantemente agrário, socialmente melancólico, ainda no nascer de sua modernização urbana. As músicas de serestas, por vezes influenciadas por boleros ou pelos standards da música cinematográfica de Hollywood, tinham sua razão de ser. E suas letras de sentimentalismo melancólico estavam mais próximas do lirismo romântico do século XIX, cuja referência maior era a poesia de Casimiro de Abreu, poeta romântico que ao lado de Castro Alves, criaram os paradigmas das letras populares mais tarde adotados pela então emergente música brasileira. As mortes prematuras dos dois poetas, que não chegaram sequer aos 25 anos de idade, provocaram uma comoção popular que propiciou a apreciação de suas obras, que vieram a expressar uma imensa popularidade póstuma.

A Bossa Nova surgiu para reagir à melancolia do romantismo musical brasileiro. Evocavam os standards de Hollywood, mas sua ênfase era outra, nos elementos de jazz apresentados por esta música cinematográfica. O próprio jazz aparece como elemento musical na Bossa Nova, ao lado do samba. A Era Kubitschek foi marcada por este gênero musical, mas também viu outros cenários de debate e expressão cultural emergirem, no esforço de resgatar o folclore brasileiro e criar novas expressões artísticas no país. O Brasil queria fortalecer sua auto-estima cultural, aproveitando as expectativas de um país em busca do desenvolvimento.

Os primeiros vestígios do que hoje - e não naquela época - conhecemos como "música brega" começaram a negar essa auto-estima. Ao lado da eleição de Jânio Quadros, ídolos da pieguice musical começaram a dar as caras: Waldick Soriano, Nelson Ned e Orlando Dias (do sucesso "Tenho ciúme de tudo"; não confundi-lo com Orlando Silva, o cantor das multidões). Um apresentador de tevê e também comediante, Moacir Franco, como cantor seguia essa linha, antevendo uma tendência seguida por Fábio Jr., quando um talentoso ator se mostra, como cantor, um ídolo de gosto e talento discutíveis. Era uma forma de pegar carona naquilo que já passou, pois a era das serestas e das canções sentimentais havia terminado. Se isso fosse uma forma de saudosismo ou revival, era compreensível. Mas Waldick Soriano & cia. não queriam reviver o passado, mas impor sua música como se fosse "atual", sem dar conta de contextos de época.

Trata-se dos primeiros vestígios do que, naquele início dos anos 60, começou a se conhecer como música "cafona". A denominação foi dada pelo radialista, jornalista, produtor e empresário cultural e letrista de música Carlos Imperial, baseado na expressão italiana cafone, que significa "pobre", "de gosto duvidoso". Essa denominação se deu por volta de 1962, quando João Goulart, o vice do governo Quadros, era presidente e tinha seu mandato "conduzido" pela figura do Primeiro-Ministro. Nessa época, a Bossa Nova ainda estava no auge, mas desde a Era Quadros o interior do país começava a consumir (é essa a palavra) a música sentimentalista que emulava de forma grotesca velhas serestas e boleros, uma espécie de analgésico para povos que viviam em áreas de conflitos rurais e dominação latifundiária. A música "cafona", nessa época, estava ainda associada ao Brasil rural, de tendência conservadora. No plano nacional e urbano, a Bossa Nova e a música popular engajada dos Centros Populares de Cultura, ao lado da renovação do samba pela gafieira (que assimilava elementos do swing de Glenn Miller), eram as tendências mais influentes e populares do cenário brasileiro.

Veio a ditadura militar e a música brasileira resultante da integração entre a Bossa Nova, os CPC's e as tendências folclóricas resgatadas (o samba, o baião etc.) formaram uma sigla que viria a significar, então, uma resistência democrática à repressão militar: MPB, Música Popular Brasileira. Havia uma polêmica, na época, sobre a inclusão ou não da Jovem Guarda nesse bloco, muitos afirmando que a JG era um fenômeno à parte, uma forma nascente do pop juvenil brasileiro, um movimento de música comercial sem raízes na cultura brasileira, embora outros reconheçam o surgimento de "outra" brasilidade, moderna e urbana, a partir deste gênero. Muitos adeptos da MPB chegaram a realizar uma passeata em protesto contra a guitarra elétrica, enquanto os tropicalistas aproveitaram as lições da Jovem Guarda e criaram um hibridismo rítmico.

Com o declínio da Jovem Guarda, vieram os retardatários do gênero, enquanto vários ídolos do movimento migraram, em maioria, para a música romântica. Vieram então nomes como Odair José, Paulo Sérgio, Luís Ayrão, Reginaldo Rossi, Evaldo Braga, Diana e outros, esperançosos em criar uma "segunda Jovem Guarda" quando o ritmo já estava bastante datado e a idéia de música rock no Brasil já havia evoluído para tendências pós-psicodélicas da era pós-Woodstock, como o rock clássico, o rock pesado e o rock progressivo. A eles veio tanto seus antecessores, como Waldick Soriano e Nelson Ned, agora com a adesão do mineiro Agnaldo Timóteo e outros do estilo, como a geração do "milagre brasileiro", Benito Di Paula, Luís Américo, Dom & Ravel (dois discretos ex-integrantes dos Incríveis) e Tom & Dito, entre outros. A trinca romântica-dançante-festiva (respectivamente Waldick, Odair e Dom & Ravel e seus respectivos derivados) da música brega, portanto, tornou-se a trilha sonora do Brasil do AI-5.

Convém aqui contestar a abordagem do professor Paulo César Araújo, que no seu livro Eu não sou cachorro, não, primeiro documento historiográfico sobre a música brega no Brasil, classificou o gênero como um movimento contra a ditadura. Este grande equívoco, movido pela paixão do autor pelo gênero, pela sua pesquisa unilateral (praticamente só deu crédito à música brega) e por seu sub-entendido sentimento de revolta contra a MPB, fez com que ele tentasse, em várias passagens do livro, inverter os papéis entre a música brega e a MPB, gerando uma "nova visão" do brega que é tão falsa quanto a fama de "dedo-duro" de Wilson Simonal (ícone da MPB que teve o azar de ser ídolo durante o AI-5 e ao lado de ídolos bregas, além de ter sido vítima da ganância e intriga de dois seguranças).

Em que pese o fato de que, realmente, houve sucessos de Waldick Soriano e Odair José que foram censurados, a música brega em nenhum momento representou ameaça, ruptura ou mesmo combate à ditadura militar. A interpretação de Araújo dá a falsa e forçada idéia de que a música brega foi uma "saída de emergência" acionada automaticamente pela "verdadeira MPB" (aquela que o autor não associa a um suposto elitismo musical) naquele 13 de dezembro de 1968 em que foi anunciado o quinto ato institucional, aquele que determinou censura e repressão rígidas. Mas a realidade não é assim tão fácil nem simples quanto o autor imagina. Por outro lado, Araújo creditou à MPB "elitista" uma suposta cumplicidade com a ditadura militar. Chico Buarque teria sido um "ícone" do "milagre brasileiro", em contraposição ao "subversivo" Odair.

Neste caso, a verdade está nos fatos que se apresentaram, e não na "nova abordagem" de Araújo. A música brega, com seus ídolos ingênuos quanto ao quadro político nacional, não teria sido de modo algum uma trincheira contra a ditadura. Odair José afirmou, ele mesmo, nas entrevistas, que suas músicas só falam de temas de amor. Ele mesmo se sentiu incomodado com a "nova imagem" de "rebelde" trabalhada pela mídia a partir das abordagens de Araújo. Mas tanto ele quanto Waldick Soriano foram censurados mais por travessura do que por subversão. Foi uma punição comparável a de um castigo dado a um menino que, jogando bola com os amigos, atira o redondo objeto, sem querer, contra a janela da casa de um general.

Por outro lado, Araújo condena, na sua abordagem, os cantores de MPB que adotavam uma postura otimista na época do "milagre brasileiro". Fora eventuais "colaborações" de músicos da MPB em favor do regime (mais por sobrevivência própria no mercado que por realmente gostar do regime), não se pode creditar a músicos como Ivan Lins e Chico Buarque uma postura colaboracionista à ditadura militar. Chico, artista autêntico, sempre deixava claro suas posturas contra a ditadura militar, o fato de uma filha de um general gostar do cantor carioca em nada influi na mudança desta imagem. Várias letras de Chico falavam sobre trabalhadores, sobre injustiças sociais e várias criticavam o regime, como "Apesar de Você", mais tarde revelada como um recado ao general-presidente Emílio Médici, e "Acorda, Amor", sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide e um co-autor fictício creditado na autoria, que fala de um pai de família detido em casa pela polícia, numa daquelas operações de prender acusados de subversão.

A música brega se tornou sucesso explícito porque atendia às expectativas da época. As rádios que difundiram os ídolos bregas eram as que respaldavam o regime, havendo, naquela época, acordos políticos entre rádios "populares" e o governo militar. Em 1967 foi feita uma legislação relacionada ao rádio, buscando cooptar o rádio e a TV aos projetos ditatoriais. Veio, então, a Embratel e o projeto de incremento na política de telecomunicações, fortalecendo o meio televisão e implantando, depois, a tecnologia de imagem a cores, simbolizando a parte midiática do "milagre brasileiro".

A música brega foi um instrumento da ditadura militar para desviar as atenções do povo para a Música Popular Brasileira, que, censurada ou castrada no conjunto da obra, tinha seu acesso ao grande público, se não vetado, pelo menos limitado, havendo o esforço das oligarquias políticas e econômicas em criar ídolos que, aparentemente, se identificassem com as classes populares. Ao otimismo da MPB, a ditadura contrapunha ora com o ufanismo exagerado, ora com o sofrimento resignado da música brega. Ao alcoolismo e à prostituição, tidos como expressões abomináveis, eram vistos como o ambiente de "consolo" do público brega. A cafonice, em si, era a idéia do atraso imposta, e não travestida, como se fosse uma novidade. Era a imposição do grotesco, como meio de distrair as massas para impedir, através do sensacionalismo demodê de seus ídolos, que multidões ainda pensem em temas subversivos ao regime como a reforma agrária e a recuperação do poder de compra perdido pela política de arrocho salarial de Roberto Campos e Otávio Bulhões, durante o governo do marechal Castelo Branco (1964-1967).

Com isso, a estética brega, que invertia a modernidade dos anos 60 com aspectos de mau gosto, posturas desajeitadas, sentimentalismo exagerado, expressões de muxoxo de alguns ídolos, sorrisos escancarados e tolos por parte de outros, e que a memória curta do Brasil pós-Collor e pós-FHC tenta creditar a um suposto movimento underground, ou a uma pretensa rebelião popular pela cafonice, desconhecendo que por trás do sucesso do brega havia interesses de latifundiários, empresários e políticos que precisavam investir num tipo de música que desviasse as atenções do povo ao protesto de gente como Chico Buarque, Nara Leão, Geraldo Vandré, Milton Nascimento, ou mesmo da simples qualidade musical dos músicos pós-Bossa Nova. Vale perguntar: se Araújo afirma que a música brega foi uma resistência contra a ditadura militar, por que os ídolos bregas estavam ausentes de toda a campanha pela redemocratização do país, nos anos 80?

A estratégia deu tão certo, impondo o atraso cultural do brega ao povo do interior do país, através da alfândega mercadológica de São Paulo, quando os programas de TV, entregues ao império do grotesco, difundiram a "nova" música, que outros herdeiros surgiram em prol da cafonice, ao longo destes 35 anos posteriores ao "milagre brasileiro".

Ainda nos anos 70, DJs de música brega investiam em ídolos extremamente grosseiros, exóticos, como Sidney Magal, que personificava um "machista latino" caricato e com insinuação supostamente gay, e Gretchen, moça de glúteos avantajados mas despeitada, com pseudônimo nórdico (seu nome real é Maria Odete Miranda), mas rosto de manicure e olheiras de insônia. O "milagre brasileiro" impulsionava um "clone" de Jorge Ben mais ao gosto do regime: Wando. Vieram então outros ídolos, uns direcionados às crianças, outros aos jovens, criando uma "modernidade" esquizofrênica, com claros elementos cafonas, associados ao grotesco veiculado por emissoras de TV abaixo da faixa de liderança da Rede Globo: Bandeirantes, Record e, sobretudo, a TV Studios (atual SBT). Uma cafonice que emulava tanto a diluição de ritmos nordestinos como a assimilação de tendências da moda, como a disco music.

A EXPANSÃO POPULARESCA PELO LIBERAL-POPULISMO DE COLLOR E FHC

As emissoras de TV da linha populista - Bandeirantes, Record e, mais tarde, SBT - investiram nesse tipo de música que ainda estava em estado bruto. Enquanto isso, havia uma tentativa de um movimento "para exportação" de intérpretes de música romântica cujo principal referencial eram os Bee Gees: Morris Albert, Terry Winter, Pholhas, Light Reflections e os futuros ídolos Michael Sullivan, Fábio Jr. (sob o pseudônimo Mark Davis) e Christian (hoje da dupla Christian & Ralf). O grupo de Michael Sullivan, Fevers (Sullivan era, na verdade, Ivanilton), fez seu teste gravando vários discos com o nome de Década Explosiva.

Nos anos 80, Michael Sullivan e o ex-tecladista de Lafayette & Seu Conjunto, Paulo Massadas, criaram a primeira tendência de "lapidação" da música brega, conforme a definição de kitsch dada pelo estudioso Umberto Eco. Estudando o grotesco na arte européia e em outros fenômenos culturais da Europa e EUA, ele definiu como kitsch o grotesco que assimila elementos de "cultura superior", enquanto o camp seria o grotesco em estado bruto. No caso de Sullivan & Massadas, a "cultura superior" se carateriza pela assimilação de elementos da música soul brasileira dos anos 70, mas corrompida por elementos que variam da música romântica dos Bee Gees e do brega que fez sucesso durante o "milagre brasileiro".

Ao lado de Sullivan & Massadas, a axé-music encara a primeira projeção nacional deturpando os ritmos caribenhos e se configurando como uma resposta comercial ao carnaval pernambucano, cujos ritmos musicais, como o frevo e o maracatu, ainda se constituem em reconhecido valor artístico, o que para a música carnavalesca baiana se torna um critério duvidoso. Desta forma, Luís Caldas, Chiclete Com Banana, Reflexus e, mais tarde, Asa de Águia, Cheiro de Amor, Banda eva, Ivete Sangalo, a fase atual do Araketu, e grupos mais recentes como Babado Novo, Jammil e A Zorra, entre milhares de outros, diluíam os ritmos caribenhos em nome de uma suposta africanidade, que, no âmbito da música baiana, só é traduzida por nomes como Olodum, Lazzo, Margareth Menezes, Carlinhos Brown, Timbalada e mesmo por Daniela Mercury que, apesar de ter surgido no universo das "bandas com donos" (grupos de axé-music que na prática são "liderados" por donos dos trios elétricos onde eles tocam), mantém um sincero vínculo com a cultura samba-reggae baiana.

É a partir do final dos anos 80 que a música brega começa a se ramificar em diversas tendências e algumas se lapidando na tentativa de conquistar os chamados "medalhões" da MPB (Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Gal Costa). A Rede Globo se torna um laboratório de "mudança de imagem", em contraposição ao grotesco evidente das outras emissoras de TV (sobretudo as que surgiriam nos anos 90, como CNT e Rede TV!, sub-clones do pior do SBT).

É com a eleição de Fernando Collor de Mello que o brega começa a traçar um novo caminho, dentro da estrutura neoliberal da política e economia brasileiras, que apresenta reflexo nos meios de comunicação de massa. O brega já tem a seu favor a política de concessões de rádio e TV promovida por José Sarney, então Presidente da República, e seu ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães, que como líder oligárquico na Bahia, converteu a antiga modernização cultural local numa espécie de populismo regional, de forte apelo turístico e que transformou a música carnavalesca baiana, que então juntava a espontaneidade popular e alguns elementos da Contracultura, num pop dançante e comercial, artisticamente duvidoso.

A partir da concessão de rádios e TVs, Sarney e Magalhães, dois líderes oligárquicos que tiveram maior expressão nacional depois do Golpe de 1964, mas que eram políticos pouco badalados durante os governos de Kubitschek, Quadros e Goulart, deram a largada para o coronelismo cultural que se manifestava a partir dos anos 90, tanto através de políticos e latifundiários locais que se tornaram donos de rádios FM, quanto para empresários "independentes" que viam nascer os projetos de redes via-satélite que dizimariam as programações locais e padronizariam a mídia brasileira a uma linguagem "paulistanizada", juntando elementos elitistas e populistas sem desenvolver uma mídia eminentemente popular. Pelo contrário, essa mídia se configurava num mecanismo de dominação ideológica, onde a idéia de "cultura" se diluía num processo de reificação extrema, numa espécie de espetáculo onde há uma falsa idéia de perfeição democrática num Brasil pego de surpresa. A redemocratização de 1985 estava acertando os ponteiros paralizados em abril de 1964, quando o novo populismo neoliberal (ou liberal-populismo), sem líderes específicos e sem algum rosto definido, passam a controlar as massas populares durante a década de 90.

Por isso, a vitória de Fernando Collor de Mello trouxe três gêneros que representaram a implantação do liberal-populismo no país: o breganejo, o "funk carioca" e a lambada. O primeiro se propagou não pela novela Pantanal, da Rede Manchete (que pegou as ditas "duplas sertanejas" já com elas situadas em alguma posição confortável no mercado), mas através das festas na Casa da Dinda, residência de Collor, para comemorar a vitória eleitoral de 1989, quando o carioca radicado em Alagoas, líder de uma oligarquia local, recebeu várias duplas musicais: Chitãozinho & Xororó, Leandro & Leonardo e Zezé Di Camargo & Luciano, entre outros.

O segundo, por sua vez, se propagou com a nova fase do que era o techno-funk brasileiro: os MCs ("mestres de cerimônia", como são conhecidos os "vocalistas" do "funk carioca") deixavam de ser os disc-jockeys dos bailes suburbanos para serem as próprias pessoas vindas do morro. Mas aí ocorre um problema: sem preparo vocal, sem algum desenvolvimento de talento, qualquer um usava o microfone, falando baixarias e até frases alusivas ao tráfico de drogas (os chamados "proibidões"), reduzindo o que seria uma adaptação brasileira das lições de Afrika Bambataa num karaokê suburbano de gosto discutível, que servia de trilha para as confusões e violências que colocaram os chamados "bailes funk" nas ocorrências policiais registradas pela imprensa marrom, com ecos na grande imprensa.

No início da Era Collor, ainda, tinha o ritmo da lambada, que diluía vários estilos caribenhos e se constituía numa espécie de armação exportada para outros países. Mesmo o sucesso mundial da lambada é duvidoso, sugerindo, provavelmente, a receptividade restrita a brasileiros radicados no exterior ou em turismo a esses países. Iniciado pelo grupo Kaoma (inventado por um astuto empresário francês e cujo nome e logomarca foi recentemente cedido a um grupo nordestino com formação completamente diferente - aliás, formação é algo bastante misterioso em grupos deste porte), a lambada, que no Brasil foi também representada por Beto Barbosa e pelo cantor e empresário paraense Carlos Santos, mais tarde político, rendeu ainda alguns filmes com enredo inexpressivo, feito apenas para divulgar a dança.

A onda popularesca da Era Collor, que ainda trouxe o pagode romântico - herança musical de Sullivan & Massadas através de intérpretes como Alcione e Elson do Forrogode - de grupos como Só Pra Contrariar, Raça Negra, e outros (mais tarde grupos como Katinguelê e Exaltasamba seriam seus maiores sucessos), gerou reações negativas da crítica, numa época em que, sendo o governo Collor acusado de corrupção e o então presidente sendo impedido legalmente de continuar governando, inspirou um momentâneo sentimento de justiça nos brasileiros, reforçado pela prisão de alguns assassinos na virada de 1992-1993, pela prisão dos banqueiros de bicho cariocas e até mesmo pela solidariedade das instituições de direitos humanos à revolta contra as chacinas da Candelária e Vigário Geral, duas tragédias que inspiraram a conscientização social, naquele 1993 que representou uma ilha de evolução crítica num mar de marasmo que foi a década de 90. Foi nesse ano que a MPB reagiu à avalanche popularesca, com a renovação pós-tropicalista de Marisa Monte, Zélia Duncan, Zeca Baleiro, Cássia Eller, Chico César e Paulinho Moska.

Mas 1994 foi a contra-reação do popularesco, pela Era FHC e seu Plano Real. Além de toda a turma popularesca da Era Collor, que já traçava os primeiros arremedos de "cultura popular" trabalhados, com calculismo mercadológico e publicitário, pelos fenômenos do pretenso "sertanejo" (Chitãozinho & Xororó e similares) e do pretenso "samba" (Raça Negra e similares). O poder político e econômico viu a galinha dos ovos de ouro através de uma música fácil, de baixo investimento mas de alta rentabilidade, num país marcado por um ainda preocupante analfabetismo absoluto, disfarçado por um analfabetismo funcional (saber ler e escrever somente o básico, mas não saber pensar as coisas mais elementares da vida) e por uma alienação cultural que atinge até mesmo as pessoas de formação universitária. A axé-music, símbolo do carlismo baiano ("carlismo" é um fenômeno populista baseado no poder de Antônio Carlos Magalhães) e que viu o sucesso nacional durante a Era Sarney, foi relançada pela Era FHC, ameaçando transformar o Brasil numa grande micareta, assim como os breganejos queriam transformar o país num gigantesco rodeio.

Deste modo, o popularesco se configura numa aparente diversidade de ritmos, que imitam parcialmente a música caipira, o samba, o baião, o maxixe e mesmo elementos estrangeiros traduzidos aqui, como a música caribenha, o pop dançante e o country. Essa imitação é parcial porque a representação é simbólica, pois nota-se em ídolos como Só Pra Contrariar, Zezé Di Camargo & Luciano, Banda Calypso, Calcinha Preta, É O Tchan e Frank Aguiar um certo distanciamento da natureza original dos ritmos aos quais são simbolicamente associados. E isso se dá não por um suposto "ecletismo" ou "modernização" na música que interpretam, mas por uma indefinição estilística ou mesmo estética, que os faz ficarem fora de contextos, em outras palavras, "fora de órbita", na tentativa de encontrar um público mais heterogêneo possível. Mesmo buscando uma aparente versatilidade musical, todos soam deslocados, perdidos, incoerentes, inconstantes. O mais grave está na dita "música sertaneja", quando os ídolos não sabem se fazem um arremedo de country music ou um pastiche do Clube da Esquina, assim como não se decidem em ser "rurais" ou "de raiz" ou em soar "também modernos e urbanos".

POR QUE ELES NÃO SÃO CULTURA POPULAR?

Esse popularesco brega, recentemente, reverteu sua situação na grande mídia, que era da mais aberta rejeição de intelectuais e críticos e hoje ganhou a aparente adesão deles. De um em um, colunistas de jornais, apresentadores de TV e intelectuais que antes clamavam pela "qualidade cultural", combatendo todos os seus males, da baixaria sensacionalista de alguns programas televisivos, passaram a usar um discurso que legitima justamente todos os cantores e conjuntos que estavam em evidência quando eles despejavam sua "metralhadora giratória" contra o popularesco. De repente, um Amado Batista, símbolo da "cultura de massa" dos anos 70, é pintado como um "genuíno cantor regional". Odair José e Tati Quebra-Barraco viraram "neo-tropicalistas" e Zezé Di Camargo & Luciano e Alexandre Pires viraram "sofisticados". A livre crítica a eles se converteu numa obrigatória reverência.

Enquanto cresciam estilos como o "pagodão" - evolução do pagode pornográfico de grupos como É O Tchan, Terra Samba e Harmonia do Samba - , de grupos de nomes estranhos como Psirico, Pagodart, Guig Ghetto e Saiddy Bamba, e "arrocha", espécie de versão eletrônica do brega dos anos 70 por ídolos como Nara Costa, Asas Livres, Grupo Arrocha, Sylvano Salles e Márcio Moreno, além da reciclagem do "funk carioca" agora sob as máscaras de "ativismo social" e "vanguarda cultural", crescia também a influência dos defensores do popularesco, com o forte respaldo da grande mídia, principalmente as Organizações Globo, que realizou uma "parceria informal" com DJ Marlboro para inserir seus produtos em vários programas e veículos da empresa dos filhos de Roberto Marinho. A "consagração" do popularesco sob a máscara de "verdadeira cultura popular" veio com o programa Central da Periferia, da Rede Globo de Televisão, apresentado pela atriz Regina Casé e produzido por Hermano Vianna.

Mas esse discurso de apologia ao popularesco, que parece clamar uma "nova visão" para a Música Popular Brasileira, já havia surgido discretamente, a partir de sociólogos, antropólogos e jornalistas em várias partes do país. Paulo César Araújo e Hermano Vianna, respectivamente jornalista e antropólogo, foram os que levaram esse discurso a teses de pós-graduação que resultaram em livros. Em todos os casos, há um processo semelhante: cria-se uma associação do popularesco a um "novo tipo" de cultura popular, num discurso verossímil, buscando emocionar o público. Mas, em dado trecho, a retórica se transforma num discurso agressivo, quando o assunto passa a ser as críticas contra tais ídolos. Em dado momento, sobram acusações injustas de "elitismo" ou mesmo de "colaboração com a ditadura" aos músicos e cantores de MPB, que, oriundos da classe média, são "proibidos" pelos ensaístas de fazer cultura popular.

Ao lado deste discurso, há também o apelo publicitário dos ídolos popularescos, que lançam mão da exploração biográfica para comoverem as massas, numa clara demonstração de demagogia populista. A origem miserável é explorada ao extremo (chegando ao ponto do exibicionismo), principalmente em revistas de fofocas da TV, beneficiando estas com uma atitude pretensamente "social" e aqueles por disfarçar suas fortunas com um passado miserável que hoje não é mais que pálida lembrança da infância desses ídolos. Esse discurso se torna duvidoso e altamente discutível, uma vez que esconde uma realidade delicada: a dos "novos ricos", classe social que, muitas vezes, apenas tempera o elitismo social com toques de populismo, "favelizando" os condomínios fechados. E cria um novo problema: os atuais aristocratas da música brasileira não são Francis Hime, Chico Buarque, Joyce, Fátima Guedes e Edu Lobo, mas se chamam Chiclete Com Banana, Zezé Di Camargo & Luciano, Latino, Leonardo, Daniel, Ivete Sangalo, DJ Marlboro, Chitãozinho & Xororó, Alexandre Pires, Frank Aguiar e Banda Calypso.

Mas o grande público nunca associaria à aristocracia ídolos que, mesmo comprovadamente ricos, aparentemente representam, ainda que por simulacro, as classes pobres. E não se trata apenas de fortunas pessoais: o próprio estilo de vida dos ricos popularescos supera, na adesão a valores aristocráticos e conservadores, a qualquer suposto aristocrata da MPB. Francis Hime mantém uma simplicidade de compositor popular e cidadão modesto que falta a um Alexandre Pires preocupado em sua coleção de ternos e gravatas e sua vida de luxo. Zezé Di Camargo & Luciano e Chitãozinho & Xororó lideram clãs que apresentam um estilo de vida claramente burguês, na acepção mais conhecida do termo. Quem nunca comeu doce, quando come se lambuza, diz o ditado popular.

A música popularesca, nas suas mais diversas manifestações, não pode ser considerada "a verdadeira cultura popular" porque, confusa e contraditória, esconde, na verdade, uma estrutura de poder e dominação de uma minoria sobre a maioria. Os empresários do popularesco, longe de serem "inocentes promotores ou produtores culturais", são, não obstante, verdadeiros chefões de seus clientes. Há todo um simulacro que aponta muitas falhas, por isso comprometendo o "seguro caminho" da cafonice dominante rumo à legitimação folclórica.

Primeiro, pela concepção de cultura como a realidade de um povo, ou como a produção de conhecimento por parte de determinado grupo comunitário. No popularesco, não há esse processo, tamanhas as contradições existentes: a falta de uma definição regional, já que um grupo de "forró-brega" pode tanto ser "baiano" quanto "paraense". Um som do Calcinha Preta remete a elementos gaúchos ou do agreste nordestino? Não se sabe. Uma dupla tipo Zezé Di Camargo & Luciano se inventa até num edifício de luxo dos Jardins, em São Paulo. Aliás, o som dos breganejos é o quê: brega dos anos 70 modernizado, country com letras em português, falsas modas de viola em roupagem mariachi ou falsos arremedos de Clube da Esquina? Não dá para definir. E Alexandre Pires, fazendo um charm (espécie de variação baladeira do funk) com toque latino, num cruzamento entre Bobby Brown e Luís Miguel, pode ser definido como um misto de samba com Bossa Nova? De jeito nenhum. Os intérpretes popularescos não têm informação nem formação musical, mas apenas um acúmulo aleatório de dados culturais trazidos pelas rádios FM contaminadas pelos defeitos impostos pela indústria cultural, que tais ídolos ouviam. Sabedoria musical nem de longe eles possuem.

O maior problema está na prevalência do relativismo cultural. A pretexto de valorizar a diversidade cultural, o relativismo é valorizado ao extremo, quase que de forma autoritária, sem dar margem a críticas nos veículos de comunicação. Pouco importa se Zezé Di Camargo & Luciano são "urbanos" ou "rurais", ou se grupos como Psirico e Pagodart são tão tolos (o comportamento de seus membros deixa claro isso), ou se as apresentações do Calcinha Preta parecem cabaré de faroeste norte-americano. Para os relativistas, a idéia totalitária de que "tudo é brega" - tradução brasileira do "tudo é pop" dos norte-americanos, mas também introduzida no Brasil em sua forma genérica à original - basta, e segundo eles não adianta questionar.

Esse relativismo, no entanto, sugere uma indefinição de tudo. Ao invés de atingir o aparente objetivo de reconhecer a diversidade cultural, estabelece uma verdadeira falta de critérios, numa totalidade que na prática se torna excludente, injusta, e que, ao menosprezar o que está por trás da música popularesca, legitima justamente as estruturas de dominação ideológica, de poder da grande mídia e de controle social das elites sobre o povo que estão implícitas nos ídolos popularescos. Latifundiários, contraventores, políticos de direita e especuladores financeiros, e agora quase toda a grande mídia, investem pesado nos ídolos popularescos e, temendo que eles caiam na descartabilidade que é inerente a ídolos sem o menor valor artístico e feitos por objetivos comerciais, tentam agora vendê-los como "folclore", usando mão de uma poderosa estratégia de marketing que simula um discurso intelectual e uma evocação biográfica para "legitimar" estes ídolos. A música pouco importa, na Idade Mídia brasileira, onde a imagem, mesmo a meramente ideológica, influi em tudo.

A hegemonia popularesca dos dias de hoje, além de afirmar a ideologia conservadora do liberal-populismo, é resultante de toda uma campanha herdada da ditadura, em promover um universo musical confuso, de fácil consumo, sem qualquer relevância artística ou cultural e sem qualquer identidade sequer estética, e que só se configura como "cultura popular" através de um simulacro que convence, em tempos de crise de valores existente no Brasil, marcado ainda por grande miséria e profundas desigualdades sociais. A baixa escolaridade das pessoas, aliada à tendência de comoção fácil, faz com que a música popularesca, em seus vários simulacros de ritmos populares, se prevaleça, favorecida ainda com um sentimento sutilmente anti-esquerdista marcado pela atuação decepcionante dos "heróis de 1968" no governo Lula e por uma interpretação etnocêntrica da crítica, que quando vê na música brega um novo "folclore", está interpretando as classes pobres novamente de uma valoração elitista, ainda que aparentemente gentil. Se a burocracia turístico-patrimonial erra com suas reconstituições frias da cultura popular, o comercialismo midiático não comete erro menor ao creditar a cafonice como princípio maior da dessa mesma cultura, pois se trata também de outro simulacro, usando como cenário não os museus, bibliotecas ou os auditórios de instituições, mas os palcos de televisão, o cinema, as rádios etc., expandindo depois na exposição compulsória das ruas, através de camelôs, lojas de eletrodomésticos, automóveis, botecos, feiras livres e por aí vai.

A abordagem a favor da música brega-popularesca apresenta sérios equívocos. Todos têm origem na visão etnocêntrica da cultura popular, que não desfaz-se com a "generosa" adesão de jornalistas, músicos e intelectuais a esse universo lúdico-musical.

O primeiro equívoco é a justificativa pela biografia do ídolo em questão e uma visão glamurosa da pobreza, idealizando a miséria como uma "salvação" pelo sofrimento. Até dois filmes foram feitos, Os dois filhos de Francisco, de Breno Silveira, e Sou feia mas tô na moda, de Denise Garcia. O primeiro, uma biografia encenada da dupla Zezé Di Camargo & Luciano. O segundo, um documentário sobre as vocalistas do "funk carioca", puxado pelo sucesso de Tati Quebra-Barraco. Em ambos os casos, busca-se um discurso legitimador do sucesso dos ídolos envolvidos, uma retórica socializante que vê a miséria como "algo bonito", como um sofrimento necessariamente dignificante. No entanto, dois fatores questionam esta idéia: o enriquecimento financeiro dos referentes ídolos (como falamos, já existe uma aristocracia popularesca que inclui Zezé Di Camargo & Luciano, Chiclete Com Banana, Alexandre Pires, DJ Marlboro, entre outros) e o fato de que a miséria, por si só, não dignifica nem humilha. Dependendo do caso, a miséria pode produzir tanto uma personalidade caridosa quanto um perigoso criminoso.

O segundo equívoco é a legitimação das estruturas de poder para dar validade ao popularesco. Para o bem e para o mal, a idéia de "sabedoria" é associada à prosperidade econômica. Seja para falar mal da MPB, tratada como sendo uma sucursal musical da Academia Brasileira de Letras, seja para usar as classes abastadas para "legitimar" o popularesco como uma suposta cultura popular. A partir disso, se vê casos como a adesão massiva de jovens de classe média alta a ritmos grotescos como o "funk" carioca e o "pagodão" baiano. Várias e sérias distorções sociais como, por exemplo, a baixa qualidade do ensino superior e a questão da alienação e violência por parte de jovens abastados, não são sequer consideradas. O jovem rico gosta de "funk" e "pagodão" e, pronto, os ritmos são "cultura popular". Pensar assim seria legitimar as estruturas de dominação, primeiro pelo fato do popularesco ser um simulacro de "cultura popular" resultante da manipulação ideológica da grande mídia, e segundo, porque o "valor" atribuído as classes dominadas acaba dependendo, mais uma vez, do "julgamento" do dominador.

O terceiro equívoco é a idéia de "preconceito" usada pelos defensores do popularesco para desqualificar quem não aprova seus ídolos. Fala-se da rejeição a estes como se fosse um "preconceito", mesmo quando dotada de referenciais consistentes. Cria-se uma visão maniqueísta, onde a adesão ao popularesco é vista como uma "ruptura do preconceito", termo muito banalizado pelo discurso da grande mídia. Leva-se em conta a idéia equivocada de ver o "preconceito" sempre como uma negação, quando a origem do termo indica apenas uma pré-concepção de uma idéia. A maioria das pessoas que rejeitam o popularesco o fazem por estarem informadas sobre seu universo, pois, a contragosto, são apresentados a esses ídolos quando vêem os meios de comunicação e andam pelas ruas e lojas. Por outro lado, não seria uma forma de preconceito superestimar o "pagodão", que é uma diluição do samba de gafieira, confundindo-o com o samba-de-roda do Recôncavo baiano, do qual o "pagodão" quase nunca guarda semelhanças?

A verdadeira cultura popular, que antevê o folclore do futuro, não depende das classes abastadas para se legitimar. Ela busca o conhecimento, o progresso social, a renovação cultural e o legado artístico para a prosperidade. Não poderia ser como tal uma "cultura" que pouco se compromete com a identidade artística, num formato confuso, trabalhado apenas para o sucesso momentâneo, reciclado apenas pelas estratégias de marketing, visando um público desinformado, confuso e demasiado emotivo para aceitar cegamente a mediocridade musical reinante.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ARAÚJO, Paulo César. Eu não sou cachorro, não. Rio de Janeiro: Record, 2001.

COELHO, Teixeira. O que é indústria cultural. Série Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1999.

ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 5.ed. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1993.

KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda: Jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004.

RUBIN, Antônio Albino Canelas. ACM: Mídia e poder. Extraído na Internet da versão html do endereço http://www.unb.br/fac/comunicacaoepolitica/Albino2001.pdf, disponível no site de buscas Google. Acessado em 13 de abril de 2005.

SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura.. Série Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 2006.

SODRÉ, Muniz. A Comunicação do grotesco. Petrópolis, Vozes, 1985.

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