Por Alexandre Figueiredo
Não deixa de ser ilustrativa a derrota da seleção brasileira de futebol pela seleção francesa, na Copa do Mundo da Alemanha de 2006. Não precisou muito. Foi apenas um gol do jogador Thierry Henry, que recebeu a bola do craque Zidane, para eliminar o sonho de vitória dos jogadores brasileiros, que demonstraram um jogo inseguro, vacilante, medroso, disperso, sem qualquer tipo de agilidade ou coesão, fora os primeiros quinze minutos de posse de bola dos brasileiros.
Discute-se muita coisa a respeito deste jogo e algumas pessoas perguntaram por que os "melhores do mundo" permitiram a sua derrota em campo. Discussões vãs, evidentemente. Porque o evidente estava ali: a seleção brasileira jogou mal. Foi a queda de uma máscara inventada desde 1990, a do "futebol de resultados", uma espécie de "jeitinho brasileiro" que dissimulava a mediocridade do futebol com alguns minutos "mágicos" em que a defesa adversária falhava. A seleção brasileira de futebol ganhava não porque jogava bem, mas porque tinha a sorte de ver a defesa adversária falhando em poucos minutos. As manchetes quase sempre eram assim: "Brasil vence, mas joga mal", "Mesmo com jogo péssimo, Brasil vence o adversário por tais gols". Não era bonito de se ver. A canção "Que Bonito É", célebre hino informal do futebol, cortesia dos cinejornais do Canal 100 nos anos 60, não vale para uma geração que ganhou duas copas do mundo mais pela sorte que pelo talento, e mesmo assim sediadas por países com pouca tradição no futebol. Não dava para ter orgulho. Na Copa da Alemanha, ganhou quem mostrava realmente que sabia jogar.
Certamente essa é uma dura lição para a "sociologia da bola" que os comentaristas esportivos simulam nas TVs e rádios, um debate estéril que vale mais como simulação de debate do que pelo debate propriamente dito. Fala-se do óbvio, do previsível, são as mesmas frases, o mesmo mau-humor, os mesmos comentários. Mas tudo muito "diferenciado" na forma, ou pelo menos nas chamadas desses programas esportivos. Enquanto isso, a realidade não dá margem a discussões: a seleção brasileira de futebol perdeu porque jogou mal. E porque foi a mediocridade brasileira que, na ilusão de triunfar sempre, foi justamente humilhada pelos franceses, e a França é um país marcado pela inteligência e pela mobilização social.
O Brasil é um país jovem. Tem, em 2006, 506 anos de existência. Como país independente, no sentido da autonomia política - a autonomia econômica ainda é uma utopia longe de atingir sua plenitude - , o Brasil não tem mais do que 184 anos. Ainda age como se fosse um gigante bobo, submisso à megalomania do capitalismo do G-7 e cujo povo ainda depende da vontade da grande mídia para construir seus referenciais sócio-culturais. O Brasil ainda é socialmente estéril, dominado pela mediocridade que se estabelece em todos os níveis, desde o pagodeiro fútil que acha que basta ficar só de sunga, rebolar e fazer um sorriso arreganhado que dará uma "grande contribuição" à MPB até às mulheres incoerentes que dizem desejar homens decentes para namorar e no meio do caminho namoram homens que outrora cometeram crimes passionais e, Casanovas da mediocridade, posam de "coitados" quando a situação convém.
A derrota brasileira na Copa foi a derrota da mediocridade. Foi a sina de um país que, diante do progresso do projeto político brasileiro, conduzido entre 1956 e 1961 por Juscelino Kubitschek de Oliveira, preferiu apostar, nas eleições de 1960, no populismo esquizofrênico de Jânio Quadros, quando o certo, estrategicamente, seria apostar no general Henrique Lott - candidato defendido por JK - , que sanearia as dívidas pela construção de Brasília e, com um programa nacionalista, passaria depois para Kubitschek novamente e o Brasil seguiria seguro na trajetória progressista. Ao invés disso, com Jânio o Brasil perdeu a cabeça, Jânio renunciou, Jango quase não assumiu a Presidência, o país novamente perdeu a cabeça, seja esquerda ou direita, projetos de reformas de base eram anunciados e nunca cumpridos, e as pressões esquerdistas e direitistas resultaram na revanche desta, através de um golpe militar que resultou numa ditadura de 21 anos, que pretendia moralizar e desenvolver o país, mas causou conseqüências dramaticamente contrárias.
Com a ditadura, o Brasil dos "anos dourados" se converteu no país da mediocridade. Na mediocridade da lei, que permite a impunidade segura de criminosos e corruptos de melhor nível sócio, político e econômico. Na mediocridade da música, onde a hegemonia da cafonice e da apelação popularesca permite o domínio de uma infinidade de tendências esquizofrênicas, culturalmente confusas, onde a forma de "cultura popular" esconde um conteúdo musicalmente ruim, inexpressivo, oblíquo, contraditório, perdido entre perspectivas de regionalidade ou globalização muito mal formuladas.
Vivemos a mediocridade da política, quando o Congresso Nacional mais parece uma sala de aula sem professor, com os alunos falando demais e fazendo bagunça. Em outros tempos, o Senado e a Câmara Federal eram palco de debates de projetos nacionais, de propostas sólidas para o país, de discursos de tom humanista que, se não eram de todo íntegros, eram pelo menos bem escritos. Se os políticos dos anos 50 não eram de todo honestos, pelo menos tinham alguma grandeza, eram grandes oradores e, às vezes, tinham projetos de grande relevância. Não se imaginava uma deputada como Ângela Guadagnin, que recentemente dançou um samba imaginário, ao saber que um colega seu acusado de corrupção não teve o mandato cassado.
Vivemos a mediocridade da grande mídia, quando uma minoria de executivos e celebridades governam todo o imaginário dos brasileiros, determinando, mesmo que indiretamente, seus gostos e opiniões. E a mediocridade da vida amorosa, quando os casais se desencontram, já que homens se casam com as mulheres erradas e as mulheres se casam com homens errados, e, no caso das mulheres, elas ainda erram por exigir, ao invés de bons maridos, bons conquistadores, estimulando o machismo galanteador, que na hora da conquista é uma beleza, mas no cotidiano amoroso, amor é justamente o que falta a estes homens.
Essa mediocridade, que atrasa o desenvolvimento do nosso país, que transforma o povo numa entidade estéril, que permite a libertinagem de poucos que sacrifica a verdadeira liberdade de muitos, ainda faz a festa de nossas elites, crentes de um país do faz-de-conta. Para eles, a democracia só serve para permitir a existência de alguns abusos. Desta forma, o Brasil plagia o cinema de Luiz Buñuel, na impunidade da violência cometida por gente abastada, no diagnóstico médico confuso e contraditório, na vulgaridade abjeta das elites, no contraditório moralismo religioso.
A França que já viveu horrores na Idade Moderna, que teve a dolorosa Revolução Francesa, depois a fase do terror, o despotismo de Napoleão, as rivalidades bélicas com a Inglaterra e Alemanha e que na Segunda Guerra Mundial foi atacada e quase dominada pela última, hoje é um país que, se ainda não tem a prosperidade social plena - ainda há miséria e desemprego naquele país - , possui um desenvolvimento sócio-econômico bem melhor e o país europeu, um dos "cabeças" da União Européia, além de participar desse importante bloco econômico mundial, ainda participa de grupos estratégicos na condução da geopolítica mundial, como a OTAN e o Conselho Permanente de Segurança da ONU.
Um dos países do Iluminismo - movimento filosófico europeu que contribuiu para o declínio da estrutura política e econômica medievais - , a França mantém uma vida intelectual pertinente. A atividade de pensar é um hábito entre seus jovens. Mesmo na música pop, jovens cantoras como Nolween Leroy, Emilie Simon e Camille, fazem uma música elaborada e inteligente. No Brasil, "inteligência" é confundida com esperteza, todos se dizem "inteligentes", mas ninguém o é, mas arrogância e hipocrisia há muitos que tenham.
Na França, recentes manifestações sócio-políticas não fazem feio diante das barricadas de maio de 1968. Mas no Brasil de hoje nem o carisma e a extinta beleza de Daniella Perez, morta após o calor das passeatas do "Fora Collor", rende uma "Passeata dos Cem Mil", que naquele 1968 de rara mobilidade brasileira, foi motivada pelo assassinato de um anônimo. Ter senso crítico afasta até amigos, em certos casos, já que há pessoas que vêem na contestação da realidade vigente o anúncio do Apocalipse. E a intelectualidade vive apenas no mundo das aparências. Nossas ciências sociais e humanas são simplesmente estéreis, poucos são os que se destacam pelas idéias.
CASTRAÇÃO DO PENSAMENTO
Por que nossas ciências sociais e humanas brasileiras carecem de grandes avanços? Por que não existem muitos intelectuais brasileiros? Na verdade, nossa tendência a ter grandes intelectuais é a mesma que a capacidade de haver grandes cientistas. O grande problema é que prováveis grandes pensadores são imediatamente barrados pela burocracia e pelo comodismo acadêmico - e academicista - dos cursos de pós-graduação, reduzidos a um clube de professores privilegiados.
Na França, existem muitos filósofos, semiólogos, enfim, grandes pensadores. Há uma tradição da intelectualidade onde quem tem grandes idéias a mostrar é estimulado a desenvolver seu trabalho. Mas no Brasil esse potencial é comprometido por vários fatores que transformam as ciências sociais e humanas num universo estéril, onde a produção acadêmica é apenas dominada, salvo eventuais exceções, por trabalhos que não são mais do que verdadeiras coletâneas citações de outros autores (sobretudo estrangeiros) e um desfile de referenciais bibliográficos.
Não se estimula o senso crítico. Futuros aspirantes a grandes pensadores não conseguem dar a largada, porque seus primeiros projetos de pós-graduação simplesmente são rejeitados. Se Noam Chomsky e Umberto Eco fossem brasileiros e surgissem hoje, eles simplesmente não existiriam, não havia oportunidade. O fôlego intelectual desses aspirantes, encontrando a primeira barreira, tende a se amenizar. E, de projeto em projeto, o que antes era uma grande vitalidade intelectual, se transforma em comodismo teórico, tantas são as castrações que com o tempo o aspirante a pensador encontra no caminho. A realidade sufoca suas idéias, e ele tem que se acomodar para sobreviver. E isso se deve a vários fatores, os quais podemos destacar os mais comuns.
Primeiro: a dependência financeira do Estado. A necessidade de bolsas de pesquisa, no Brasil, faz com que se promovam projetos de pesquisa cujo conteúdo temático é medido conforme os interesses burocráticos institucionais. Em outras palavras, os temas têm que ser do agrado daqueles que fornecem as bolsas, e não podem ferir o "equilíbrio social" que no país é confundido com tolerância absoluta até com os absurdos que se tornam comuns na vida brasileira. Um tema que ponha em xeque, por exemplo, o mito das "caçadoras de homens" de Salvador - caricatura brasileira das muchachas calientes do imaginário folclórico caribenho - , vai para a lata do lixo. Por outro lado, tornou-se benvindo um projeto de mestrado que se limitava a analisar as imitações de passarinho do cantor Elomar, coisa que, quando muito, daria apenas num texto de cinco páginas numa revista de ciências humanas.
Segundo: a vaidade dos professores de pós-graduação. Quando esses professores vêem algum potencial crítico e analítico na temática apresentada por um aspirante, a recusa a orientar este trabalho é automática. "Quem esse aspirante pensa que é?", é a pergunta inevitável, mas silenciosa no pensamento do professor e no desabafo cínico deste com algum colega mais "chegado". O aspirante incomoda, como um corpo estranho, e seu tema ameaça a calmaria intelectual que faz a rotina dos cursos de pós-graduação. O vigor das idéias do aspirante, ainda que desprovido do rigor metodológico dos mais experientes, soa como o anúncio da morte para o professor orientador, e ele então se recusa terminantemente a investir no trabalho daquele que ele teme ser seu futuro rival ou concorrente. E a vaidade dos professores precisa ser preservada para que, sem muito esforço, eles façam seu nome na intelectualidade internacional, de forma que os professores brasileiros possam promover seminários com convidados estrangeiros, cobrar pesadas taxas de inscrição e assim faturar com o prestígio forjado pelas aparências de "superioridade acadêmica".
Terceiro: o extremo rigor metodológico. Certamente, existem livros sobre como fazer uma tese de pós-graduação ou uma simples monografia, que dão uma orientação básica para quem quer iniciar um projeto de pesquisa. O próprio Umberto Eco, exemplo de intelectualidade no mundo inteiro, embora famoso, pelos leigos, apenas por romances como O Nome da Rosa e Baudolino, havia lançado um trabalho do gênero, Como Fazer Uma Tese. Mas isso não é desculpa para exigir demais dos aspirantes que não estão acostumados a esse roteiro de elaboração de um projeto de pesquisa. Vamos nos ater a este terceiro item.
Este terceiro item, não obstante, é fruto do segundo item, que é a vaidade dos professores. Eles não orientam os estudantes sobre como é realmente a metodologia. Nos cursos de graduação, não se ensina a fazer projetos de pesquisa, apenas finge-se ensinar, citando apenas os enunciados de suas etapas: objetivos, justificativas, metodologia, referências bibliográficas. Não se sabe como elas devem ser e quantas páginas devem ter, no máximo. Tudo vira um jogo de advinhas, e bons projetos são vetados simplesmente porque o aspirante, por inexperiência, confundiu "justificativa" com "objetivo". Enquanto isso, projetos medíocres são imediatamente aprovados porque apresentam uma retórica bem ao agrado dos acadêmicos e um excelente rigor no método de apresentação destes projetos. Isso para não dizer detalhes fúteis, como o fato de uma aspirante a mestranda ser uma linda aluna que o professor universitário, em vias de divórcio, pretende desposar. Mas isso é outra história.
Através desses três obstáculos, a temática dos trabalhos acadêmicos se limita a clichês, e nas comunidades acadêmicas, o medo de analisar certos problemas fenomenológicos - em outras palavras, analisar certos problemas que atingem a vida humana na atualidade - , seja pelo temor de perder verbas do governo, pelo risco de ferir o orgulho e a rotina acadêmicas e romper a disciplina rigorosa da organização de anteprojetos, faz com que haja até uma padronização temática, muitas vezes com pouca eficácia de análise.
Assim, nas Ciências Sociais e Humanas, prevalecem temas batidos e pouco problemáticos como "O canto religioso das lavadeiras do interior do Nordeste" e "O sentido do não-sentido e seus reflexos na pós-modernidade globalitária", o primeiro um inofensivo relatório sociológico, o segundo um hilário delírio semiológico, quase que uma masturbação intelectualóide apresentada ao público. O primeiro agrada aos fornecedores de bolsas de pesquisas do governo, o segundo alimenta a vaidade dos professores universitários que, sem ter alguma idéia relevante própria, apenas mimetizam sua impotência crítica investindo na forma - o discurso que imita a retórica de grandes intelectuais europeus - para dissimular a falta de conteúdo, fazendo de conta que "fazem bonito" ante os grandes intelectuais do mundo inteiro.
Essas limitações simplesmente atrofiam a vida intelectual do Brasil e a submetem a um mundo de aparências. Quantos textos tolos e superficiais, mas dotados de uma retórica bem organizada, são publicados por nossas revistas acadêmicas? Quantas teses de pós-graduação são feitas, merecidamente, para mofar nas estantes, depois de tantos festejos da comunidade acadêmica? Quantos trabalhos não passam de uma vazia multidão de palavras, de um bem-articulado discurso vazio de sentido, disfarçado pela sucessiva citação de outros autores e pelo visual bem organizado - boa organização de parágrafos, tamanho de fontes, notas de rodapés, espaço de entrelinhas - desses mesmos trabalhos?
A esterilidade intelectual e o comodismo das idéias não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Ele existe até na citada França. Mas lá o comodismo intelectual é eventual e não barra o caminho dos que de repente surgem com grandes idéias. Alan Sokal já havia parodiado a esterilidade intelectual com um artigo, Transgredindo Fronteiras, se utilizando deste artifício de forjar um discurso acadêmico conforme as regras do jogo. Muitos intelectuais caíram na "pertinência" do discurso, até Sokal publicar um outro artigo, Um físico Faz Experimentos com Estudos Culturais, revelando a farsa. Até o economista conservador Roberto Campos, no final de sua vida, comprou uma polêmica com Sokal, que rebateu a acusação de "brincadeira" do célebre "Bob Fields" com artigo afirmando que a razão não é propriedade privada.
O grande problema não é o comodismo intelectual, porque no meio do caminho trabalhos supérfluos vêm à tona diante da falta de assunto de certos intelectuais, confrontada com a pressão da produtividade acadêmica. Até aí, tudo bem. O grande problema é a preferência das elites acadêmicas a esse comodismo intelectual, tal como ocorre no Brasil, que impede o surgimento de novos intelectuais, uma vez que, de cada grupo de aspirantes a pós-graduandos emergente, são aprovados justamente os que apresentam os projetos mais vazios de conteúdo, porém corretíssimos na forma. Desta maneira, o Brasil mais uma vez mergulha na mediocridade, vendo os outros países superarem a enorme nação sul-americana na intelectualidade democrática e no estímulo ao mesmo senso crítico que, para certos brasileiros, ainda é sinônimo de fim do mundo e prática anti-social.
Será possível exercer a liberdade de pensamento num país tropical? Sim, claro! O problema é a preguiça e o comodismo dos que condenam essa liberdade que incomoda seu sono tranqüilo sob sombra e água fresca.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPOS, Roberto. A brincadeira de Sokal... In: Folha De São Paulo, 22 de Setembro de 1996.
SOKAL, Alan. A physicist experiments with cultural studies. In: Lingua Franca, New York, may-jun 1996.
SOKAL, Alan. A razão não é propriedade privada. In: Folha De São Paulo, 06 de outubro de 1996.
SOKAL, Alan. Transgressing the boudaries: towards a transformative hermeneutics of quantum gravity. In: Social Text n. 46-47. New York, spring/summer 1996.
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