"BAILE FUNK" EM SÃO PAULO - Exemplo do mito da "pobreza linda".
Por Alexandre Figueiredo
A sociedade dita progressista vai dormir tranquila ao imaginar que o culturalismo conservador, conceito lançado pelo sociólogo Jessé Souza, se limita, na prática, ao moralismo da Operação Lava Jato, à pedagogia familiar e à propaganda bravateira do presidente Jair Bolsonaro. A doce ilusão de uma pretensa prosperidade cultural, marcada pela alta produtividade nas redes sociais e na indústria do entretenimento, faz muita gente imaginar que vivemos um excelente cenário da cultura brasileira, mesmo com tantos ídolos medíocres e tantas subcelebridades que fazem com que o Big Brother Brasil tenha uma pretensão de grandiloquência supostamente maior do que a grandeza da fase áurea de Hollywood (1935-1960).
A ilusão de uma grande movimentação cultural, com produção intensa de factoides e de polêmicas supostamente instigantes - mas que atuam como fogos de palha ao caírem no esquecimento em pouco tempo - , marcada também por um identitarismo ideológico que faz com que qualquer famoso se ache "militante" de qualquer coisa, também permite que as pessoas acreditem nessa situação fantasiosa, ao passo que a chamada crítica especializada, cada vez mais complacente, reforça esse discurso da pretensa prosperidade cultural, através da desculpa de que "existem muitas vozes e muitas narrativas".
A recusa do público médio em ler o meu livro Esses Intelectuais Pertinentes, que faz inúmeras revelações e explicações sobre a crise cultural em que vivemos, e a própria mania da classe média, que comanda o imaginário e o senso comum da chamada "opinião pública", em fingir que o culturalismo conservador não é com ela, tornam-se sintomáticos nesse quadro de cegueira cultural em que se vive.
Desse modo, imagina-se um "culturalismo sem cultura", dotado de Educação, Publicidade e Propaganda, Economia, Jornalismo (político) e a própria Política, mas sem Cultura. Mesmo o Entretenimento, que não deve ser confundido com Cultura mas é o reflexo prático dos valores culturais de uma sociedade, não é considerado oficialmente no problema do culturalismo conservador, uma vez que entendemos o Entretenimento e as aparentes expressões culturais das últimas décadas no Brasil como algo "puro" e "fluente", que surge "carregado pelo vento", pouco importando se esse "vento" é o ar condicionado dos escritórios das grandes empresas de entretenimento.
A mania da classe média em definir a crise cultural como "algo que não é com ela", a ponto de, nos últimos anos, serem criados bodes expiatórios dessa crise dentro da equipe de governo do presidente Jair Bolsonaro - como o secretário de Cultura, Mário Frias (ex-ídolo adolescente do seriado Malhação, da Rede Globo), e o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo (cujo perfil reacionário destoa de sua família de negros com tradição progressista) - , faz com que o Brasil, mesmo com seus problemas, ou, talvez, em função dos mesmos, se julgasse estar "culturalmente bem".
Com o monopólio de sua narrativa, sempre exaltando padrões diversos de mediocridade cultural, a classe média que comanda o imaginário popular e o senso comum no Brasil faz destoar a falácia das "muitas vozes e muitas narrativas" que intelectuais, jornalistas e ativistas institucionais - como pessoas que dirigem ONGs ou coletivos culturais - tanto propagam.
Prevalece, assim, o mito da "pobreza linda", da institucionalização de aspectos da pobreza humana como morar em favelas, trabalhar em comércio clandestino, atuar em prostituição e até mesmo "afogar suas mágoas" com o alcoolismo. Mesmo setores das esquerdas glorificam essas práticas tristes como "qualidade de vida", chegando mesmo a falsificar a abordagem antropológica, criando uma analogia hipócrita às antigas tribos indígenas, como se as favelas fossem as "ocas" modernas - convertidas em "paisagens de consumo" para a burguesia identitarista - e a pobreza, em vez de ser um problema social, passa a ser visto como um "estilo de vida", um "modo diferente de afirmação social", dentro desse discurso falsamente etnográfico.
O discurso do "combate ao preconceito" revela sua hipocrisia quando se força a aceitação do povo pobre "tal como ele é", naturalizando sua inferiorização social e fingindo culpar a sociedade pelos problemas culturais existentes. Se bem que o discurso do "combate ao preconceito", na maioria das vezes, prefere pôr estes problemas debaixo do tapete, preferindo definir a pobreza como um "paraíso de Adão e Eva", onde as favelas vivem em "permanente Carnaval" numa sociedade sem conflitos de classes, cujos únicos "vilões" são apenas "excepcionais" e estereotipados, sejam a madame rica horrorizada com o sucesso dos ritmos popularescos, o policial truculento, o crítico musical ranzinza ou políticos como o presidente Jair Bolsonaro.
Mesmo diante de poucas vozes críticas como o sociólogo Jessé Souza, a classe média vai dormir tranquila ao acreditar que culturalismo conservador é apenas Operação Lava Jato, o mito do patrimonialismo, a educação familiar, as relações das mulheres de classe média com as empregadas domésticas e a propaganda ideológica ou lúdica (neste caso, as bravatas de Bolsonaro) de governos fascistas. Creem na ilusão de que basta cantar um "funk" ou um brega - como a música "Eu Não Sou Cachorro Não", de Waldick Soriano - para ninar seus filhos ou filhas que as mães, através dessa atitude, estarão cumprindo com uma ação supostamente libertária na formação social das crianças.
A preguiça intelectual de uma classe média que se acha líder na condução de valores socioculturais chega ao ponto de achar que a crise cultural é meramente econômica, mesmo quando Jessé Souza rejeita a visão economicista desse quadro. E essa ilusão da classe média se dá de tal forma que existe a crença vã de que basta investir muito dinheiro na mediocridade cultural para que ela "melhore" e "se aperfeiçoe". Como se dinheiro, que segundo o ditado popular, não traz felicidade, no entanto trouxesse algum relâmpago de genialidade no fenômeno medíocre, sobretudo brega-popularesco.
É certo que Jessé Souza possui sua linha de análise, suas ideias e suas abordagens, de forma que não é obrigação sua ele avaliar se a música de Waldick Soriano representa ou não o culturalismo conservador. O sociólogo tem seu caminho de análise e seus exemplos e focos, sendo sua opção pessoal de trabalho intelectual.
No entanto, a partir de Jessé Souza, podemos inferir abordagens nossas, reconhecendo que, de forma implícita, o sociólogo também não adota uma postura complacente para o "bom culturalismo" que aparece sob as máscaras do "combate ao preconceito" e da retórica da "cultura das periferias" da bregalização cultural, assuntos que meu livro Esses Intelectuais Pertinentes abordam de forma pioneira.
Dentro de seu horizonte de análise, Jessé Souza fala na "glorificação do oprimido" e questiona abordagens como a defesa da inferioridade social do povo pobre - tratada como "positiva" pelo discurso do "combate ao preconceito" - e a "teodiceia do sofrimento", nada menos que um outro nome da famigerada Teologia do Sofrimento, corrente do Catolicismo medieval repaginada pelo Espiritismo brasileiro através dos livros de um suposto "médium" bastante idolatrado pelos brasileiros. A ideia de transformar o mundo presente num "vale de lágrimas", com as pessoas renunciando não só ao que é prazeroso mas ao que lhes é necessário e essencial, visando a recompensa da "salvação no outro mundo" é uma ideia problemática que as pessoas têm muita dificuldade em imaginar.
Afinal, até mesmo no âmbito religioso criam-se zonas de conforto na qual se "chutam cachorros mortos", ou, como disse Caetano Veloso no discurso inflamado de 1967, durante a apresentação de "É Proibido Proibir", há a intenção de "querer matar hoje o velhote inimigo que morreu ontem". Se no âmbito do "culturalismo sem cultura" a crise de valores culturais reside na Educação, na Propaganda, no Jornalismo e na Economia, na religião há a comodidade de reduzir aos evangélicos de tendência neopentecostal e a poucos setores reacionários da Igreja Católica os males da fé religiosa, ignorando as armadilhas ultraconservadoras por trás da fachada "moderna" do Espiritismo brasileiro.
Essas ilusões da classe média e de todos aqueles que se sentirem guiados por ela através do lazer cotidiano aplicado nas redes sociais e motivado pelo que a mídia transmite - não somente rádios, TVs e imprensa, mas agora as redes sociais e os serviços de streaming - ignoram que o culturalismo descrito por Jessé Souza oferece subsídios para abordagens críticas que o chamado senso comum se recusa a aceitar. Mesmo a sociedade dita de esquerda também compartilha dessa recusa, presa nas suas ilusões do que entendem ser as "periferias" e todo o imaginário direta ou indiretamente relacionado a elas.
Diz Souza, num trecho do livro Como o Racismo Criou o Brasil, na página 212:
"A glorificação do oprimido, prática comum em várias correntes críticas e de esquerda, tende a secularizar a ética cristã da teodiceia do sofrimento que transfigura o sofrimento em virtude, impedindo a percepção da realidade como ela é. Na verdade, a pobreza material quase nunca vem sozinha. Ela é acompanhada, quase sempre, da pobreza moral, cognitiva e estética".
Jessé também comenta, a respeito das manifestações de pena e ódio da sociedade de classe média em relação ao oprimido, a respeito da aparente atitude dos "indivíduos de bom coração", cuja suposta generosidade seria uma hipocrisia, na medida em que eles também veem os oprimidos como "objetivamente inferiores". Circula na Internet uma foto do famoso "médium espírita", tido como "humilde", recebendo, com regojizo soberbo, senhoras pobres, tristemente resignadas com sua pobreza, se reunindo, obedientes, em fila e cabisbaixas, para beijar a mão do religioso, que mal consegue esconder seu sádico prazer como um pretenso protetor dos oprimidos, demonstrando ser mais um dominador do que um protetor.
O próprio Espiritismo brasileiro, assim como o "funk", dois fenômenos supostamente opostos mas que exploram o povo pobre de maneira convergente, através da glorificação do oprimido, opera sua "gramática da humilhação" na medida em que vê o pobre como um "corpo", como um "animal", desenvolvendo uma dinâmica que, nas palavras de Souza, produz consequências como a "justificação de um mundo social desigual, desumano e injusto a partir do convencimento do indivíduo de sua própria inferioridade.
Embora opostos na sua fachada moral, entre o religiosismo sagrado de um e o hedonismo profano de outro, Espiritismo brasileiro e "funk" também apostam na inferiorização social do povo pobre, reduzindo-o a sua simbologia do "corpo" e sua "dimensão animalizada". Esses dois fenômenos, religioso e musical, apenas são exemplos fortes de todo um imaginário da bregalização e do obscurantismo religioso que foram desenvolvidos em larga escala durante a ditadura militar, mas que, a partir de 2002, foi acolhido até mesmo por setores das esquerdas, que de maneira equivocada enxergam nesses fenômenos ecos de ideias progressistas e libertárias que, em verdade, não existem e não encontram respaldo nesse "generoso" culturalismo oculto por muitos.
Esse culturalismo não é aceito oficialmente porque a sociedade dominante, a chamada elite do atraso, se deixa levar pelo aparato de estabilidade e paz social diante de um cenário de bregalização e do obscurantismo religioso, respectivamente travestidos pelas máscaras de "cultura das periferias" e "espiritualismo", enriquecendo os ricos segmentos sociais envolvidos e explorando a credulidade popular através de supostas virtudes como a "diversão", a "criatividade" e o "bom mocismo".
Como se tratam de fenômenos que não seguem o caráter simplório do culturalismo conservador oficial - alimentado, este, pelo discurso da raiva e da intolerância social - , os setores progressistas da sociedade brasileira se deixam enganar pelo outro culturalismo, o culturalismo oculto, este alimentado por uma retórica "positiva", se esquecendo que essa retórica não impede que o povo pobre seja visto de forma humilhante e depreciativa, pois essa narrativa apenas mascara esse elitismo paternalista com argumentos "positivos" e supostamente "solidários", caprichando no que a licença poética definiria como "o lindo balé das palavras amigas".
Esse culturalismo pretensamente solidário, que vai desde os discursos de "combate ao preconceito" e alcança alegações de "fraternidade e caridade", é apenas um meio sutil de dominação, visto como "invisível" pela chamada opinião pública na medida em que sua aparência apela para imagens sorridentes de pobres estereotipados pela narrativa midiática.
Pobres domesticados, mais obedientes e submissos, livres da conduta raivosa das antigas revoltas populares, se juntam a esse imaginário de uma sociedade "sem conflitos" em que a "boa elite" de empresários e outros agentes socioeconômicos "generosos", abraçados a "médiuns", funqueiros, secretários de coletivos culturais, acadêmicos e jornalistas, dentro do teatro paternalista do "bom mocismo", que força uma pretensa paz social entre opressores e oprimidos, promovendo a desigualdade social em níveis "toleráveis" e fingindo que essa desigualdade está superada.
Com isso, opressores e oprimidos se envolvem num suposto universo de acordo, tolerância e diálogo, mascarando a opressão e a dominação que continuam existindo com medidas paliativas que apenas diminuem a miséria, tornando-a "suportável", mas sem romper com a estrutura de classes. O culturalismo conservador "positivo", tornado invisível pela sociedade, faz o serviço de legitimar a inferioridade social do oprimido, que mesmo recebendo alguns benefícios permanece preso na sua simbologia miserável e animalizada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.
SOUZA, Jessé. Como o Racismo Criou o Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2021.
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