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1965: QUANDO O CARNAVAL CARIOCA ROMPEU COM AS RAÍZES POPULARES

RITMISTAS SE APRESENTAM NO DESFILE DO CARNAVAL CARIOCA DE 1965, O CANTO DO CISNE DAS RAÍZES POPULARES.

Por Alexandre Figueiredo

Em todo ano, nas últimas décadas, a mídia faz uma cobertura entusiasmada do Carnaval, dando a crer que o glamour dos desfiles, simbolizado principalmente por mulheres famosas que se tornam estrelas na ala da bateria de cada escola de samba, continua expressando um vínculo orgânico com as classes populares.

Mesmo a imprensa "isenta", simbolizada no Rio de Janeiro pelos jornais O Dia e Extra / O Globo, evoca essa esfera de ilusão, em que o comercialismo é uma ideia praticada de forma explícita, mas que no discurso é posta debaixo do tapete, fazendo com que o internauta médio entendesse a "cultura de massa" sempre como um processo tão natural quanto o ar puro de uma floresta.

No entanto, por trás dessa propaganda dos festejos momescos há uma realidade muito triste. Pelo menos no Carnaval do Rio de Janeiro, embora casos semelhantes ocorram em outras partes do país, as raízes populares desse evento se encerraram definitivamente em 1965, ano do IV Centenário de fundação da hoje capital fluminense, na época capital do Estado da Guanabara.

Essa decadência foi narrada pelo historiador e jornalista José Ramos Tinhorão, já na primeira edição do livro Música Popular: Um Tema em Debate, em 1966. Na terceira edição do livro, revista e atualizada em 1997, as passagens aparecem entre as páginas 95 e 98, mostrando o drama dos negros, índios e mestiços pobres que se envolvem na preparação da ambiciosa festa, que não participam dos benefícios que o sucesso dos desfiles trouxeram.

O Carnaval brasileiro - que hoje vende a imagem de "O Maior Espetáculo da Terra" - tem origem no entrudo, festa cujos registros mais antigos remetem a 1533, na capitania de Pernambuco (que corresponde a uma significativa parte do Nordeste brasileiro, incluindo não só o Estado homônimo, mas também envolvendo Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas e o oeste da Bahia).

Se dividindo entre as festas dos escravos, através de "grupos" ou "cordões", e das famílias abastadas, os entrudos foram marcados por episódios constantes de violência sangrenta, ocorrida principalmente nos "cordões", quando muitas brigas e assassinatos forçavam a polícia a intervir, o que provocou a má fama desses festejos, considerados bastante perigosos.

Enquanto os "cordões" eram formados por foliões mascarados e eram desorganizados, a sociedade abastada do Brasil colonial tinha, a partir do século XIX, os "ranchos" como uma agremiação mais organizada e com uma festa considerada mais comportada.

Inspirados nos ranchos, indivíduos que moravam no Morro de São Carlos, no bairro do Estácio - localizado junto à Praça Onze, então uma boa parte de uma grande região de bairros populares desaparecida com a construção da Av. Presidente Vargas - , e que haviam sido os chamados "bambas" (espécie de malandros ou trabalhadores precários que viviam na zona urbana carioca) resolveram criar uma agremiação carnavalesca que pudesse gozar de respeitabilidade social.

Assim, pessoas como o cantor e compositor Ismael Silva, o músico Alcebíades Barcellos (Bide) e seu irmão Rubens (o Mano Rubem), o flautista Sílvio Fernandes, o Brancura, o compositor Edgar Marcelino dos Santos (o Mano Edgar), o sambista e artista plástico Heitor dos Prazeres, entre outros, se reuniram no Largo do Estácio para discutir aquilo que se tornou conhecido como "escola de samba", no caso a primeira da história do Rio de Janeiro, o bloco Deixa Falar, fundado em 1928.

A ideia da nova agremiação era também mudar o andamento do samba, tornando-o mais acelerado e revalorizando o ritmo percussivo, distanciando do andamento mais lento, o maxixe, por sua vez derivado de uma variante menos percussiva do samba, o lundu.

A ideia da escola de samba se inspirava nos "ranchos", cujo exemplo pioneiro foi o bloco pernambucano Rei de Ouros, surgido em 1893 com novidades como o enredo e figuras como o mestre-sala e a porta-bandeira, conhecidas do Carnaval de hoje. 

A escola de samba pioneira, a Deixa Falar, encerrou suas atividades em 1933, enquanto outras escolas de samba locais, com o tempo, se fundiram para se tornar a União de São Carlos, atual Grêmio Recreativo Escola de Samba Estácio de Sá.

Várias outras escolas de samba, muitas hoje famosas como Mangueira e Portela (antiga Vai Como Pode), surgiram, através do ideal de solidariedade dos moradores de subúrbios e favelas em organizar agremiações carnavalescas que, sob o nome de "escola", buscavam a proteção da sociedade em vez da repressão policial dos tempos dos "cordões". Chegou-se ao ponto de, no desfile de 1929, a Deixa Falar contou com cavalos cedidos pela Polícia Militar do Rio de Janeiro.

FINANCIAMENTOS

Originalmente, as escolas de samba eram sustentadas por mensalidades pagas por moradores associados e pelo patrocínio de comerciantes dos respectivos bairros e comunidades de origem. As agremiações carnavalescas também eram reflexo da presença social de moradores de origem nordestina no Rio de Janeiro, daí que o samba, eventualmente, também coexistia com o baião introduzido em suas comunidades.

A coisa começou a mudar quando, a partir de 1960, quando a preocupação com a estrutura empresarial já havia contaminado as escolas de samba no seu desejo de ascensão social, o Carnaval carioca começava a se afastar de suas raízes orgânicas das comunidades pobres. As escolas de samba começavam a desejar mudanças que a aproximassem dos padrões elitistas de espetáculo, buscando o luxo e a sofisticação.

A partir dessa época, os financiamentos passaram a serem feitos pelos banqueiros do jogo-do-bicho e por empresários da indústria, gente que não tinha vivência com Carnaval. O Estado, através de governos estaduais e das prefeituras, também assistia na aplicação de verbas para o evento, que passava a ser produzido conforme os interesses turísticos e motivos econômicos. 

O Carnaval, antes uma festa gratuitamente servida à população pobre, que via no evento a expressão cultural de sua comunidade, passava a ser um evento caro, para o divertimento passivo de um público pagante que ficava sentado nas arquibancadas vendo os desfiles.

IV CENTENÁRIO: O CANTO DE CISNE DO CARNAVAL POPULAR

O que poderia ser uma edição histórica do Carnaval carioca, no ano de comemoração do IV Centenário de fundação da cidade do Rio de Janeiro, acabou sendo o fim definitivo das raízes populares da festa carnavalesca.

Em 1965 já era corrente a intenção de "elevar o nível" do Carnaval carioca, e isso tornou-se uma obsessão no evento que pretendia chamar a atenção do Brasil e do mundo, na ilusão de combinar as raízes populares com elementos da "cultura erudita", nas palavras de Tinhorão.

Coreógrafos, figurinistas, cenógrafos, escultores e celebridades eram contratados para os desfiles, dando um requinte à performance visual dos enredos dos respectivos blocos. Passistas passavam a fazer coreografias ensaiadas por bailarinos e bailarinas de elite, que ensinavam os novos passos. 

Vedetes (atrizes de teatro de revista, um tipo de comédia musical popular) também eram contratadas para participar dos desfiles, antecipando as atuais madrinhas da ala de bateria. Um dos diretores de teatro de revista e muito conhecido, na época, por dirigir teleteatros, novelas e humorísticos de televisão, Maurício Sherman, foi designado para ser um dos membros do júri.

A indústria fonográfica lançava, com antecedência ao respectivo carnaval, um LP com as músicas a serem cantadas no evento. No caso do Carnaval de 1965, o LP tinha uma capa colorida e um texto de apresentação traduzido para vários idiomas.

As fantasias e as alegorias se tornavam caras. A imprensa internacional fazia a cobertura desses eventos cheios de pompa e luxo. Contrastando com o luxo e o requinte, compositores de sambas, costureiros e artesãos humildes chegavam a passar fome para produzir, em tempo recorde, todo o material relacionado ao Carnaval daquele ano.

Sobre a fome, um dos sacrifícios feitos pelos humildes que querem participar do Carnaval para economizar o dinheiro para comprar fantasias, o jornalista Aroldo Bonifácio, no jornal carioca Correio da Manhã de 03 de janeiro de 1965, antecipava o drama que depois foi evidenciado pelo espetacular evento daquele ano:

"Muita gente fica intrigada com o custo elevado das fantasias dos sambistas que, via de regra, são pessoas humildes - operários, biscateiros, domésticas etc. - de nossos morros e favelas, desprovidas de recursos financeiros para despesas tão avultadas. O que em tudo isso possa parecer fenômeno, é de fácil explicação. É que os sambistas, esquecendo-se de suas condições modestas, economizam o ano inteiro, às vezes até mesmo na alimentação, a fim de que na época oportuna, isto é, no período carnavalesco, tenham o numerário suficiente para fazer face às despesas com as fantasias, inclusive as dos filhos menores, visto que o maior prazer que sentem na vida é o de ostentar, no carnaval, uma vestimenta rica e bonita. Em alguns casos - estes muito raros - , o sambista conta com o auxílio financeiro da escola".

O Carnaval do Rio de Janeiro de 1965, realizado entre 27 de fevereiro e 02 de março, foi um sucesso estrondoso. O desfile do grupo principal (Grupo 1) foi feito na Av. Pres. Vargas, que era fechada para o tráfego (desde 1984 esse transtorno acabou, com a construção do Sambódromo no Catumbi, entorno da antiga Praça Onze). 

As quatro primeiras colocadas foram, respectivamente, Salgueiro, Império Serrano, Portela e Mangueira. Além delas, desfilaram Império da Tijuca, Padre Miguel, Imperatriz Leopoldinense (então rebaixada para o Grupo 2) e União de Jacarepaguá (também rebaixado para o Grupo 2), além de duas agremiações, União da Capela e Aprendizes de Lucas, que em maio de 1966, tendo a cantora Elizeth Cardoso e o poeta Vinícius de Moraes como padrinhos, se fundiram na atual Unidos de Lucas.

No Grupo 2, cuja campeã dos desfiles, então realizados na Av. Rio Branco, foi a Acadêmicos de Santa Cruz, e a vice, a Unidos de Vila Isabel, as demais escolas de samba participantes, as mais conhecidas, eram Unidos do Cabuçu, Unidos da Tijuca, Unidos de Padre Miguel, Unidos do Centenário (atual Grande Rio), Caprichosos de Pilares, São Clemente e Paraíso do Tuiuti (que se destacou com uma paródia do então presidente Michel Temer, em fevereiro de 2018).

Outras escolas de samba do Grupo 2 foram as ainda ativas Lins Imperial e Unidos da Vila Santa Tereza, mais as hoje extintas Aprendizes da Gávea, Independentes do Leblon (depois Independentes de Cordovil, após a população da Favela do Pinto, no Leblon, ser deslocada para o bairro do Cordovil), Império do Marangá e Tupy de Brás de Pina.

Terminado o Carnaval do IV Centenário, Tinhorão descreve, num comentário bastante amargo, que inclui até o afastamento de antigos parceiros da festa sambista que são contratados por outras escolas:

"E então, o que aconteceu? As humildes costureiras e os humildes artesãos que deram horas e horas de trabalho gratuito na confecção de fantasias e alegorias ficaram sabendo que, na febre da disputa, este ritmista ou aquele passista recebeu determinada soma para trocar de escola. Compreenderam que as centenas de pequenas contas e miçangas que ajudaram a aplicar na fantasia de uma das vedetas da escola já serviram pessoalmente a quem a vestia para ganhar prêmios no (Teatro) Municipal. Os humildes tomaram, afinal, conhecimento dos milhões pagos a toda aquela gente de fora que veio ensinar passos diferentes, modelar alegorias e desenhar estandartes e fantasias. Eis por que os humildes serão forçados a lembrar que, para eles, os crioulos, ficou apenas o suor, o longo jejum à espera da hora de desfilar e a glória mínima de um sorriso sem dentes diante de outros estranhos - os da comissão julgadora. Descobrem assim que, da antiga festa, só participam pelo esforço físico da caminhada e pelo trabalho braçal de empurrar carretas".

Em seguida, Tinhorão conclui:

"E os crioulos? Bem, estes, na quarta-feira de cinzas, despem sempre o manto diáfano da fantasia, envergam a calça furada da realidade, e vão pegar o trem da Central correndo - que o patrão é fogo!".

57 anos depois, em que pesem as eventuais evocações às raízes populares e alguma relativa participação do povo pobre no espetáculo momesco, estão definitivamente distantes os tempos em que as classes populares exerciam o protagonismo no Carnaval carioca. 

Tudo agora se rendeu ao comercialismo atroz no qual, segundo lembrou o músico e jornalista Régis Tadeu no seu canal no YouTube, ocorre um enorme esquema de lavagem de dinheiro dos bicheiros que controlam boa parte das escolas de samba cariocas. "Sem a contravenção, o Carnaval já teria acabado", disse Tadeu em um comentário igualmente amargo.

Resta à classe média se resignar com o faz-de-conta do Carnaval brasileiro e, pelo menos, evitar cair na tentação mentirosa de creditar aos tempos atualmente comerciais uma reputação de raiz que hoje é apenas uma lembrança perdida no passado. Não dá para mentir que o Carnaval carioca ainda é o do povo favelado, tamanha é a estrutura empresarial e a participação de tanta gente de elite neste espetáculo que se realiza a cada ano (e, em 2022, após dois anos de hiato devido à Covid-19).

FONTES: Correio da Manhã, Canal do Régis Tadeu (YouTube), Wikipedia.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

TINHORÃO, José Ramos. Música Popular: Um Tema em Debate. 3. ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora 34, 1997.

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