O "FUNK OSTENTAÇÃO" CONTRADIZ A IMAGEM VITIMIZADA DOS FUNQUEIROS AO EXALTAR O CONSUMISMO CAPITALISTA.
Por Alexandre Figueiredo
Um projeto da Universidade Anhembi-Morumbi de São Paulo, organizado pelo professor Wilson Roberto Vieira Ferreira, o mesmo que produz o blogue Cinegnose, chamado "Vídeos da Quarentena", produzidos por alunos da disciplina ensinada pelo referido semiólogo, Teorias da Comunicação em Publicidade e Jornalismo, tem como um dos temas propostos pelos alunos um referente às relações de contraste entre Teoria Hipodérmica e Teoria da Persuasão.
Sabemos que a Teoria Hipodérmica foi uma das primeiras correntes da moderna Teoria da Comunicação, surgida após os adventos do cinema, do rádio e os primeiros experimentos da televisão, então ainda em processo de implantação. Vigente entre o fim dos anos 1910 e o decorrer da década de 1940, essa teoria se baseava na tese da manipulação midiática sobre o público (a "sociedade de massa"), que acolhe a mensagem captada de maneira inconsciente.
A Teoria da Persuasão, surgida nos anos 1940, contestava sua antecessora porque esta analisava a relação estímulo-resposta de maneira mecanicista, como se a mídia emitisse e o público recebesse sem qualquer tipo de reação espontânea. A individualização de cada receptor não era reconhecida pelo processo de emissão de uma mensagem.
Diferente da outra, a Teoria da Persuasão reflete a função da mídia em primeiro perceber os interesses, gostos e vontades do público para exercer, depois, uma campanha de convencimento através dessas condições. Os mecanismos de manipulação continuavam valendo, mas havia um direcionamento e um reconhecimento do que os receptores desejavam, esperavam e gostavam.
O grupo do professor Vieira Ferreira propõe uma análise referente à campanha de "marginalização" do "funk" e do hip hop, como "vozes das minorias" nas chamadas periferias. O vídeo introdutório menciona apenas o caso do hip hop, mencionando o fenômeno dos Racionais MC's, mas, a julgar pelo que Wilson Roberto escreve no referido artigo sobre os projetos de pesquisa, o "funk" também é visto sob o prisma de "vítima da campanha de marginalização da mídia".
É verdade que o hip hop, enfatizado nesse trabalho, é mais visceral na sua narrativa sobre a realidade das populações pobres, mas o "funk" soa muito mais como um subproduto da Teoria da Persuasão, em uma abordagem mais aproximada. A forma como se deu o termo "funk" no Brasil é um arranjo que envolve interesses midiáticos estratégicos, profundamente divergentes do que ocorreu com o hip hop e com os Racionais MC's que, como fenômeno, pegou muita gente de surpresa.
RIGOR ESTÉTICO DO "FUNK"
A narrativa vitimista do "funk" acabou se tornando dominante, como dominantes se tornaram outras narrativas da bregalização, como supor que os ídolos cafonas, como Odair José, Waldick Soriano e Benito di Paula, foram "vítimas da repressão ditatorial". Afinal, foi uma narrativa em que, de maneira tendenciosa, se usava o discurso de "exclusão social" para vitimizar ídolos que, na verdade, faziam grande sucesso comercial e eram blindados pela mídia corporativa.
O discurso que prevaleceu, sobretudo no imaginário de setores das esquerdas no Brasil, era de que os ritmos "populares demais" eram fenômenos "sem mídia" ou que desempenhavam, na mídia corporativa, um suposto processo de enfrentamento versus apropriação.
Em outras palavras, com base nessa tese, bastante discutível, a mídia corporativa se "apropriava" dos ídolos popularescos que "representavam a cultura das periferias" e estes usavam a mídia corporativa como "enfrentamento" para, supostamente, divulgar sua "mensagem" para uma audiência ainda maior.
Se essa tese do enfrentamento versus apropriação fosse verdadeira, teríamos visto algum conflito entre os ídolos popularescos e os apresentadores que se tornam, de certa forma, representantes dos interesses comerciais do poder midiático. Só que esse conflito nunca houve, e, no caso dos funqueiros, autoproclamados "libertários", nunca houve, da parte deles, uma "queda da Bastilha" exercida nos palcos da Rede Globo ou do SBT, ou nas páginas de Veja e Caras.
O "funk" surgiu, ironicamente, se autoproclamando como "rap". Como o hip hop estava iniciando, através de nomes como Thaide & DJ Hum, o termo "rap" - abreviatura para rhythm and poetry, "ritmo e poesia" - foi apropriado pelo "funk", que já acolhia a fórmula simplória do "DJ e MC" do Miami Bass, corrente comercial do pop dançante latino-estadunidense.
É, portanto, um rigor estético em que uma mesma batida valia para todo mundo. Arremedos de cantigas de roda eram cantados por vozes esganiçadas enquanto o único fundo "musical" consistia numa batida eletrônica, cujo som remete à onomatopeia "pum" (era, portanto, a "batida do pum"), sem que houvesse qualquer liberdade para inserir instrumentos e melodias.
E isso é um rigor estético nivelado por baixo e que contaria a natureza original do funk, no caso o hoje "funk autêntico", em que se observava nomes como James Brown, Aretha Franklin, Chic e Earth Wind & Fire musicalmente bastante exigentes e com canções, que sempre primavam pela qualidade dos arranjos e execuções instrumentais, que, não raro, eram orquestradas.
O "funk" foi um fenômeno comercial que já nasceu blindado pela mídia corporativa. No Rio de Janeiro, o ritmo estabeleceu parcerias com as Organizações Globo através da extinta rádio 98 FM e dos discos da Som Livre das equipes de DJ Marlboro e a Furacão 2000 de Rômulo Costa.
Mesmo o discurso de "movimento sócio-cultural", "livre expressão das periferias", "retrato da realidade do povo pobre" foi uma narrativa construída pelo poder midiático. A Folha de São Paulo, de Otávio Frias Filho (1957-2018), glamourizou o "funk", vendendo-o para uma plateia de descolados e "bacanas", além de oferecer os elementos "culturais" para o surgimento do "funk ostentação".
As Organizações Globo, no entanto, entraram com o "grosso" da campanha. A ideia de "movimento sócio-cultural" foi difundida em tudo quanto era veículo e atração, como se o Brasil, visto como uma "concessão da Rede Globo", fosse uma ilha cercada de "funk" por todos os lados. Por decisão de Rômulo Costa, o apresentador e empresário Luciano Huck foi escolhido "embaixador brasileiro do funk", posto supostamente delimitado entre 2001 e 2011, mas que o marido de Angélica continua exercendo sempre quando pode.
ESQUERDAS "COLONIZADAS" PELO CULTURALISMO DE DIREITA
O sociólogo Jessé Souza chama a atenção, em seus livros, pelo fato de que as esquerdas brasileiras foram "colonizadas" pelo culturalismo conservador de direita. Sem que o sociólogo explicitasse o âmbito do entretenimento - sua abordagem dá a aparente impressão de tudo se limitar a um cotidiano sociológico e às relações sócio-econômicas e sócio-políticas dos brasileiros - , suas ideias, no entanto, se encaixam no que eu defino como "brinquedos da centro-direita" adotados pelas esquerdas.
As esquerdas acolhem, no âmbito da religião, esportes, música e comportamento, ícones promovidos ou blindados pela direita midiática: jogadores de futebol ricos e "pegadores", "médiuns espíritas" que fazem apologia ao sofrimento humano, risíveis ídolos cafonas com letras de exageradas decepções amorosas, "musas" de corpos siliconados cuja única coisa que fazem é se "sensualizarem".
Todos esses ícones são acolhidos pelas esquerdas iludidas por um argumento bastante prosaico: a suposta associação à alegria do povo pobre. São simbologias da direita que evocam desde o lazer alienado - que substitui, em vez de se somar, à conscientização social e política - até o religiosismo submisso, passando por paradigmas de erotização do corpo feminino e espetacularização da pobreza humana, mas que são sustentados por uma narrativa "positiva" que iludiu e ainda ilude os esquerdistas.
Isso permitiu que se criassem condições para o golpe politico de 2016 porque as esquerdas ignoraram que toda essa simbologia, além de se fundamentar na domesticação do povo pobre - "convidado" a aceitar os paradigmas de inferioridade social como um "patrimônio seu" - , legitimam o poder de uma mídia corporativa que se julga "acima das ideologias e das classes sociais", exercendo influência até mesmo naqueles que pareciam se opor a elas, ao menos na agenda do noticiário político e do humorismo.
Afinal, se as esquerdas acolhem os símbolos da mídia direitista, como futebolistas "garanhões", "médiuns espíritas", mulheres-frutas e funqueiros que se projetaram na Rede Globo, na Folha de São Paulo ou no SBT, os esquerdistas acabam legitimando o poder dessa parcela da mídia corporativa, assinando embaixo nos valores por esta transmitidos e tendo o incômodo de compartilhar com Luciano Huck, hostilizado pelas esquerdas, que é o que mais defende tais valores.
VISÃO PRECONCEITUOSA DO POVO POBRE
Mas as esquerdas persistem nesse culturalismo conservador, caindo na armadilha de recorrer a ele para evocar o "funk" no momento em que a direita pós-2016 se envolve em alguma encrenca, ou publicar mensagens do "médium espírita" para, supostamente, combater a polarização e as convulsões sociais, ou recorrer a funqueiras siliconadas quando o assunto é denunciar a opressão machista.
Correndo atrás do próprio rabo, as esquerdas ignoram que esses paradigmas são voltados para a domesticação do povo pobre e sua consequente desmobilização social, em diversos aspectos, desde a ilusão de que um mero entretenimento poderia, em tese, "mudar o mundo", até a crença de que, sofrendo em silêncio e aceitando até as piores adversidades na vida, encontrará o progresso e a bonança na próxima esquina.
A insistência do "funk" como o "santo Graal" do esquerdismo libertário é uma mania que, volta e meia, as esquerdas têm quando há alguma crise num cenário político pós-golpe, e o velho discurso vitimista que ignora que são justamente as classes ricas que mais dançam o "funk", enquanto as mães nas favelas se preocupam com a poluição sonora, as ações criminosas e os abusos sexuais ocorrentes nos "bailes funk", invertendo a discurseira em torno do "combate ao preconceito".
A retórica intelectual dominante em prol da bregalização ignora que, por exemplo, o Nordeste brasileiro não suporta o "forró eletrônico" tido como "ritmo popular" dessa região, ou que pessoas no interior do Brasil desconfiam do "caipirismo de mentira" dos ricaços Chitãozinho & Xororó e todos os similares (inclusive os "universitários"), considerando que não fazem música caipira de verdade.
Imagine, então, a perplexidade do povo pobre, visto como caricato pela mídia do espetáculo, enquanto os intelectuais considerados "bacanas" falam em "como é lindo" ser pobre, viver em favela, trabalhar no subemprego, as mulheres na prostituição, os idosos "afogando as mágoas" no alcoolismo, sem falar da "maravilha" de aceitar o sofrimento sem reclamar da vida.
E aí se vê o "funk" como carro-chefe dessa campanha contraditória, na qual existe o conflito do discurso entre uma abordagem "midiatizada" e outra, supostamente, "realista", do gênero, em que valores da objetificação sexual das funqueiras, por exemplo, é promovido como uma pretensa luta contra o machismo.
As confusas queixas dos funqueiros quanto à forma "espetacularizada" com que o gênero é abordada, mostram essa contraditória postura ao mesmo tempo de indignação e conformação com o poder midiático, que não passa de uma posição que muda conforme as conveniências. "O funk não veio de Marte", se queixou, certa vez, o então presidente da APAFUNK (Associação de Profissionais e Amigos do Funk), MC Leonardo.
E é essa narrativa cheia de contradições que predomina, com o "funk" querendo promover a falsa imagem de "movimento libertário", explorando uma imagem de vitimismo em que usa em causa própria a exclusão social sofrida pelas classes populares. E isso dentro dos mecanismos da sociedade do espetáculo que até hoje são desconhecidos de grande parte das pessoas, porque não existe alguém com visibilidade suficiente para romper com narrativas dominantes, porém fora da realidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.
SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro, Leya, 2017.
WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação. Tradução Maria Jorge Pilar de Figueiredo. 2. Ed. Lisboa, Editorial Presença, 1992.
Por Alexandre Figueiredo
Um projeto da Universidade Anhembi-Morumbi de São Paulo, organizado pelo professor Wilson Roberto Vieira Ferreira, o mesmo que produz o blogue Cinegnose, chamado "Vídeos da Quarentena", produzidos por alunos da disciplina ensinada pelo referido semiólogo, Teorias da Comunicação em Publicidade e Jornalismo, tem como um dos temas propostos pelos alunos um referente às relações de contraste entre Teoria Hipodérmica e Teoria da Persuasão.
Sabemos que a Teoria Hipodérmica foi uma das primeiras correntes da moderna Teoria da Comunicação, surgida após os adventos do cinema, do rádio e os primeiros experimentos da televisão, então ainda em processo de implantação. Vigente entre o fim dos anos 1910 e o decorrer da década de 1940, essa teoria se baseava na tese da manipulação midiática sobre o público (a "sociedade de massa"), que acolhe a mensagem captada de maneira inconsciente.
A Teoria da Persuasão, surgida nos anos 1940, contestava sua antecessora porque esta analisava a relação estímulo-resposta de maneira mecanicista, como se a mídia emitisse e o público recebesse sem qualquer tipo de reação espontânea. A individualização de cada receptor não era reconhecida pelo processo de emissão de uma mensagem.
Diferente da outra, a Teoria da Persuasão reflete a função da mídia em primeiro perceber os interesses, gostos e vontades do público para exercer, depois, uma campanha de convencimento através dessas condições. Os mecanismos de manipulação continuavam valendo, mas havia um direcionamento e um reconhecimento do que os receptores desejavam, esperavam e gostavam.
O grupo do professor Vieira Ferreira propõe uma análise referente à campanha de "marginalização" do "funk" e do hip hop, como "vozes das minorias" nas chamadas periferias. O vídeo introdutório menciona apenas o caso do hip hop, mencionando o fenômeno dos Racionais MC's, mas, a julgar pelo que Wilson Roberto escreve no referido artigo sobre os projetos de pesquisa, o "funk" também é visto sob o prisma de "vítima da campanha de marginalização da mídia".
É verdade que o hip hop, enfatizado nesse trabalho, é mais visceral na sua narrativa sobre a realidade das populações pobres, mas o "funk" soa muito mais como um subproduto da Teoria da Persuasão, em uma abordagem mais aproximada. A forma como se deu o termo "funk" no Brasil é um arranjo que envolve interesses midiáticos estratégicos, profundamente divergentes do que ocorreu com o hip hop e com os Racionais MC's que, como fenômeno, pegou muita gente de surpresa.
RIGOR ESTÉTICO DO "FUNK"
A narrativa vitimista do "funk" acabou se tornando dominante, como dominantes se tornaram outras narrativas da bregalização, como supor que os ídolos cafonas, como Odair José, Waldick Soriano e Benito di Paula, foram "vítimas da repressão ditatorial". Afinal, foi uma narrativa em que, de maneira tendenciosa, se usava o discurso de "exclusão social" para vitimizar ídolos que, na verdade, faziam grande sucesso comercial e eram blindados pela mídia corporativa.
O discurso que prevaleceu, sobretudo no imaginário de setores das esquerdas no Brasil, era de que os ritmos "populares demais" eram fenômenos "sem mídia" ou que desempenhavam, na mídia corporativa, um suposto processo de enfrentamento versus apropriação.
Em outras palavras, com base nessa tese, bastante discutível, a mídia corporativa se "apropriava" dos ídolos popularescos que "representavam a cultura das periferias" e estes usavam a mídia corporativa como "enfrentamento" para, supostamente, divulgar sua "mensagem" para uma audiência ainda maior.
Se essa tese do enfrentamento versus apropriação fosse verdadeira, teríamos visto algum conflito entre os ídolos popularescos e os apresentadores que se tornam, de certa forma, representantes dos interesses comerciais do poder midiático. Só que esse conflito nunca houve, e, no caso dos funqueiros, autoproclamados "libertários", nunca houve, da parte deles, uma "queda da Bastilha" exercida nos palcos da Rede Globo ou do SBT, ou nas páginas de Veja e Caras.
O "funk" surgiu, ironicamente, se autoproclamando como "rap". Como o hip hop estava iniciando, através de nomes como Thaide & DJ Hum, o termo "rap" - abreviatura para rhythm and poetry, "ritmo e poesia" - foi apropriado pelo "funk", que já acolhia a fórmula simplória do "DJ e MC" do Miami Bass, corrente comercial do pop dançante latino-estadunidense.
É, portanto, um rigor estético em que uma mesma batida valia para todo mundo. Arremedos de cantigas de roda eram cantados por vozes esganiçadas enquanto o único fundo "musical" consistia numa batida eletrônica, cujo som remete à onomatopeia "pum" (era, portanto, a "batida do pum"), sem que houvesse qualquer liberdade para inserir instrumentos e melodias.
E isso é um rigor estético nivelado por baixo e que contaria a natureza original do funk, no caso o hoje "funk autêntico", em que se observava nomes como James Brown, Aretha Franklin, Chic e Earth Wind & Fire musicalmente bastante exigentes e com canções, que sempre primavam pela qualidade dos arranjos e execuções instrumentais, que, não raro, eram orquestradas.
O "funk" foi um fenômeno comercial que já nasceu blindado pela mídia corporativa. No Rio de Janeiro, o ritmo estabeleceu parcerias com as Organizações Globo através da extinta rádio 98 FM e dos discos da Som Livre das equipes de DJ Marlboro e a Furacão 2000 de Rômulo Costa.
Mesmo o discurso de "movimento sócio-cultural", "livre expressão das periferias", "retrato da realidade do povo pobre" foi uma narrativa construída pelo poder midiático. A Folha de São Paulo, de Otávio Frias Filho (1957-2018), glamourizou o "funk", vendendo-o para uma plateia de descolados e "bacanas", além de oferecer os elementos "culturais" para o surgimento do "funk ostentação".
As Organizações Globo, no entanto, entraram com o "grosso" da campanha. A ideia de "movimento sócio-cultural" foi difundida em tudo quanto era veículo e atração, como se o Brasil, visto como uma "concessão da Rede Globo", fosse uma ilha cercada de "funk" por todos os lados. Por decisão de Rômulo Costa, o apresentador e empresário Luciano Huck foi escolhido "embaixador brasileiro do funk", posto supostamente delimitado entre 2001 e 2011, mas que o marido de Angélica continua exercendo sempre quando pode.
ESQUERDAS "COLONIZADAS" PELO CULTURALISMO DE DIREITA
O sociólogo Jessé Souza chama a atenção, em seus livros, pelo fato de que as esquerdas brasileiras foram "colonizadas" pelo culturalismo conservador de direita. Sem que o sociólogo explicitasse o âmbito do entretenimento - sua abordagem dá a aparente impressão de tudo se limitar a um cotidiano sociológico e às relações sócio-econômicas e sócio-políticas dos brasileiros - , suas ideias, no entanto, se encaixam no que eu defino como "brinquedos da centro-direita" adotados pelas esquerdas.
As esquerdas acolhem, no âmbito da religião, esportes, música e comportamento, ícones promovidos ou blindados pela direita midiática: jogadores de futebol ricos e "pegadores", "médiuns espíritas" que fazem apologia ao sofrimento humano, risíveis ídolos cafonas com letras de exageradas decepções amorosas, "musas" de corpos siliconados cuja única coisa que fazem é se "sensualizarem".
Todos esses ícones são acolhidos pelas esquerdas iludidas por um argumento bastante prosaico: a suposta associação à alegria do povo pobre. São simbologias da direita que evocam desde o lazer alienado - que substitui, em vez de se somar, à conscientização social e política - até o religiosismo submisso, passando por paradigmas de erotização do corpo feminino e espetacularização da pobreza humana, mas que são sustentados por uma narrativa "positiva" que iludiu e ainda ilude os esquerdistas.
Isso permitiu que se criassem condições para o golpe politico de 2016 porque as esquerdas ignoraram que toda essa simbologia, além de se fundamentar na domesticação do povo pobre - "convidado" a aceitar os paradigmas de inferioridade social como um "patrimônio seu" - , legitimam o poder de uma mídia corporativa que se julga "acima das ideologias e das classes sociais", exercendo influência até mesmo naqueles que pareciam se opor a elas, ao menos na agenda do noticiário político e do humorismo.
Afinal, se as esquerdas acolhem os símbolos da mídia direitista, como futebolistas "garanhões", "médiuns espíritas", mulheres-frutas e funqueiros que se projetaram na Rede Globo, na Folha de São Paulo ou no SBT, os esquerdistas acabam legitimando o poder dessa parcela da mídia corporativa, assinando embaixo nos valores por esta transmitidos e tendo o incômodo de compartilhar com Luciano Huck, hostilizado pelas esquerdas, que é o que mais defende tais valores.
VISÃO PRECONCEITUOSA DO POVO POBRE
Mas as esquerdas persistem nesse culturalismo conservador, caindo na armadilha de recorrer a ele para evocar o "funk" no momento em que a direita pós-2016 se envolve em alguma encrenca, ou publicar mensagens do "médium espírita" para, supostamente, combater a polarização e as convulsões sociais, ou recorrer a funqueiras siliconadas quando o assunto é denunciar a opressão machista.
Correndo atrás do próprio rabo, as esquerdas ignoram que esses paradigmas são voltados para a domesticação do povo pobre e sua consequente desmobilização social, em diversos aspectos, desde a ilusão de que um mero entretenimento poderia, em tese, "mudar o mundo", até a crença de que, sofrendo em silêncio e aceitando até as piores adversidades na vida, encontrará o progresso e a bonança na próxima esquina.
A insistência do "funk" como o "santo Graal" do esquerdismo libertário é uma mania que, volta e meia, as esquerdas têm quando há alguma crise num cenário político pós-golpe, e o velho discurso vitimista que ignora que são justamente as classes ricas que mais dançam o "funk", enquanto as mães nas favelas se preocupam com a poluição sonora, as ações criminosas e os abusos sexuais ocorrentes nos "bailes funk", invertendo a discurseira em torno do "combate ao preconceito".
A retórica intelectual dominante em prol da bregalização ignora que, por exemplo, o Nordeste brasileiro não suporta o "forró eletrônico" tido como "ritmo popular" dessa região, ou que pessoas no interior do Brasil desconfiam do "caipirismo de mentira" dos ricaços Chitãozinho & Xororó e todos os similares (inclusive os "universitários"), considerando que não fazem música caipira de verdade.
Imagine, então, a perplexidade do povo pobre, visto como caricato pela mídia do espetáculo, enquanto os intelectuais considerados "bacanas" falam em "como é lindo" ser pobre, viver em favela, trabalhar no subemprego, as mulheres na prostituição, os idosos "afogando as mágoas" no alcoolismo, sem falar da "maravilha" de aceitar o sofrimento sem reclamar da vida.
E aí se vê o "funk" como carro-chefe dessa campanha contraditória, na qual existe o conflito do discurso entre uma abordagem "midiatizada" e outra, supostamente, "realista", do gênero, em que valores da objetificação sexual das funqueiras, por exemplo, é promovido como uma pretensa luta contra o machismo.
As confusas queixas dos funqueiros quanto à forma "espetacularizada" com que o gênero é abordada, mostram essa contraditória postura ao mesmo tempo de indignação e conformação com o poder midiático, que não passa de uma posição que muda conforme as conveniências. "O funk não veio de Marte", se queixou, certa vez, o então presidente da APAFUNK (Associação de Profissionais e Amigos do Funk), MC Leonardo.
E é essa narrativa cheia de contradições que predomina, com o "funk" querendo promover a falsa imagem de "movimento libertário", explorando uma imagem de vitimismo em que usa em causa própria a exclusão social sofrida pelas classes populares. E isso dentro dos mecanismos da sociedade do espetáculo que até hoje são desconhecidos de grande parte das pessoas, porque não existe alguém com visibilidade suficiente para romper com narrativas dominantes, porém fora da realidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.
SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro, Leya, 2017.
WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação. Tradução Maria Jorge Pilar de Figueiredo. 2. Ed. Lisboa, Editorial Presença, 1992.
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