Por Alexandre Figueiredo
A baixa indignação em relação à crise social em que vivemos se deve à ilusão de que, em muitos segmentos culturalmente relevantes, a a ilusão de que a "bolha social" é um "universo", como se os circuitos fechados fossem garantir que a cultura de verdade estivesse em alta.
Vemos, por exemplo, em festas de aniversário da classe média, aquela advogada que, num karaokê, mostra dotes de cantora. Ela tem boa voz e interpreta com sua dramaticidade peculiar canções conhecidas da MPB. Ela é aplaudida pelos presentes, num grupo de cerca de trinta pessoas em um salão de um condomínio, e tem-se a impressão de que a MPB está em alta.
Temos, no segmento rock, eventos de rock alternativo, emissoras digitais como Cult FM (que, apesar das letras "FM", só é transmitida na Internet e só é sintonizável por celulares que, irradiando webradios, "comem" bateria e são difíceis de manterem a sintonia por mais de uma hora) e festivais de rock pesado (metal e punk) que nem mesmo seus fãs têm ideia de sua existência.
Tem também aquela apresentação de música instrumental que passa num canal de TV por assinatura que nem os fãs dos músicos envolvidos são informados. Reuniões culturais que só são acessíveis para quem tem carro. E eventos culturais que, de tão caros, não são acessíveis a pessoas comuns.
Sim, há cultura de verdade respirando fora das rádios e TVs, fora do mainstream, fora dos espaços oficiais de divulgação. Mas o problema não é isso, é que essa cultura de verdade ocorre em espaços tão restritos que nem mesmo seus apreciadores conseguem ter ideia de sua existência e de quem irá se tornar o farol da cultura do futuro.
Observando as universidades, vemos a vantagem da geração milenial, nascida a partir de 1988, ser culturalmente mais aberta e crítica do que a geração nascida entre 1978 e 1987, que tomou as rédeas do establishment cultural dos anos 2000 e 2010.
A geração 1978-1987, acompanhando o pior das gerações de 1968-1977 (da qual vieram gente como Luciano Huck, Sérgio Moro e Janaína Paschoal), refletiu a mediocridade musical, comportamental e lúdica dos anos 1990, que ditou os caminhos dos anos 2000 e 2010, quando o establishment se fantasiou de "excluído" e criou um discurso vitimista, o "combate ao preconceito" - analisado no meu livro - , para se manter dominante no imaginário não só popular, mas atingindo até a classe média e os universitários.
Soou constrangedor ver atores de TV, antropólogos, cineastas, músicos de MPB e Rock Brasil, aparecerem ao lado de ídolos popularescos como se estes fossem seus mascotes. E isso dando a falsa impressão de que os ídolos "populares demais" é que são as vítimas, os excluídos, os discriminados, quando se sabe que isso não é verdade.
Mas toda a choradeira intelectual, com a atuação convicta de famosos associados, prolongou a permanência da música popularesca no mainstream, embora um mainstream muito mal-disfarçado, como a recusa de muitos em admitir os vínculos midiáticos do "funk" com as Organizações Globo, por exemplo. Até pouco tempo atrás, muitos ainda pensavam que o "funk" ainda não havia conquistado o mainstream, permanecendo num underground onde nunca teve.
Nesse discurso "contra o preconceito", os ritmos popularescos, sob a desculpa de "conquistarem seus próprios espaços", expulsaram a MPB e o Rock Brasil dos seus espaços. Invadindo os espaços dos outros, os ídolos popularescos arrumaram reserva de mercado até em festivais de "cultura alternativa", como o Lollapalooza (embora sabemos que a rendição desses festivais ao mainstream mais rasteiro é uma tendência mundial).
Enquanto nomes como Belo chegaram a se apresentar no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e a Rede Globo tenta vender nomes como É O Tchan e Chitãozinho & Xororó como pretensamente cult, a música de qualidade é literalmente posta para o olho da rua, ou para espaços cada vez mais restritivos, tão restritivos que se tornam desconhecidos até para seus próprios fãs.
A resignação com a "bolha cultural" que estilos como jazz, Bossa Nova, rock alternativo, heavy metal e outros se tornaram, o que não pode ser confundido com ter seus próprios espaços, é preocupante. Afinal, existe uma diferença muito grande entre um estilo musical ter seus espaços próprios de expressão e ficar dentro de uma "bolha social".
A "bolha social" é mais restritiva, porque é como se fosse um feudo, não uma comunidade. É um ambiente tão restritivo que nem mesmo seu público consegue ter consciência plena de sua existência, ou têm dificuldades para chegar a esses espaços.
Como, por exemplo, o morador de um subúrbio distante que, por sorte, gosta de rock progressivo, tem muitas dificuldades de pegar um transporte e ir, no fim da noite, para um evento localizado em algum bairro da Zona Sul ou do Centro. Se ele for pobre, pior ainda. A volta para casa seria mais arriscada.
Claro, as pessoas têm alternativas e outras opções, mas além da falta de estímulos para "garimpar" - ou seja, procurar atrações e fenômenos menos óbvios - , também não existe uma cultura para tirar os nichos específicos de suas "bolhas", mesmo quando eles apresentam canais no YouTube. Os algoritmos privilegiam o mainstream e até as buscas do Google dançam conforme o (algo)ritmo do momento.
Enquanto os espaços que antes apresentavam a MPB, o Rock Brasil e o folclore brasileiro (neste caso, um bom exemplo são as festas juninas) ao grande público foram entregues aos ídolos popularescos, os espaços de resistência cultural são escassos e até mesmo eles são ameaçados, de alguma forma, a serem "sequestrados" pela multidão popularesca.
E isso não ocorre somente na música. Um antigo programa de TV, Mobile, recentemente exibido na TV Cultura, tinha um formato vanguardista, e, quando surgiu, em 1961, foi exibido na mesma TV Paulista (hoje TV Globo São Paulo) que gerou o embrião do Programa Sílvio Santos, Vamos Brincar de Forca?.
Ideias que correspondiam a programas infantis de temáticas ao mesmo tempo criativas e inocentes - como a Turma dos Sete (1960-1964), da TV Record - ou musicais de qualidade (como o formato hoje representado pelo Senhor Brasil, de Rolando Boldrin, também na TV Cultura) - eram naturalmente exibidos na televisão comercial, que não sofria a indigência cultural que se observa hoje em dia.
A grande esperança é que se altere a mentalidade que, erroneamente, define que estamos vivendo em um período áureo da nossa cultura. Nomes criativos sempre existiram, mas hoje eles estão presos numa "bolha" que mal consegue atingir metade do seu próprio público, enquanto mesmo os espaços segmentados do mainstream sofrem de pura indigência e até mesmo canastrice cultural.
Na mídia roqueira, por exemplo, há uma resignação com a "bolha" das webradios que mal conseguem ser sintonizadas fora de casa, forçando as buscas frenéticas por alguma tomada para recarregar o celular. Enquanto isso, a acessibilidade do rádio FM só mostra as canastrices eletrônicas da 89 FM (SP) e Rádio Cidade (RJ), que em qualidade não correspondem sequer a um milésimo do que deveriam ser as rádios de rock apenas razoáveis.
E na MPB? Instrumentistas com vídeos de seus concertos exibidos na madrugada, com três quartos dos seus fãs dormindo, e filhas de advogados cantando em festas de aniversário não vão garantir que a MPB está em alta, quando os espaços emepebistas mais acessíveis estão entregues a ídolos brega-popularescos. Convém pensarmos em como sairmos da "bolha", em vez de nos contentarmos com o aparente sucesso dentro desses estreitíssimos limites.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.
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