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DISCURSO DA BREGALIZAÇÃO EMPURROU AS PERIFERIAS PARA A DIREITA

O ALCOOLISMO ERA TRATADO PELO DISCURSO "SEM PRECONCEITOS" DA BREGALIZAÇÃO COMO UMA CONSOLAÇÃO PARA OS DRAMAS DOS HOMENS POBRES, SOBRETUDO IDOSOS.

Por Alexandre Figueiredo

Seis anos depois da campanha do "combate ao preconceito", que forçava a aceitação da bregalização como suposta expressão "natural" das classes populares, seu grande equívoco veio à tona. A campanha que parecia receber unanimidade na centro-direita e, por proselitismo, em vários setores das esquerdas, abriu caminho para o golpe político de 2016.

A bregalização envolve paradigmas que se encaixam perfeitamente no conceito de culturalismo conservador e no "racismo culturalista" estudados pelo sociólogo Jessé Souza. A ideia de que o povo pobre de países emergentes no Brasil deveria legitimar sua própria inferioridade social a partir do mito do "país cordial" de Sérgio Buarque de Hollanda, trazia paradigmas negativos associados às limitações sociais, culturais e econômicas das classes populares no nosso país.

A bregalização apenas criava um discurso "positivo" para legitimar aquilo que, para o povo pobre, lhes era negativo: o comércio pirata-contrabandeado, o subemprego, a prostituição, o alcoolismo, a ignorância, os valores sociais retrógrados, como o machismo.

No entanto, uma narrativa que passou a dominar definia tais limitações como "libertárias". Diferente do que se relata lá fora, a prostituição, por exemplo, que é vista como um pesadelo para as mulheres no exterior, no Brasil recebeu a narrativa de uma suposta comunidade libertária, um suposto feminismo popular que ignora que o comércio do corpo está a serviço do machismo e dos prazeres de muitos homens afoitos e potencialmente violentos.

Criou-se até mesmo "sindicatos" e "rádios comunitárias" para as prostitutas permanecerem em seu ofício, como escravas dessa ocupação. E despejaram, nelas, um repertório musical brega, tosco, com músicas de qualidade duvidosa que mal serviam para serem escutadas como desabafo, quanto mais como a "verdadeira MPB" da retórica intelectualoide que prevaleceu entre 2002 e 2014.

Uma ironia desse culturalismo conservador é que o jornalista Pedro Alexandre Sanches, ter entrevistado Jessé Souza sem se dar conta que o entrevistador, no caso, era um dos maiores defensores desse mesmo culturalismo que é a bregalização.

Mas ironia maior é que, na campanha do "combate ao preconceito" que constituiu a bregalização, um dos vilões da chamada intelectualidade "bacana" - assim chamada porque desejava parecer simpática e populista num contexto de anti-intelectualismo - é o cantor Chico Buarque, demonizado sobretudo por Pedro Alexandre Sanches e Paulo César de Araújo, acusado de integrar uma ala "burguesa" da música brasileira.

Chico Buarque é filho de Sérgio Buarque de Hollanda, mas, diferente do pai, ele abraçou as causas progressistas e tornou-se uma "ponte" para os jovens atuais conhecerem nomes do passado como Antônio Carlos Jobim, Vinícius de Moraes e Oscar Niemeyer. E é capaz de solidarizar-se com as causas esquerdistas que supostos esquerdistas "convictos" como Sanches nem de longe se interessam a fazer.

A ideia do culturalismo conservador se fundamenta na superioridade ideológica dos EUA no imaginário dominante. A ética protestante estadunidense fazia o contraste entre ricos, associados a aspectos como racionalidade, honestidade e espírito, se contrastava com os padrões sociais "reservados" aos pobres, como a emotividade (cega), a corrupção e o corpo.

A narrativa "positiva" do discurso "sem preconceitos" da bregalização, além de forçar os intelectuais em geral a aceitar a degradação da cultura popular como se fosse "a verdadeira cultura do povo pobre". A ideia de "mau gosto popular" é pejorativa, mas, ao mesmo tempo, trabalhada como uma pretensa causa libertária, atribuída a um suposto contraste ao "bom gosto" das elites ricas.

Era um discurso etnocêntrico, porque, na ótica da burguesia intelectual (da qual Sanches e Araújo fazem parte), que fazia vista grossa aos mecanismos de poder midiático e político que propiciaram os fenômenos "populares demais", o povo pobre era "melhor naquilo que tinha de pior".

A ideia é aceitar toda a degradação cultural imposta ao povo pobre no período ditatorial - quando a bregalização se tornou um processo em ascensão na mídia do entretenimento - , sobretudo através de comentários etnocêntricos ("é o que o povo sabe fazer", disse a acadêmica Malu Fontes em 2008, sobre o fenômeno do arrocha na Bahia), que trazem uma imagem glamourizada da pobreza e da ignorância populares, manifesta pelos fenômenos popularescos.

A partir dos fenômenos popularescos, a retórica intelectual tenta inverter a lógica da inferioridade social, trocando as narrativas ao inferiorizar a "cultura sofisticada" - que tanto pode ser a música erudita de Heitor Villa-Lobos como o samba tradicional de Cartola - , diante de mecanismos que vão de transformar o "funk" numa falsa vanguarda enquanto sambistas autênticos como Martinho da Vila ("substituídos", nas favelas pelos ídolos do "pagode romântico") são "entregues" às classes ricas.

Só que essa retórica, que passa pano na mediocrização dos fenômenos popularescos, sobretudo musicais - como a longa linhagem que vai dos ídolos cafonas do passado, como Waldick Soriano, Luiz Ayrão e Odair José, a nomes recentes como Anitta, Marília Mendonça e Pabblo Vittar - , mas também comportamentais, num combo que inclui humorísticos, programas policialescos e "musas" como Solange Gomes e Mulher Melão, acabou surtindo o efeito indesejado do golpe político.

PERIFERIAS DESILUDIDAS COM O PETISMO

A ideia de promover a idiotização cultural como "algo positivo", abordando o povo pobre como "admiravelmente ingênuo", foi primeiramente difundida na mídia corporativa, principalmente a Rede Globo de Televisão e a Folha de São Paulo, hoje opositoras de Jair Bolsonaro, e SBT, bolsonarista. Mas, depois, efetuou um proselitismo, até certo momento bem sucedido, na mídia esquerdista, principalmente Caros Amigos e Carta Capital, com reflexos também na mídia alternativa digital.

Com base no livro Amanhã Vai Ser Maior, da antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, por ironia com experiência em coluna na Carta Capital, nota-se também que o culturalismo conservador contribuiu para a desilusão das chamadas periferias, que migraram para a direita, diante desse contexto, em que os governos do Partido dos Trabalhadores apenas permitiram a inclusão social pela via econômica, mas pouco fazendo no âmbito da cidadania e da cultura.

Embora seu recorte sejam as periferias da Grande Porto Alegre, podemos inferir, quanto ao trabalho de Rosana Pinheiro-Machado, que a conversão das classes pobres ao anti-petismo se deu pelo fato de que elas tiveram progressos no âmbito do consumo, subordinando sua condição de afirmação social pela aquisição de bens consumistas para forjar um "status social maior", mesmo mantendo uma pobreza simbólica em outros aspectos, referentes à qualidade de vida.

Se juntarmos isso com a abordagem, consentida pelas esquerdas, da degradação da cultura popular, cujo único efeito foi apenas trazer a bregalização para o mainstream e criar reserva de mercado para ídolos popularescos (cantores, músicos e subcelebridades em geral), que, embora supostamente representantes das classes pobres, tornavam-se mais ricos e burgueses do que muitos artistas e famosos aparentemente associados às elites "requintadas", como Chico Buarque.

Paralelamente a isso, surgiram intelectuais de direita que passaram a assumir posturas mais críticas aos fenômenos popularescos, como Rodrigo Constantino e Reinaldo Azevedo, se aproveitando (e falando mal) da complacência das esquerdas com tais fenômenos do entretenimento dito "popular".

Isso fez com que uma outra intelectualidade - num processo que, em níveis extremos, sucumbiu à geração fake news de Allan dos Santos, Diogo Mainardi e Caio Coppolla - se ascendesse e influísse a opinião pública a desenvolver uma intolerância aos governos do PT e a fazer ferrenha oposição a ponto de pressionar a saída de Dilma Rousseff, em pleno segundo mandato presidencial, através de trapaças de ordem jurídica e legislativa.

O tom foi a despolitização das classes populares, que o entretenimento popularesco propiciou, criando no povo pobre um espaço de "recreação" que só o discurso intelectual pró-brega definiiu como "ativismo político", superestimando e deturpando as agendas identitárias para o terreno de uma pretensa provocatividade, que substituiu, simbolicamente, as ações de participação política e mobilidade social voltadas à qualidade de vida e à garantia de direitos sociais.

Com o povo pobre desviado da mobilização popular, afinal, como a pregação do "combate ao preconceito" da bregalização desejava, as classes populares ficaram limitadas a brincar de "ativismo comportamental" no entretenimento popularesco - que, cinicamente, Pedro Alexandre Sanches definiu, no plano musical, como "reforma agrária da MPB" - , o que foi crucial para tirar de escanteio aqueles que poderiam militar para salvar o mandato de Dilma Rousseff.

Sem o povo para fazer manifestações populares, as "manifestações populares" vieram da direita zangada. O "combate ao preconceito" só criou uma sociedade ainda mais preconceituosa, afinal os fenômenos popularescos defendidos pela intelectualidade "bacana" tratavam o povo pobre de maneira preconceituosa, espetacularizando a miséria, a ignorância e até mesmo as falhas físicas dos indivíduos pobres, como uma simples falta de dentes.

Foi inútil blindar os popularescos com desculpas etnocêntricas do nível de comparar os fenômenos "populares demais" com Gregório de Mattos, pelas temáticas "subversivas", Oswald de Andrade, pela americanização, e Chiquinha Gonzaga, pela erotização. Era um etnocentrismo supostamente generoso, mas que não passava de um julgamento de valor por parte das elites intelectuais influentes.

A partir de 2014, por sinal dentro do tempo de pesquisa de Rosana Pinheiro-Machado e época de difusão das ideias de Jessé Souza para além da "bolha" acadêmica, a bregalização, que chegava a forjar uma aparente unanimidade - da qual, risivelmente, fazia dos ídolos popularescos "mascotes" de famosos e artistas, como Waldick Soriano ao lado da atriz Patrícia Pillar e Zezé di Camargo ao lado de Nando Reis - , passou a se desgastar com a crise do setor cultural no Governo Federal.

A crise envolveu direitos autorais, como na Crise do ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), biografias não-autorizadas, devido ao movimento Procure Saber e as verbas estatais da Lei Rouanet, que sem necessidade financiava nomes sem relevância cultural, como o grupo popularesco carioca Tchakabum, e intérpretes com grandes recursos privados disponíveis, como Claudia Leitte.

Isso lançou uma série de problemas que derrubaram o discurso da bregalização, uma vez que criaram, depois, impasses que culminaram no fim do Ministério da Cultura, primeiro por iniciativa, depois revertida, de Michel Temer, e, depois, por iniciativa de Jair Bolsonaro.

Através do apoio midiático, à campanha de Jair Bolsonaro, das mesmas emissoras de rádio e TV que transmitiram os fenômenos popularescos, como SBT, Record e Rede TV!, a bregalização mostrou sua verdadeira face, quando um sem-número de ídolos "populares demais" também foi apoiar a campanha do candidato da extrema-direita.

Isso tudo derrubou todo aquele discurso do "combate ao preconceito", deixando que um grande número de intelectuais que comandaram a narrativa em uma situação de semi-ostracismo, sem ter mais o prestígio de antes. E isso deixou a intelectualidade "bacana", que antes se achava "mais povo que o povo", na imagem que realmente é: a de uma preconceituosa aristocracia intelectual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.

PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã Vai Ser Maior. São Paulo, Planeta, 2019

SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro, Leya, 2017.

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