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"FUNK", ESTUPRO COLETIVO E ANÁLISE DISCURSIVA


Por Alexandre Figueiredo

O episódio do estupro coletivo, ocorrido no dia 21 de maio último, na medida em que citou um sucesso do "funk" revelou também as contradições graves que um ritmo meramente comercial, mas com pretensiosismo de ser visto como "cultura séria", contraiu em seu discurso ideológico.

No referido dia, no bairro Praça Seca, no entorno de Jacarepaguá, uma moça que iria visitar um namorado foi cercada por um grupo de homens e levada para uma casa, onde foi dopada e depois estuprada, durante uma orgia onde foi notada a presença de 33 homens. Eles gravaram um vídeo que, quatro dias depois, foi publicado e compartilhado nas mídias sociais.

O crime repercutiu não apenas no Rio de Janeiro, como também no Brasil inteiro e no mundo. Até a atriz Emma Watson, usando palavras em português, repudiou o episódio. A atriz inglesa é conhecida pelo movimento feminista HeForShe, que se dedica a estimular os homens a se solidarizarem com as mulheres na luta contra a opressão sofrida por estas devido ao machismo.

O estupro coletivo repercutiu no "funk" o mesmo impacto que as gravações de Sérgio Machado repercutiram no governo do presidente da República em exercício, Michel Temer. Um dos estupradores havia citado um sucesso do "funk proibidão" de MC Smith, "Mais de 30 Engravidou".

Paralelo a isso, houve, dias depois, uma entrevista com um ídolo do "funk ostentação", MC Biel, feita por uma repórter do portal IG, em que, numa das perguntas, o funqueiro chamou a entrevistadora de "gostosa" e, fazendo assédio sexual, disse que a "quebraria pelo meio", metáfora para estupro.

A repórter ficou horrorizada e, constrangida, voltou de táxi chorando e depois decidiu denunciar o caso. MC Biel, demonstrando arrogância, disse que não se arrependeu do que fez, considerando sua atitude uma "brincadeira". Por outro lado, um vlogueiro do YouTube, Felipe Neto, disse que havia sofrido ameaças de Biel, que lhe mandou uma mensagem neste sentido que depois foi apagada.

Após a repercussão desse episódio, chama a atenção o fato da funqueira Valesca, que é considerada "ativista feminista", não ter se pronunciado oficialmente quanto ao episódio. Ela havia viajado com a vencedora do Big Brother Brasil 16, Ana Paula Renault, para visitar a Disney World, nos EUA.

"REFLEXO DA REALIDADE"

Ritmo marcado pelo coitadismo, que é a mania de se passar por "vítima", mais uma vez o "funk" usa esse recurso para se pronunciar a respeito do episódio, mas só depois de tanta repercussão. Uma reunião foi feita pelo projeto "Eu Amo Baile Funk", patrocinado pelas Organizações Globo, dentro de um Circo Voador muito distante de seus tempos vanguardistas dos anos 1980.

Nele, se discutiu o problema do estupro coletivo e o principal argumento que se deu sobre o "funk" é que ele era "reflexo da realidade". Em outra ocasião, o ex-presidente da APAFUNK, MC Leonardo - integrante da dupla de irmãos MC Junior & MC Leonardo, do sucesso "Rap das Armas" - declarou que "o funk não veio de Marte" e "reflete" a sociedade machista, patriarcal e erótica.

Só que o "funk" cai em contradições. Afinal, o "funk" diz assumir compromissos que, mais tarde, declara não ter obrigação de assumir. O jornalista Artur Xexéo, de O Globo, no seu artigo "O funk, o espelho e o reflexo", publicado no Segundo Caderno de 05 de junho, havia lançado uma pergunta desafiadora, sobre a declaração de MC Leonardo de que "o funk não é espelho da sociedade, e sim reflexo da sociedade": "O espelho não reflete?".

Cria-se toda uma propaganda de que o "funk" é feminista, progressista, vanguardista, esquerdista, libertário, quando na prática ocorre o oposto de tudo isso. Os ideólogos do "funk" chegam a dizer que o "funk" é uma síntese de vários movimentos ativistas e sócio-culturais, da Semana de Arte Moderna ao movimento pop-art e do Tropicalismo ao punk rock.

NO DISCURSO, UMA COISA, NA PRÁTICA, OUTRA BEM OPOSTA

No entanto, o discurso do "funk" é uma coisa, a prática é completamente outra. Enquanto o discurso ideológico tenta definir o "funk" como um processo rico de expressões culturais e comportamentais, dotado de posturas vanguardistas, a prática revela um ritmo sonoro repetitivo, meramente comercial e associado a valores retrógrados.

O "funk" faz apologia à ignorância e à pobreza e se apoia em valores retrógrados. Se aproveita de um vácuo na Educação nas classes populares e, por isso, se promove com letras em português errado e na expressão de valores sociais bastante atrasados.

Musicalmente, o "funk" possui um rigor estético ferrenho, nivelado por baixo, com vocais rústicos acompanhados apenas de uma batida eletrônica e uma prévia seleção de sons que é sempre a mesma a cada temporada.

Nos anos 90, se limitava a uma batida eletrônica. Em 2005, passou a imitar batuques de umbanda. Em seguida, um amontoado de sons eletrônicos imitando sirenes, galopes e uma gravação de um MC balbuciando coisas do tipo "tchuscu-tchuscu-dá".

No "funk", existe uma hierarquização sutil do DJ e do MC. O DJ é como se fosse o "cérebro" do "funk", não raro sendo também um empresário e produtor, e que em trabalhos solo faz o chamado "funk exportação", arremedo de música eletrônica feito para turista ver. Já o MC é o porta-voz, o fetiche, a "celebridade", a "vitrine" do suposto "movimento artístico-cultural".

O maior problema do "funk" é a ruptura com as lições do antigo funk autêntico ou mesmo do funk eletrônico de Afrika Bambataa. Com o "funk carioca" dos anos 90, o que se viu foi um karaokê que contrasta severamente com o som consagrado por James Brown que, é bom deixar claro, tinha uma grande banda de músicos e uma orquestra de apoio por trás, exemplo seguido de maneira criativa pelo brasileiro Tim Maia.

Não há no "funk" uma preocupação com as melodias nem com os arranjos. É um mesmo som que se trabalha de década em década, independente do intérprete. O MC varia, mas o som é rigidamente o mesmo, como se observa nos celulares tocados pelos alunos pobres que andam pelas cidades.

Três das cinco vertentes do "funk" possuem rigorosamente a mesma estrutura sonora. O "funk de raiz", de temáticas "sócio-políticas", o "funk comercial", feito para o grande público em geral, e o "funk proibidão", de temáticas mais agressivas e eventualmente alusivas à violência.

Somente o "funk melody" e o "funk exportação" apontam leves diferenças sonoras, que não chegam a ser artisticamente relevantes: o "funk melody" é uma adaptação, em ritmo de miami bass (matriz estadunidense do "funk carioca"), do brega dançante de Odair José, e o "funk exportação" uma espécie de "elaboração" do "funk carioca" feito pelo DJ para atrair o público estrangeiro.

Recentemente, surgiu uma variante paulista do "funk carioca" chamada "funk ostentação", que se pauta na reprodução da atitude do gangsta rap dos EUA, enfatizando o luxo e o consumismo aliado a sutis alusões à violência e à pornografia. Um de seus ícones, MC Guimê, de Osasco, trabalha sua imagem como se fosse uma versão politicamente correta do Eminem.

CONFUNDINDO IMAGINÁRIO E REALIDADE

O discurso engenhoso do "funk", que se tornou carro-chefe de uma retórica trazida por intelectuais derivados de círculos acadêmicos liderados por políticos do PSDB, como Fernando Henrique Cardoso e José Serra (este atual ministro das Relações Exteriores do governo de Michel Temer), dos quais se destacavam nomes como Pedro Alexandre Sanches, Paulo César Araújo e outros, tem a habilidade "circular" de rebater argumentos contrários.

Desta forma, o "funk" é um ritmo comercial, sonoramente limitado e esteticamente rígido, mas que tenta passar uma imagem ideológica contrária. Sem reais compromissos sócio-culturais, primeiro trabalha uma imagem de pretenso ativismo sócio-cultural, se servindo de um discurso supostamente vanguardista e provocador, para depois desconstruir seu próprio discurso.

O "funk" se autoproclama conscientizador mas, diante de incidentes negativos, desmente essa própria missão. O ritmo busca um discurso ideológico que, primeiro, busca assumir compromissos que, mais tarde, revela não ter qualquer obrigação em assumir.

É o típico "promete, mas não cumpre" do discurso político, mas feito num contexto diferente. Pois o discurso do "funk" revela um imaginário que se confunde com a realidade, uma rede de contradições discursivas entre o que "poderia ser" e o que "realmente é".

Tratam-se de interpretações tendenciosas, confusas, mas que parecem verossímeis para um Brasil em que mesmo as leis são interpretadas de forma confusa por setores do Poder Judiciário, nas figuras de Gilmar Mendes e do "herói" midiático Sérgio Moro.

Permite-se a prevalência de um discurso em que o "funk" comete seus equívocos e tenta sair ileso dos mesmos. Tenta assumir compromissos com a mesma facilidade em que tenta se livrar deles. Responsabilidade nunca é o forte do "funk", que diante da rejeição da opinião pública, investe no coitadismo, como suposta vítima de preconceito.

Daí que o "funk", por exemplo, se promove como um "movimento pró-feminista". Essa é sua promessa discursiva. Quando ela falha, diante da expressão machista do "funk" - funqueiras como mulheres-objetos, funqueiros como "garanhões" - , o "funk" logo se livra da responsabilidade e diz que "só reflete a realidade" das classes pobres.

Mas o próprio "funk" trabalha uma visão preconceituosa das classes populares. Na medida em que promete compromissos que depois não assume, o "funk" usa o "preconceito" como forma de se livrar de responsabilidades pelos prejuízos sociais a ele associados, mesmo quando se observa claramente que o "funk" é, em si, uma visão preconceituosa das classes populares.

O "funk" glamouriza a pobreza e a ignorância das classes populares. Sua rigidez estética nivelada por baixo - vocais sempre rústicos e sonoridade primária - contradiz a "riqueza artística" que o discurso intelectual alardeia, e que esconde também um outro aspecto: a visão paternalista das elites intelectuais.

Desse modo, o "funk" é uma rede de manobras discursivas tendenciosas, criando um embate entre teoria e prática, mito e realidade, pretensão e responsabilidade. Algo muito estranho para um ritmo que se autoproclama "verdadeira cultura popular", porque, com toda contradição que um movimento cultural pode expressar, nenhuma manifestação autêntica chega ao rol de tendenciosismos e manobras discursivas do "funk".

Diante dessas manobras discursivas e da retórica engenhosa, confusa mas persuasiva do "funk", conclui-se que ele não pode ser considerado um fenômeno realmente artístico nem um patrimônio cultural de verdade, mas tão somente uma definição certeira e exata: o "funk" não é mais do que uma grande e habilidosa estratégia de marketing.

FONTES: O Globo, jornal Extra, blogue Linhaça Atômica.

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