Por Alexandre Figueiredo
A intelectualidade que exerce supremacia na formação de opinião pública tem sérios problemas de abordagem. Centralizada no eixo Rio-São Paulo e de formação elitista, essa intelectualidade, supostamente "progressista" e "engajada", anda assumindo posições muito estranhas para sua missão de zelar pela cultura brasileira.
Em primeiro lugar, é uma intelectualidade complacente com os descaminhos impostos pela "cultura de massa", defendendo a breguice dominante e a mediocrização, para não dizer imbecilização, de chamada cultura popular, pelo menos aquela que é consumida pelo grande público das classes mais pobres.
Em segundo lugar, porque é uma intelectualidade que demonstra estar cansada da MPB autêntica que consome. Entende-se com MPB autêntica a música brasileira que se compromete não necessariamente a atingir o grande público, mas na produção de uma arte feita para perdurar, com uma expressividade que está acima de qualquer potencial de sucesso fácil, rápido e estrondoso.
Tomada de um certo narcisismo disfarçado por uma suposta militância em prol da cultura popular, os intelectuais dominantes no Brasil tentam jogar todo o patrimônio cultural, não só musical, mas também de outras modalidades artísticas ou mesmo em outros aspectos, como o comportamental, para a apreciação privativa das elites nas quais os próprios intelectuais pertencem.
Daí que existe uma orientação dessa intelectualidade, cujas estrelas principais são o historiador Paulo César Araújo e o antropólogo Hermano Vianna, mas que incluem outros historiadores, antropólogos, sociólogos, cineastas, jornalistas culturais etc, de defender a mediocrização da cultura popular, sob o pretexto das palavras "popular" e "pobre" atribuídos à suposta "cultura popular" midiática.
MPB NUNCA FOI HEGEMÔNICA
Essa intelectualidade, tida como supostamente ativista e como pretensa defensora de abordagens progressistas, na verdade busca desenvolver um discurso ideológico no qual a defesa da "cultura" brega-popularesca é feita através de um discurso sofisticado que dissimule seus preconceitos elitistas que os fazem apoiar um ideal estereotipado do que devem ser e viver as classes populares.
Esse discurso, sabemos, usa de todos os recursos possíveis, de uma simples reportagem a textos de blogues, de um documentário de cinema a monografia de pós-graduação. No entanto, o propósito nada tem de nobre, que é a defesa da degradação sócio-cultural que a intelectualidade, adotando postura paternalista, tenta traduzir como se fossem "valores positivos" das populações pobres.
A defesa, um tanto neurótica, outro tanto chorosa, da ideologia brega-popularesca - definida como uma suposta "cultura das periferias", com base na dicotomia "centro X periferia" difundida por Fernando Henrique Cardoso - , é motivada pelo tédio que uma geração de intelectuais, nascida sobretudo entre 1959 e 1980, tem em relação à MPB autêntica.
Para eles, na sua visão elitista e localista, a MPB autêntica parecia exercer uma "hegemonia" no qual essa intelectualidade agora tenta combater. Principalmente quando é a parcela da MPB associada a bossanovistas como Tom Jobim e Vinícius de Moraes (foto acima), cepecistas como Edu Lobo e discípulos da MPB moderna que fundiu as duas tendências como Chico Buarque e Francis Hime.
Numa inversão de valores, a intelectualidade defende o "mau gosto" do brega-popularesco em detrimento da música de qualidade da MPB moderna dos anos 60, achando que até os bossanovistas mais difíceis eram apreciados nos rincões isolados da Amazônia.
Não, não eram. A MPB autêntica que irrita intelectuais badalados de hoje mal conseguia chegar perto do grande público nas grandes capitais. Quando muito, o interior do país ouvia serestas e marchinhas de carnaval, mas a Bossa Nova e as tendências pós-CPC da UNE nem sequer eram vagamente conhecidas. Billy Blanco e João Donato sempre foram "forasteiros" no Norte do país onde haviam nascido.
Isso cria um sério problema, e mostra o quanto a intelectualidade dita "sem preconceitos" adota até mesmo uma visão etnocêntrica, bairrista e elitista. Era só ela que ouvia plenamente toda a MPB sofisticada que hoje rejeita. Somente essas elites intelectuais conheciam esses artistas e todo o "do-re-mi" de suas músicas. Etnocentricamente, achavam que o "povão" ouvia aquilo que eles escutavam.
Daí o sério problema que essa intelectualidade faz em relação à crítica cultural. Enquanto adotam uma postura melindrosa que, na prática, evita tocar nos problemas da "cultura de massa" brega-popularesca, como se o "mau gosto" fosse válido só porque "é o que o povo gosta e sabe fazer", pegam pesado quando se trata de fazer críticas a Chico Buarque, Edu Lobo, Elis Regina e Tom Jobim.
Chegando mesmo a usar inúmeras desculpas para a defesa extremada de ritmos como o "funk carioca", a intelectualidade se contradiz quando tenta desmitificar a postura progressista de Chico Buarque, o equivalente brasileiro de Bob Dylan, no sentido de valor artístico-cultural e do engajamento sócio-político.
A partir de abordagens do ultrabadalado Paulo César Araújo, Chico Buarque passa a ser visto como um "oportunista", um artista que este historiador, no seu livro Eu Não Sou Cachorro, Não, tenta inverter o que os fatos já mostraram de concreto: que Chico teria sido um cantor de protestos contra a ditadura, enquanto os ídolos cafonas sempre estiveram de acordo com os interesses da ditadura militar.
DEFESA REACIONÁRIA DO "MAU GOSTO"
Diante do coro de intelectuais que transformaram Paulo César Araújo numa espécie de "vaca sagrada" do meio, a MPB de Chico Buarque e afins passou a ser vista de forma pejorativa, como se fazer música brasileira de qualidade fosse um pecado. Em contrapartida, o intragável "funk carioca" passou a ser divinizado pela intelectualidade, que tenta todo tipo de discurso para tentar justificar o injustificável.
O "funk carioca", diluição grosseira do antigo funk eletrônico de Afrika Bambataa, sucumbiu a um cenário em que os DJs-empresários do gênero se tornaram ricos e "donos" dos supostos artistas que promovem o sucesso do ritmo.
A aliança desses empresários com a grande mídia, sobretudo a Rede Globo, é feita dentro de um contexto de difusão de valores ligados ao machismo, racismo, banditismo e a degradação sócio-cultural do povo pobre, dentro de uma estética sonora confusa e tendenciosa, rigidamente elaborada para que se realce a "estética do mau gosto" que transforma o ritmo em algo de investimento barato e retorno milionário.
Só que as elites intelectuais reagem a toda essa realidade, quando ela é denunciada, com toda a sua visão paternalista e supostamente solidária às classes populares, em defesas ao "mau gosto" cultural tão oportunistas e reacionárias (apesar de falsamente "progressistas"), num procedimento típico dos colunistas políticos do porte de Eliane Cantanhede, da Folha de São Paulo.
O contexto é outro, pois ante à clara aversão aos movimentos sociais dos comentaristas políticos, a intelectualidade que defende o brega e seus derivados, sobretudo o "funk carioca", se baseia numa falsa defesa dos movimentos sociais, com uma argumentação de defesa que mais parece a defesa da glamourização da miséria do que alguma solidariedade real com as classes populares.
A intelectualidade dominante se preocupa em defender problemas como se fossem a solução, ignorando que, no "funk carioca", existem, além da produção de estereótipos sociais preconceituosos contra o povo pobre, difusão de valores retrógrados e todo um processo de divisão de classes (a elite "má" e "inteligente demais" e o "bom" povo pobre "sábio" na sua ignorância) e até precarização de trabalho nos MCs do "funk".
No entanto, essa intelectualidade age em repúdio contra quem realmente faz arte como produção de conhecimentos, contra quem vê a cultura através de vínculos sociais verdadeiros, e não aqueles vínculos "comunitários" subordinados ao poder midiático. O brega-popularesco, sobretudo o "funk", são vinculados a esse poder e a intelectualidade, em vez de aprofundar essa discussão, tenta desmentir.
Com tudo isso, a intelectualidade brasileira acaba fazendo, à sua maneira, os mesmos erros e excessos que membros do Poder Judiciário do porte de Gilmar Mendes, Luís Fux e Roberto Gurgel, fazem, pouco inclinados à justiça social e mais afeitos a uma promiscuidade com o poder midiático que se recusam a assumir no discurso, mas que praticam com todo o gosto.
Com uma intelectualidade assim, a sociedade brasileira é prejudicada, porque é uma elite "pensante" que só faz falar, tendo muito mais compromisso com o jabaculê radiofônico do que com o patrimônio cultural brasileiro que eles não desejariam ver plenamente revitalizado pelas classes pobres. Para essa intelectualidade, o melhor é que o povo pobre permaneça burro e atrasado, porque "incomoda menos".
FONTES: MINGAU DE AÇO, DIÁRIO DO CENTRO DO MUNDO, CAROS AMIGOS, REVISTA FÓRUM.
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