Por Alexandre Figueiredo
Hoje, Dia Nacional da Cultura, é mais um dia de reflexão do que de festejos do patrimônio cultural de nosso país.
Vivendo uma situação delicada, em que o "deus mercado" chega mesmo a exercer domínio quase total do tema cultura, e poucas pessoas conseguem compreender exatamente o problema da cultura brasileira.
Vemos o patrimônio histórico e cultural do passado sendo razoavelmente preservado e de alguma forma divulgado na imprensa e na Internet, mas ele não é ainda apreciado pelo grande público. Não é estimulado seu interesse por esse patrimônio, ele torna-se um patrimônio "museológico", um passado desprezado, um passado que só está aí para exposição, mas exposição para quem não se sabe.
Enquanto isso, o que impera é uma dita "cultura popular" que corresponde aos padrões estereotipados e mercantis trabalhados pela grande mídia. São valores de gosto duvidoso, de valor artístico discutível, que dizem reclamar seu reconhecimento dentro da diversidade cultural brasileira, mas é a mesma diversidade que ela desprezou durante muito tempo.
Essa "cultura" midiática, que não produz conhecimentos e só atende aos interesses do consumismo e da estagnação social, apenas trabalha as classes populares de maneira estereotipada e caricata. A miséria é tratada de forma glamourizada, e o povo pobre visto como "uma multidão de bons selvagens".
A intelectualidade que defende essa pretensa "cultura" como o novo folclore brasileiro, tomada de referenciais teóricos confusos, contraditórios e etnocêntricos - em que cientistas sociais atribuem aos fenômenos popularescos referenciais que só esses intelectuais conhecem, como num julgamento "positivo" do "outro" através do "eu" - , tenta omitir ou mesmo desmentir esse processo de domesticação das classes populares feito pela TV, rádio e pela imprensa "marrom".
Isso porque é uma intelectualidade muito jovem, ela mesma educada pela televisão, e cuja infância se deu durante o regime militar. É compreensível, portanto, que nomes badalados como Hermano Vianna, Pedro Alexandre Sanches, Paulo César Araújo e Mônica Neves Leme tenham aprendido valores midiáticos dos tempos do "milagre brasileiro", ao passo que são muito jovens para entender o passado remoto da cultura popular.
Sua compreensão do passado remoto não é nula, mas é pouco vivenciada devido à relativa pouca idade deles, sem a bagagem polêmica mas profunda de um José Ramos Tinhorão e sem o senso crítico de pesquisa de um Ruy Castro.
Hermano, Pedro, Paulo César e seus pares são apenas alunos aplicados, herdeiros de um moralismo acadêmico de seus tempos de criança, a ver as periferias não pelos olhos de quem vive nela, mas pelos olhos de quem a vê pelos documentários e teses acadêmicas, movidos pela ilusão de compensar a "vivência meramente documental" por uma visão por demais positiva do outro, quase que acrítica, consistindo num verdadeiro laissez faire do entretenimento da periferia.
Nessa visão ilusória, não existe miséria nem problemas sociais da pobreza. Eles "existem" só no enunciado. Mas não há deslizamentos de terra, nem criminalidade, nem desemprego, nem mendicância. As comunidades pobres são "Disneylândias" do entretenimento pobre, as favelas são "arquiteturas pós-modernas", o próprio discurso intelectual se corrompe entre o "científico" e o "marqueteiro", num amontoado de retóricas que parecem atraentes e convincentes, mas são desprovidas da lógica crítica de compreensão do que realmente é a realidade do povo pobre.
Mas essa visão torna-se oficial, e, o que é pior, torna-se aliada dos interesses da mídia dominante. Grandes corporações como as Organizações Globo, o Grupo Folha e o Grupo Abril literalmente assinam embaixo em tudo o que Pedro Alexandre Sanches, por exemplo, escreve. Apesar deste crítico musical, aparentemente, estar na "trincheira" oposta a essa mídia. Mas, é como se vê no futebol, jogador que faz gol contra dá pontos para o time adversário.
A "cultura" brega-popularesca - a tal "cultura popular" estereotipada que glamouriza a pobreza - viveu durante muito tempo alheia aos rumos da cultura brasileira e desdenhando, até com um orgulho latente, a antiga cultura popular de qualidade que os pobres tão independentemente de qualquer dominação produziram ao longo dos séculos.
O brega-popularesco se constituiu, se sustentou e se fortaleceu dentro do cativeiro midiático, de uma mídia "popular" controlada pelas várias elites oligárquicas que controlam várias localidades em todo o país. Parecia isolado no seu processo de popularização, mas cresceu de tal forma que hoje perdeu as noções de tempo, espaço e mesmo de público.
A Internet agravou a situação, quando apresentou o antigo patrimônio cultural para o grande público. Isso rompeu o controle exclusivo da grande mídia, que na última instância decidiu reciclar os referenciais brega-popularescos sob o rótulo de "verdadeira cultura popular". Buscava-se então associações tendenciosas dessa pretensa "cultura" com valores autênticos, e a intelectualidade de plantão foi decisiva para esse novo marketing travestido de teses científicas.
Isso criou novos problemas, pois a "monocultura" brega-popularesca, durante muito tempo alheia à cultura brasileira, hoje quer se apropriar dela a pretexto de uma diversidade que aquela há muito desprezou. Falsos sambistas, por exemplo, tão orgulhosamente alheios à compreensão de seu histórico, hoje tentam regravar o antigo cancioneiro, num desesperado oportunismo de última hora.
Mesmo fenômenos midiáticos praticamente combinados pelos escritórios de seus DJs-empresários, como o "funk carioca", reclamam o status de "patrimônio cultural", mesmo que ele seja decidido não pela via técnica do IPHAN, mas por portarias assinadas por parlamentares. O tecnobrega do Pará, sentindo o potencial publicitário da medida, fez o mesmo.
Enquanto isso, a antiga cultura popular de nossa história não se atualizou. Ela existe, é do conhecimento das gerações recentes, e até existem artistas contemporâneos em atividade, mas ela não consegue ter a projeção que possa ofuscar o cardápio popularesco das rádios e TVs.
Esse passado cultural das classes pobres é duplamente apropriado pela classe média, enquanto o povo pobre desconhece o próprio legado de seus antepassados. Ver que os conjuntos de "pagode romântico", para muitos o "paradigma" do samba contemporâneo, não sabem a diferença entre lundus e maxixes, entre samba-de-roda e samba-de-gafieira, é gritante.
A classe média se apropriou do passado cultural do povo pobre através da confinação museológica que é o aspecto vicioso do patrimônio cultural, quando usado de forma equivocada. Afinal, o patrimônio cultural existe não para ser confinado em museus ou em eventos culturais "passadistas", mas para expressar o diálogo do passado com o presente.
Além desse aspecto, há também a própria apreciação da classe média do patrimônio cultural antigo, seja feito por ídolos das classes pobres do passado, seja feito por artistas de classe média simpatizantes dessa cultura.
O povo pobre fica alheio a isso e, em vez de produzir novos baiões, novos sambas, novas catiras, novas modinhas, assimila tendências estrangeiras impostas pelo poder midiático e que não devem ser confundidas com a natural assimilação de expressões de fora analisadas pelo modernista Oswald de Andrade.
Com isso, vemos que a cultura popular enfrenta um ruído de comunicação com as classes populares. O novo folclore se dará com a legitimação do império midiático do brega-popularesco? Certamente, não. Se o brega-popularesco é expressão de algum grupo, ele é em relação aos empresários e divulgadores que promovem seus fenômenos. Não é, de fato, a cultura das periferias, até porque o povo pobre apenas a consome e a reproduz conforme os valores impostos de cima da grande mídia.
Pois é tudo isso que devemos analisar, de forma crítica e analítica. Deve-se analisar não pela letra morta, pelo discurso, pela promessa. Não existe problemática sem problemas. Como também o senso crítico não deve ser usado para combater o senso crítico.
A cultura popular não é algo que venha ao povo pobre ao "sabor do vento", ainda mais se o vento vem dos escritórios midiáticos e dos chefões do entretenimento. A cultura popular também é afetada por interesses de domínio de classes, e, num contexto de dominação midiática, isso é algo que não deve ser menosprezado nem desmentido.
Portanto, a cultura popular, nesse dia de hoje, é um tema de reflexão. Antes de começarmos a festa, deveremos ver qual a festa que realmente queremos para nosso país.
FONTES: IPHAN, Caros Amigos, Revista Fórum, Blogue Mingau de Aço.
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