PEDRO ALEXANDRE SANCHES E FERNANDO HENRIQUE CARDOSO - Discípulo e mestre, ainda que poucos saibam disso.
Por Alexandre Figueiredo
Uma geração de intelectuais que hoje se encontra em evidência na mídia, embora se alinhe, teoricamente, com o contexto sócio-político de centro-esquerda, apresenta ideias que se identificam, na prática, com o quadro sócio-político anterior representado pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso.
Em tese, são pensadores da cultura brasileira envolvidos numa produção intelectual variada, numa multiplicidade de discursos comunicativos, que no entanto são feitos não para questionar o status quo do entretenimento midiático, mas muito antes reafirmá-lo e desqualificar qualquer tentativa de questionamento.
O discurso é variado em técnicas e métodos. Em técnicas, usa-se, entre outras linguagens, recursos da Teoria das Mentalidades, a narrativa histórica que privilegia personagens anônimos e fatos cotidianos comuns, do New Journalism, que é a reportagem feita em narrativa de romance literário. Em métodos, usa-se monografias, documentários, reportagens, ensaios etc, numa riqueza de conteúdo discursivo para reafirmar o establishment cultural-midiático dominante.
Embora aparentemente esses intelectuais representem uma quase unanimidade nos principais setores da opinião pública influente, a "cultura popular" que eles alegam defender segue paradigmas de superficialidade e comercialismo que, por mais que seus pensadores tentem se alinhar com o pensamento de esquerda e seu discurso libertário, num momento ou em outro reafirmam a identificação, não assumida, com a Teoria da Dependência lançada por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto, e pela sua consequente teoria intelectual predominante na USP a partir da década de 80.
A TEORIA DA DEPENDÊNCIA DE FHC
Houve, nos anos 60, duas correntes que marcaram a Teoria da Dependência, uma tendência das ciências sociais que analisava a situação dos países latino-americanos no contexto do subdesenvolvimento.
Uma dessas correntes foi a marxista, cuja figura central foi o economista e historiador Ruy Mauro Marini (1932-1997), que se voltava para a interpretação das situações concretas de dependência dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, admitindo uma ruptura nessas relações de subordinação econômica (com reflexos sociais e políticos) com os países mais ricos, estes considerados líderes do processo político e econômico mundial, embora, durante muito tempo, tenham esta liderança sofrido a concorrência do chamado mundo socialista do Leste Europeu.
A grande diferença entre esta corrente e a outra, inspirada em Max Weber, está em como pensar a superação do subdesenvolvimento dos chamados países periféricos (os subdesenvolvidos ou em desenvolvimento), termo que contrapõe ao dos países centrais, dado aos países ricos e politicamente poderosos.
A corrente weberiana é onde se enquadra o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que, bem antes de entrar na política e na condição de sociólogo exilado durante o regime militar, havia escrito, com Enzo Falleto, em 1967, o livro Dependência e Desenvolvimento na América Latina. A obra sugere que os países subdesenvolvidos e em desenvolvimento superem suas desigualdades sociais sem fazer ruptura com sua situação subordinada diante dos países mais ricos.
É uma visão tecnocrática, que visa manter os países periféricos na sua situação inferiorizada frente à supremacia dos países centrais. A teoria de Fernando Henrique e Enzo Falleto visa reconhecer e respeitar a superioridade histórica dos países desenvolvidos, apenas admitindo a possibilidade do desenvolvimento dependente e subordinado dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
O RAMO CULTURAL
Construindo uma base teórica, nos anos 70, que se consolidou nos anos 90 quando Fernando Henrique, lançando o Plano Real, foi eleito presidente da República, a teoria weberiana da dependência fez projetar um grupo intelectual que tornou-se influente na política e até mesmo na mídia paulistana na década de 80.
Esse grupo contou com professores e intelectuais que lecionaram na USP e que incluiu também jornalistas que se engajaram no modelo de imprensa que se constituiu no Projeto Folha, um plano de mudanças editoriais e gráficas desempenhado pela Folha de São Paulo, jornal paulistano que se encontrava no contexto de concorrente moderno em relação ao tradicional O Estado de São Paulo.
O grupo de intelectuais era composto pelo próprio Fernando Henrique Cardoso, pelo ex-líder estudantil e economista José Serra - o mesmo que integrou a esquerda católica e presidiu a UNE na época da crise política que derrubou João Goulart em 1964 - , por José Paulo Rouanet Francisco Weffort, Guido Mantega (depois saído do grupo para estar ligado à política do governo petista de Lula) e outros.
A influência do grupo no ramo cultural é algo que até agora não foi devidamente estudado. A bibliografia se limita a analisar apenas o aspecto político-econômico e o jornalístico. José Arbex Jr., ex-jornalista da Folha de São Paulo, havia feito um excelente relato sobre os aspectos ocultos do Projeto Folha no seu livro Showrnalismo: A mídia como Espetáculo.
Sem querer substituir ou fazer qualquer abordagem definitiva sobre a relação da elite uspiana representada pelos precursores do modelo político do PSDB, este texto oferece pelo menos alguns subsídios para futuras análises, deste e de outros autores.
O que se nota na bibliografia sobre o pensamento dessa elite da USP - que, para melhor entendimento, definamos como "tucano-uspiana", em alusão à ave símbolo do PSDB, o tucano - é que o cientista político Francisco Weffort foi um dos críticos do projeto de mobilização sócio-cultural observado da Semana de Arte Moderna de 1922 até os últimos projetos do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes.
Segundo suas críticas, Weffort reprova o "nacional-populismo" simbolizado por essas iniciativas. Classifica de "ideológico" o processo de emancipação sócio-cultural do país, à revelia das imposições mercadológicas da economia em processo de internacionalização, e que refletia também no aspecto social e cultural, além do político.
O próprio Fernando Henrique, na condição de presidente da República, afirmou claramente que pretendeu encerrar muitos legados da Era Vargas. Isso se refletiu não apenas nesses aspectos óbvios da política, economia e, em parte, da cultura (no âmbito educacional e jornalístico), mas também no entretenimento.
DEFENSORES DO BREGA-POPULARESCO
O brega-popularesco, processo que envolve uma adaptação de conceitos de cultura popular para o mercado, é exatamente a aplicação de conceitos variados do pensamento neoliberal, que variam do projeto econômico de Roberto Campos durante o regime militar até as próprias ideias de Fernando Henrique Cardoso, passando por teorias clássicas tomadas emprestado de nomes como Auguste Comte e Henry Ford ou mesmo pensadores recentes como Francis Fukuyama.
Só a concepção musical diz muito da associação com a Teoria da Dependência de Cardoso e Falleto. Vemos que os primeiros ídolos cafonas se alinham com o projeto de Roberto Campos, de aproveitamento de linguagens artísticas desgastadas - a geração de Waldick Soriano, com os boleros, e a de Odair José, com a já desfeita Jovem Guarda - , com inegável paralelo ao uso de matéria-prima obsoleta defendido por Campos.
Com fortes elementos estrangeiros "confrontados" com uma perspectiva provinciana dos cantores regionais, o que representa, no plano cultural, a associação entre o imperialismo e o latifúndio, os primeiros ídolos cafonas de 1964-1968 ainda não haviam entrado num contexto posterior à propagação das ideias lançadas por Fernando Henrique Cardoso, que só seriam mais influentes na década de 70.
A aplicação de conceitos da Teoria da Dependência na cultura brasileira se fundamenta no princípio de que a cultura do povo pobre não pode estar associada a um vigor artístico expressivo nem a valores sociais elevados. Cria-se uma "superioridade" na imagem inferiorizada dos pobres, que se tornam subordinados a um estereótipo construído pelas elites, que, com base nas ideias de Cardoso e Falleto, só poderá se evoluir socialmente dentro dos limites de suas próprias condições sociais de classe dominada, quando muito assimilando apenas padrões formais das classes dominantes, como forma de legitimar e respaldar o processo de dominação de classes.
Dessa forma, a associação de projetos turísticos durante o regime militar, que também lançava sua versão do "milagre brasileiro" para a agricultura e pecuária - a Revolução Verde - , fazia dos demais Estados do Brasil fora do eixo Rio-São Paulo, e sobretudo o interior do país, em regiões economicamente competitivas dentro do projeto de economia neoliberal.
Isso, no âmbito cultural, sobretudo na música, influiu na fragmentação da música brega original em tendências "regionais" que se tornaram fonte para tendências que surgiram nos anos 90: "sertanejo", "pagode romântico" (já herdeiro do "sambão-jóia" da Era Médici), axé-music, forró-brega e, com forte acento estrangeiro do Miami bass, o "funk carioca".
Essas manifestações são a aplicação da Teoria da Dependência na cultura brasileira. Sem mais estimular a formação de artistas com personalidade marcante como os do passado - vide, por exemplo, Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga - nem em uma manifestação fortemente regional, a "cultura popular" da teoria de Cardoso e Falleto está em plena sintonia com o desenvolvimento dependente e subordinado proposto pelos dois escritores.
Afinal, o brega-popularesco "moderno", despojado do antigo regionalismo de séculos, está alinhado com o hit-parade dos EUA - ramo cultural de seu projeto hegemônico na economia - , mas visto pela ótica da inferioridade social do povo pobre, com sua baixa escolaridade e com valores sócio-culturais não mais transmitidos pelo convívio comunitário, mas difundidos de cima para baixo pelo poder das rádios regionais e pelas retransmissoras de redes de TV aberta.
A RETÓRICA INTELECTUAL
Centralizada nas figuras do historiador Paulo César Araújo, do antropólogo Hermano Vianna e do crítico musical Pedro Alexandre Sanches, a intelectualidade que respalda o brega-popularesco é composta também por sociólogos, cineastas, celebridades, artistas que se inspiraram nos conceitos da Teoria da Dependência para criar um discurso que reafirme a "cultura popular" veiculada pela mídia dominante do entretenimento.
O discurso de defesa tem poucas variações, embora seja apresentado, como sabemos, sob as mais diversas técnicas e métodos. Normalmente, une-se o discurso pós-tropicalista lançado por Caetano Veloso nos anos 70 para reafirmar a indústria cultural, para complementar as ideias do pensamento liberal e neoliberal adaptadas para o âmbito cultural.
É um discurso que, todavia, tenta desvencilhar a herança evidente. Busca-se, no melhor estilo da retórica do establishment pós-tropicalista, usar a contradição como meio discursivo, e assim uma narrativa "socializante" e "libertária" dá lugar aos claros relatos inspirados na teoria de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto.
Mas nota-se a referência à Teoria da Dependência, mesmo num discurso mal disfarçado pelo paternalismo "socializante", quando seus pensadores buscam reafirmar a mediocridade artística do brega-popularesco, tentando classificar a inferioridade social do povo pobre de uma forma aparentemente "positiva".
Em primeira instância, tentam "justificar" a inferioridade social pelo fato de que essa é a "condição cultural" do povo pobre. Certa vez, num artigo do jornal A Tarde, de Salvador, referente ao "arrocha", estilo neo-brega local, a jornalista e professora Malu Fontes disse que "é isso o que o povo pobre sabe fazer", entendendo as críticas ao estilo como um suposto desejo de "idealização" do que ela entende por "cultura popular".
Os próprios cenários dessa "cultura popular" apresentam situações sócio-profissionais provisórias, mas anunciadas como se fossem definitivas e permanentes, como a prostituição, o comércio de camelôs ou mesmo o consumo de bebidas alcoólicas por parte dos homens trabalhadores ou aposentados. De Paulo César Araújo escrevendo sobre os primórdios da música cafona até Pedro Alexandre Sanches escrevendo sobre o tecnobrega, nota-se esse detalhe, que concorda com a tese de subordinação social da periferia descrita por Fernando Henrique Cardoso.
Em segunda instância, tentam forjar uma "autosuficiência das periferias" - usando um jargão típico da Teoria da Dependência - , medida similar ao que John Kenneth Galbraith, economista norte-americano, atribui às manobras ideológicas que as autoridades conservadoras, na chamada "cultura do contentamento", utilizam para mascarar as desigualdades sociais e dar uma ilusão de que as classes populares não precisam de auxílio das autoridades para melhorarem suas vidas.
Artigos de Hermano Vianna e Pedro Alexandre Sanches, como o documentário Sou Feia Mas Tô Na Moda de Denise Garcia, ou até mesmo o artigo "Esses pagodes impertinentes..." do baiano Milton Moura, trabalham essa ideia do parágrafo anterior, dando a crer que as "periferias" vivem uma "prosperidade" à sua maneira. Com essa tese, a intelectualidade envolvida faz uma visão glamourizada da miséria, procurando mascarar as tensões sociais.
Em terceira instância, o discurso investe numa "precarização do sucesso". Ou seja, atribuem o sucesso e o poder midiático do qual integram os ídolos popularescos como algo "inexistente" ou "acidental". O discurso minimiza o "sucesso" por duas maneiras: num classifica os ídolos "populares", mesmo no auge da fama, como "vítimas de preconceitos". Noutro, tenta minimizar ou até anular a associação desses ídolos a veículos midiáticos como rádios FM e TV aberta, que conceberam essa forma mercantil de "cultura popular".
O discurso do "preconceito" está em quase todo documento de defesa do brega-popularesco. De Waldick Soriano a Tati Quebra-Barraco, passando por grupos "díspares" como Banda Calypso, Odair José, Gaby Amarantos, Calcinha Preta, Zezé Di Camargo & Luciano e Exaltasamba, a exploração da palavra "preconceito", que chega ao nível abusivo, visa ampliar o sucesso desses ídolos para plateias mais exigentes, através de uma campanha que se assemelha a de pedintes de rua, pela sua dramaticidade piegas.
Esse "marketing da exclusão" acabou invertendo o critério de mérito dos ídolos musicais. Tentou creditar o sucesso de cada cantor, grupo ou dupla pela rejeição recebida por um suposto público especializado ou por uma suposta reação da crítica. A campanha chegava a níveis paranóicos, como atribuir a rejeição do "funk carioca" ou fenômenos como É O Tchan a supostas campanhas moralistas, como se vê em um texto de Bia Abramo e no livro-monografia de Mônica Neves Leme sobre o referido conjunto do sucesso "Segura o Tchan".
Já a tentativa de dissociação da mídia no sucesso desses ídolos tenta fazer omitir o dado histórico das concessões de rádios FM feitas por Antônio Carlos Magalhães e José Sarney nos anos 80, que influiu decisivamente no processo de mercantilização da cultura popular pelo brega-popularesco, que deixou sua marca nos anos 90.
Aliás, foi essa "cultura popular" de mercado, dos anos 90, que, antevendo seu desgaste diante dos avanços sociais do começo do século XXI, que apelou para o socorro intelectual, de forma que antigos modismos definidos por especialistas como "monocultura" - a "monocultura" do "pagode romântico", "sertanejo", axé, "funk" etc - sejam agora relançados sob o rótulo de "verdadeira cultura popular".
CRISE DO PSDB E DEBANDADA IDEOLÓGICA
O aparente desvínculo desses intelectuais com a grande mídia e a política associadas aos governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, a ponto de alguns pensadores tentarem uma associação tendenciosa com o pensamento de esquerda, é reflexo de uma crise política que quase põe o legado uspiano da Teoria da Dependência a perder.
Divergências políticas de antigos partidos aliados do bloco do PSDB e PFL (depois DEM) - como PMDB e os atuais PP e PR - fizeram estes migrarem para o apoio ao governo do Partido dos Trabalhadores.
No plano intelectual, a associação dessa intelectualidade com a Folha de São Paulo - que na prática funciona como braço jornalístico do PSDB - também passou a ser sutilmente rompida, não no plano ideológico, mas no plano formal. Nota-se, em muitos artigos, que o jornalista Pedro Alexandre Sanches, agora como colaborador de periódicos esquerdistas, continua escrevendo como se ainda estivesse trabalhando na Folha de São Paulo.
Mesmo adeptos da Teoria da Dependência weberiana, como Guido Mantega e Francisco Weffort passaram a fazer parte do bloco petista. Enquanto isso, a terceira tentativa, nos últimos anos, do PSDB voltar ao poder, em 2010, ao resultar no fracasso eleitoral, expôs um cenário de disputas pessoais de poder que faz os dois partidos, PSDB e DEM, perderem seus integrantes, sobretudo os que recentemente passaram a compor os quadros do ressuscitado PSD, o antigo Partido Social Democrático de Juscelino Kubitschek agora reciclado num contexto bem diferente.
Quanto aos intelectuais defensores do brega-popularesco, a visibilidade com que gozam apresenta uma reputação quase inabalável. A globalização permite que suas visões, cuja associação com a Teoria da Dependência é evidente, embora não assumida, tenham validade diante de setores influentes da opinião pública.
No entanto, os desafios de novas demandas sociais, de uma classe média nova que difere dos ganhadores de loteria e dos novos-ricos da Era FHC, exigirá uma nova cultura, que não será a de bregas e neo-bregas produzindo simulacros de MPB. Mas será uma cultura mais orgânica e associada aos novos tempos.
Cabe saber como a intelectualidade do brega-popularesco irá encarar esses novos desafios, revisando suas teses ou criando novas manipulações discursivas para manter o continuísmo cultural-midiático.
FONTES: Caros Amigos, O Globo, Revista Fórum, A Tarde.
BIBLIOGRAFIA
ARBEX JR., José. Showrnalismo: A Midia como Espetáculo. São Paulo: Casa Amarela, 2004.
GALBRAITH, John Kenneth. A cultura do contentamento. São Paulo, Ed. Loyola, 1992.
MARTINS, Carlos Eduardo e VALENCIA, Adrián Soleto. Teoria da dependência, neoliberalismo e desenvolvimento: reflexões para os 30 anos da teoria. Disponível em www.pucsp.br/neils/downloads/v7_martins_sotelo.pdf. Consultado em 03 de junho de 2011.
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