Por Alexandre Figueiredo
É muito ilustrativa a coincidência do ano de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e a publicação do livro Caminho de pedras, da escritora Raquel de Queiroz. Os dois fatos são de 1937 e o SPHAN, que depois de tantas mudanças de siglas - que no entanto não correspondiam na mudança da estrutura geral da instituição, que sempre foi uma só - é hoje o atual IPHAN (Insituto, no lugar de Serviço), vive até hoje seu "caminho de pedras" na sua tarefa de preservar o imenso patrimônio cultural de nosso país, infelizmente subestimado.
Desde o dia 15 de maio de 2007 os servidores do IPHAN, assim como os de outros órgãos ligados ao Ministério da Cultura, entraram em greve prevista para terminar na época dos Jogos Panamericanos, dois meses depois. Os principais motivos são a luta pelo reajuste salarial e pela efetivação do novo plano de carreira prometido pelo Governo Federal. O plano de carreira e os reajustes foram prometidos pelo Governo Federal depois da greve anterior dos órgãos, em 2005, que durou 100 dias. No entanto, a greve também tem por objetivo chamar a atenção para a situação precária dos órgãos do MinC.
O Ministério da Cultura foi criado, no governo José Sarney, em 1985. No mesmo ano, por coincidência, havia falecido o ex-Ministro da Educação e Saúde do primeiro governo Getúlio Vargas, Gustavo Capanema, que havia juntado intelectuais modernistas que realizaram seus primeiros projetos políticos em prol da cultura. Desde os primórdios do MinC, o Plano Especial de Cargos da Cultura estava na pauta reivindicatória dos servidores. A greve envolve as diversos órgãos ligadas ao Ministério, como o IPHAN, A Funarte, a Biblioteca Nacional, a Agência Nacional de Cinema (ANCINE) e outras instituições, incluindo museus, em todo o país.
A manifestação envolve várias reivindicações. Além do cumprimento do Plano Especial de Cargos para a Cultura, que prevê gratificações que aumentariam o salário dos servidores (completamente defasados quanto à natureza de seus cargos), a greve tem por objetivo exigir que políticas governamentais em prol da cultura sejam ampliadas, como a criação de um sistema de gestão de cultura, de conselhos especializados e a implementação de fundos para investimentos em projetos neste sentido. A própria reestruturação do IPHAN, através das Casas do Patrimônio (novo modelo de gestão da entidade), que pode incluir aumento do número de servidores, depende desses investimentos.
No caso do IPHAN, a própria trajetória da instituição, em suas várias siglas no decorrer dos seus 70 anos, demonstra que a instituição enfrentava a rotina da indiferença da sociedade, da falta de políticas que valorizassem a instituição e seus projetos, ou mesmo da indiferença das pessoas que não têm a consciência da preservação patrimonial.
MÍDIA FAZ DESCASO SOCIAL COM O PATRIMÔNIO
Até surgir o SPHAN, haviam apenas ações isoladas em prol do patrimônio nacional. A primeira delas, de 05 de abril de 1742, foi por iniciativa do nobre português Conde de Galveias, que, com base no alvará da coroa portuguesa de 28 de agosto de 1721 (que determinava a proteção de edifícios e objetos históricos antigos de Portugal e suas colônias), expediu ao governador da capitania de Pernambuco, Luís Pereira Freire de Andrade, um documento administrativo protestando contra o projeto que transformou em quartel o Palácio das Duas Torres, que o conde alegava ser um dos marcos da presença holandesa no país.
Mais tarde, outras iniciativas vieram somente no século XX, pois, numa época em que havia inúmeras revoltas e insurreições, que estimulavam a destruição de vestígios de opressões banidas, não havia uma preocupação em manter as impressões de épocas que se desejava então serem superadas. A preocupação pela preservação patrimonial era incipiente e mesmo as iniciativas pioneiras eram voltadas mais ao acervo de personalidades importantes ou pessoas ricas, havendo indiferença em relação ao patrimônio popular.
Mas leis no sentido de proteção patrimonial são criadas, dando primeiro passo à preservação do patrimônio histórico. O deputado pernambucano Luís Cedro cria, em 03 de dezembro 1923, a Inspetoria de Monumentos Históricos, através do projeto de lei 350. Em 16 de outubro de 1924, foi a vez do deputado mineiro Augusto de Lima, que criou o projeto de lei 181 daquele ano, proibindo a saída de obras de arte antiga para fora do país. No ano seguinte, no dia 04 de junho, sob a solicitação do presidente de Minas Gerais (na época, "presidente" era o título do governante estadual), Fernando de Mello Vianna, uma comissão elaborou um projeto em defesa do patrimônio histórico, com maior alcance e melhores recursos legislativos. Nas palavras de seu relator, o jurista Jair Lins, o projeto determinava que "os móveis ou imóveis, por natureza ou destino, cuja conservação possa interessar à coletividade, devido a motivo de ordem histórica ou artística, serão catalogados, total ou parcialmente, na forma desta lei e, sobre eles, a União ou os Estados passarão a ter direito de preferência". O projeto de Jair Lins tem a façanha de ser o primeiro a mencionar a expressão "móveis", se referindo aos objetos a serem preservados.
O quarto projeto foi elaborado e apresentado no final da República Velha, pelo deputado baiano José Wanderley de Araújo Pinho, visando a organização da defesa do patrimônio histórico e artístico nacional, citando também os bens móveis e incluindo, nestes, até livros raros ou antigos e documentos de valor lítero-histórico ou artístico, incluindo vários manuscritos. No entanto, quando o projeto estava perto de ser apreciado pelo Congresso Nacional, ele foi dissolvido pela Revolução de 1930.
Apenas em 1936 o poeta e pesquisador Mário de Andrade planejou um órgão federal de proteção do patrimônio histórico que, na sua ampla visão pessoal e futurista, incluiria uma minuciosa abrangência quanto ao patrimônio cultural. Tendo resultado no IPHAN, instituído em 13 de janeiro de 1937, mas só regulamentado em 30 de novembro, as limitações políticas e financeiras da instituição fizeram com que o projeto original fosse substituído por outro menos ousado. A burocracia, o momento político de então - a regulamentação do SPHAN se deu vinte dias após o início do Estado Novo - e a própria situação do país, com seus problemas de desigualdade social e outros aspectos como a especulação imobiliária, o roubo de objetos de arte (sobretudo em igrejas no interior do país) e o próprio desestímulo dos meios de comunicação à necessidade de preservação dos valores do passado, dificultam a realização plena dos objetivos originais do órgão.
A própria necessidade de preservação patrimonial ainda era incipiente nos seus critérios e perspectivas. Durante muito tempo se pensava no patrimônio ambiental apenas em relação a obras de valor histórico - com base na visão tradicional da "história dos acontecimentos", que privilegiava as personalidades políticas e as celebridades culturais - e religioso. Durante muito tempo não se pensava, pelo menos com a devida ênfase, no patrimônio popular, e praticamente isso só ganhou importância maior com a História das Mentalidades, a partir dos anos 30 do século XX. Não que não se pensasse, sobretudo, em utensílios domésticos de povos indígenas ou em manifestações folclóricas, que desde o início também eram considerados na preocupação patrimonial, mas seu destaque se deu após a repercussão da nova abordagem histórica dos Annales franceses.
O contexto brasileiro, de um país cuja evolução acontece de maneira tumultuada, onde eventuais momentos de tensão política foram resolvidos por governos autoritários, mostra que o Brasil, uma nação recente, ainda está para construir sólidas referências culturais.
Ao longo dos anos, as instituições em prol da cultura no Brasil enfrentaram sérios problemas e o IPHAN não foge a esta triste regra. Mesmo com a instituição dos livros de Tombo, que registram os bens e instituições a serem preservados sob o status de patrimônio nacional, o órgão, ao longo dos anos, não conseguiu evitar a destruição de vários imóveis históricos nem o extravio de bens móveis de grande valor cultural. Só para citar os casos recentes, o roubo de peças de museus no Rio de Janeiro, em 2006, e a destruição da Mansão Wildeberger em Salvador, em 2007, mostram a dimensão das dificuldades do IPHAN em monitorar as ações preventivas em prol do patrimônio.
Infelizmente existe um descaso social, que é inerente ao regime capitalista que vigora no Brasil. O capitalismo é um modelo econômico que, ampliado para outras esferas (política, social e cultural), torna-se nociva em muitos aspectos. Sendo voltado para o lucro e para o atendimento dos interesses de grupos sócio-econômicos privilegiados, o capitalismo se volta para o novo e para o imediato, por isso valoriza pouco as tradições, e freqüentemente atua em prejuízo a elas. Só remete às tradições quando há um contexto favorável e uma repercussão social que exija determinada ação neste sentido.
No entanto, é comum que os próprios meios de comunicação atuem no desenvolvimento de uma memória curta, por isso desestimulando a valorização de tradições, com base na estratégia da revelação e ocultação de informações. Assim como não se esconde tudo, também não se revela tudo. A mídia é seletiva na transmissão das informações, e no caso do Brasil, é dentro de um contexto onde a miséria e o analfabetismo ainda são grandes e a educação pública é muito precária. Até tivemos grandes pensadores da Educação, como Anísio Teixeira, Paulo Freire e Darcy Ribeiro mas eles, mortos, são pouco valorizados diante de uma demanda que, pasmem, chega a tratar celebridades de gosto discutível como Xuxa, Ivete Sangalo e Zezé Di Camargo como se fossem "intelectuais" (e, certamente, não são).
O próprio Rodrigo de Melo Franco Andrade, o primeiro presidente do IPHAN, dava ênfase à Educação como forma de conscientizar as pessoas quanto à necessidade da preservação dos valores culturais e os objetos a eles associados. A Educação Patrimonial deveria ser uma matéria à parte nas escolas, mas lamentavelmente a própria mídia faz com que as pessoas se sintam desestimuladas em debater a questão da Educação. E isso não é porque os veículos de comunicação digam que debater a Educação é inútil.
Com a exceção das emissoras educativas, o assunto da Educação é trabalhado pela mídia de forma comumente sentimental, chegando à pura pieguice. Fica muito fácil mostrar propagandas com alunos escrevendo num quadro negro e a professora ficar sorrindo. Parece que a solução da Educação está num passe de mágica.
Mas até aí não é muito problema mostrar alunos fazendo contas de Matemática num quadro. Dentro dos limites da propaganda, faz até sentido mostrar cenas assim, embora não resolvam a situação. O problema maior é quando a mídia lança a fantasiosa idéia de que o Esporte "educa" as pessoas, numa exploração discursiva que consegue seduzir mentes mais sensíveis. No entanto, por trás desses exemplos tão badalados de atividades esportivas como "cidadania" existe um sistema educacional que inclui ciências sociais, matemática, português etc.. Não é jogando bola ou praticando natação que a pessoa vai se tornar cidadã ou adquirir sabedoria, nem sequer ter consciência social sobre coisa alguma. A própria mídia, expressão da lógica capitalista, não está interessada em discutir pra valer a Educação, porque isso pode provocar transformações sociais que irão comprometer a supremacia opinativa da mídia e, com um povo mais conscientizado, dificultar a prevalência dos privilégios dos ricos.
A Educação é muito ampla para se analisar da maneira como a mídia explora. Vai muito além de fazer contas, ou de aprender "cidadania". Aliás, o que é "cidadania"? É um tema mais complexo do que a mídia tão facilmente quer explorar. Por isso mesmo o debate público, fora do cativeiro mediático mas com a participação de mais agentes sociais, seria mais adequado para discutirmos as formas de transmitir mais e melhores conhecimentos para um número maior de pessoas, longe dos filtros mediáticos do agenda setting (espécie de hit-parade dos temas em evidência na mídia), dos pretensos donos da opinião pública que estão na grande imprensa e do marketing sentimental que faz as pessoas sonharem, sem adotar soluções concretas e eficazes.
Pensar a cultura, num país ainda sub-desenvolvido, com o poder privado dos veículos da grande mídia e sérios problemas sociais, ainda é um grande problema a se resolver. A greve dos órgãos do Ministério da Cultura é um sinal para a sociedade brasileira pensar a situação. Espera-se que a greve não se limite à paralisação de atividades profissionais, e os manifestantes procurem meios de difundir o protesto, adotando meios alternativos à simples reunião sindical. O cartaz na mídia é provisório, e seu impacto nem sempre é certeiro, e a greve não pode ser contemplada apenas pelos seus envolvidos ou pelos seus simpatizantes diretos, para os quais os motivos da manifestação são mais do que evidentes.
Fontes: Agência Carta Maior, O Globo, Nota Independente, Ministério da Cultura On Line.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Rodrigo e o SPHAN: coletânea de textos sobre o patrimônio cultural. Rio de Janeiro: SPHAN/Pró-Memória, 1987.
LEMOS, Carlos A. O que é Patrimônio Cultural. Série Primeiros Passos. 5. ed. 3. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2006.
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