Por Alexandre Figueiredo
O carnaval pernambucano poderá em breve contar com mais um patrimônio histórico. É o frevo, ritmo musical da folia de Recife e Olinda, que, celebrando cem anos em 2007, recebeu do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional a promessa de transformar este estilo musical em patrimônio imaterial. A música já conta com o samba do Recôncavo da Bahia, que recentemente foi transformado em patrimônio imaterial.
A proposta de transformar o frevo em patrimônio, reivindicada pela Prefeitura de Recife, está nas mãos do Conselho Consultivo do IPHAN, composto de 22 personalidades, 14 delas reúnidas no dia 09 de fevereiro na Igreja de São Pedro dos Clérigos, diante do Pátio de São Pedro, um dos locais que integram o circuito carnavalesco da capital pernambucana. O Ministério da Cultura, através do titular da pasta, o compositor baiano Gilberto Gil, tramitou a proposta em Brasília, num prazo de seis meses, considerado recorde diante do ritmo que costuma ser de até dois anos.
A proposta prevê a inclusão do frevo na categoria Patrimônio Imaterial do Livro de Formas e Expressão do IPHAN. De acordo com o presidente do IPHAN, Luiz Fernando de Almeida, a conversão do frevo em patrimônio imaterial será benéfica para os projetos culturais locais. "Fica mais fácil para as agremiações de frevo apresentarem projetos ao Ministério da Cultura e pleitearem incentivos junto à iniciativa privada", diz. Por sua vez, o ministro da Cultura Gilberto Gil afirma que a atribuição do frevo como patrimônio fortalece a sua propagação pelo Brasil e pelo mundo.
Foi levantada a documentação etnográfica fundamental para o registro que em breve se efetivará, incluindo as origens do ritmo, a produção musical, a coreografia correspondente, a literatura relacionada, as agremiações carnavalescas, o visual de seus praticantes, as formas de expressão, os tipos de atividades e conhecimento. Um dossiê de 200 páginas foi reunido com a colaboração de nove pesquisadores, três consultores e muitas pessoas interessadas em fornecer dados sobre o frevo.
Além desse dossiê, a prefeitura recifense investiu mais de R$ 3 milhões em mais de trinta projetos realizados para difundir e preservar a memória do ritmo pernambucano, incluindo respaldo à gravação de CDs e DVDs, à organização de concursos e ao financiamento de orquestras itinerantes, à realização de palestras e eventos musicais, à digitalização das partituras e ao estímulo da formação de escolas de frevo.
Recife é uma das principais potências do Nordeste brasileiro, e o frevo é expressão do carnaval da capital pernambucana e de sua cidade vizinha, Olinda. As duas cidades rivalizam-se com Salvador na disputa pelo maior carnaval nordestino, mas Pernambuco leva a melhor em relação aos aspectos artísticos e culturais, já que em Salvador predomina a música comercial da axé-music e seus ritmos derivados, o "pagodão" e o "arrocha", todos os três baseados numa tradição brega-popularesca. Esse tipo de "música baiana" não se trata de um movimento com finalidades artísticas, mas apenas tendências comerciais voltadas para o puro entretenimento, tal como acontece com o chamado hit-parade norte-americano, desprovido de finalidades artísticas e voltado mais para o sucesso fácil e imediatista. Apenas os ritmos ligados ao samba-reggae correspondem às tendências realmente artísticas da música baiana.
Pernambuco também tem o movimento do mangue-bit ou mangue beat, existente desde o início dos anos 90, que no entanto celebra a triste lembrança dos dez anos de falecimento de seu líder, Francisco de Assis França, conhecido como Chico Science, no início de fevereiro de 1997, num acidente de carro. Líder do grupo Nação Zumbi, Science se dirigia à casa do percussionista da banda, Jorge Du Peixe, quando faleceu. Du Peixe o sucedeu na liderança do grupo, que perdeu a nomenclatura Chico Science & Nação Zumbi, virando apenas Nação Zumbi, estando no entanto fiel à proposta musical de seu fundador. Outros grupos e músicos fazem parte do mangue beat, como Mundo Livre S/A, Otto, Silvério Pessoa, Cordel do Fogo Encantado entre outros, criando uma variante da música pernambucana que estabelece diálogo entre as tendências artísticas internacionais - relacionadas ao rock alternativo e ao hip hop - e a tradição dos ritmos locais.
A origem do frevo aponta um aspecto menos conhecido pela maioria dos brasileiros hoje em dia. O frevo surgiu como um foco de existência das classes trabalhadoras, principalmente os negros e os mestiços, a partir do século XIX, quando ainda não havia a denominação "frevo". Nessa época, foram criados os Clubes Carnavalescos, passando a ocupar o espaço urbano em resposta ao Clube de Alegoria e Crítica, que dominava o carnaval local e era integrado pelas elites sociais da Grande Recife.
O carnaval popular se configurava, então, como uma expressão da transformação das relações sociais, conforme está na documentação consultada pelos pesquisadores e incluída no dossiê apresentado ao IPHAN. Era uma forma de afirmação das classes trabalhadoras e das populações pobres em geral, e os nomes de muitos clubes se referem à essa realidade: Vassourinhas, Pás, Espanadores, Abanadores, Suineiros, Verdureiros, Empalhadores do Feitosa. Os primeiros blocos surgiram a partir de 1915: Apois Fum!, Bloco das Flores, Batutas da Boa Vista (em 1920), Madeiras do Rosarinho e Inocentes do Rosarinho (ambos em 1926) e Batutas de São José (1932).
Originalmente, o frevo não era o nome da música, mas do tipo da folia popular realizada em Recife e Olinda, no início do século XX. Descobriu o historiador Evandro Rabello que o nome começou a aparecer numa nota no extinto Jornal Pequeno, da capital pernambucana. Essa nota foi publicada em 09 de fevereiro de 1907, na coluna Carnaval, de Oswaldo Oliveira e se referia a um ensaio dos Empalhadores do Feitosa, no bairro recifense de Hipódromo, e a um repertório de marchas que seriam apresentadas na ocasião, uma delas intitulada "O frevo". É um consenso entre especialistas que a expressão "frevo" é uma corruptela de uma das formas de conjugação do verbo "ferver".
Outro consenso é que a dança e a música do frevo surgiram, praticamente, ao mesmo tempo, a partir das ações dos capoeiras e de gangues de desordeiros, cujos gestos de luta evoluíram para a coreografia, e das bandas militares que tocavam nos clubes populares. Musicalmente, o frevo se originou na junção de ritmos como a polca, o maxixe, o dobrado e a quadrilha. Segundo o músico Antônio Nóbrega, a evolução do dobrado das bandas militares para o frevo foi um acontecimento singular e único no país, não havendo vestígios conhecidos senão em Pernambuco.
Conforme o jornalista Mário Melo, que atuou na imprensa da primeira metade do século XX, em informações publicadas num ensaio no Anuário do Carnaval Pernambucano de 1938, o responsável pela definição musical do frevo foi o capitão do Exército José Lourenço da Silva, lotado no Forte das Cinco Pontas, em Recife. Conhecido como mestre Zuzinha, o capitão era regente da banda do 40° Batalhão de Infantaria, e ele teria sido responsável pela linha divisória entre a marcha-polca e o frevo. Conta Mário Melo: "Não tinha a marcha-polca introdução e foi a introdução sincopada, com quiálteras que começou a estabelecer a diferenciação para o frevo". O ritmo passou a ser acelerado para acompanhar os passos da dança.
O frevo teve seu momento áureo de música radiofônica e produção fonográfica entre meados da década de 50 até o final dos anos 60 do século XX. Recife teve, nessa época, a gravadora local Rosenblit como incentivadora do registro e difusão da cultura local. A Rosenblit surgiu em 1953, preenchendo a lacuna da produção pernambucana, que até esse ano dependia da indústria fonográfica sediada no Rio de Janeiro para registrar gravações. Através da Rosenblit, compositores como Capiba e Nelson Ferreira registraram grande parte de suas obras.
O frevo encontra-se no início da etapa de avaliação para registro como patrimônio histórico. Sua documentação está sendo verificada, e em seguida haverá a abertura do processo de registro. Depois, o processo será encaminhado para ser analisado pela Gerência de Registro e da Câmara de Patrimônio Imaterial do Conselho Consultivo do IPHAN. Não há uma previsão orçamentária, e, se depender dos recursos humanos e financeiros, investidos por entidades proponentes e pelo Fundo Nacional de Cultura, a instrução técnica do processo de registro será concluída em um prazo de 18 meses.
FONTES: Revista Patrimônio, Prefeitura de Recife, O Globo (Segundo Caderno), Jornal do Comércio, Agência Brasil, Biscoito Fino.
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