Por Alexandre Figueiredo
Em março de 2006, tropas do Exército invadiram algumas favelas cariocas para buscar o armamento que foi roubado pelos traficantes. A iniciativa é considerada polêmica, ante o quadro de insegurança e precariedade operacional de nossa polícia, cujo armamento é mais defasado do que o das quadrilhas criminosas, que chegam a obter armamentos de última geração, recém-utilizados por milícias do Oriente Médio. Quem aprova a operação do Exército afirma que ela é urgente para acabar com a criminalidade, ante a impotência da polícia. Mas quem reprova afirma que se trata de um ato de truculência contra as populações trabalhadoras que vivem nas favelas.
A violência do Rio é uma história muito longa. Ela resulta de distorções causadas por projetos de urbanização e construção de avenidas que não indenizaram devidamente a população que, aos montes de indivíduos, residiam nas inúmeras casas posteriormente destruídas.
Para entender a história do Rio de Janeiro, que durante quase 200 anos foi capital do Brasil, é preciso entender um pouco da história do Brasil colônia, quando o país surgiu não com um propósito de ser uma nação, mas uma espécie de extensão política dos interesses de Portugal.
O Brasil praticamente nasce no Nordeste. É mito superado o de que o país foi "descoberto" em 1500 numa viagem supostamente acidental às costas brasileiras. Sabe-se que a viagem de Pedro Álvares Cabral a onde se conhece hoje como o Brasil já era um projeto em andamento anos antes do começo do século XVI. O Porto Seguro torna-se o berço do país, quando o navegador português desembarca para inaugurar a história oficial brasileira.
Embora o Brasil não tenha determinado um projeto de colonização, já que o Brasil-colônia, durante muitos anos, servia para os portugueses extrair riquezas e para Portugal degredar pessoas consideradas socialmente desagradáveis, sua primeira capital, Salvador, foi uma cidade planejada. Segundo afirma o historiador baiano Cid Teixeira:
A sua própria filosofia de implantação era tão moderna em 1549 para os interesses, para as exigências daquela época, quanto Brasília foi para os interesses e exigências de 1960. A cidade do Salvador (...) não nasceu, portanto, a partir de uma sedimentação prévia de um ser baiano. A cidade do Salvador nasce por uma imposição internacional. (...) Quem saía de um porto europeu qualquer, para ir para a Índia, para a China, para as ilhas do Pacífico (...), tinha que passar pela cidade do Salvador. (TEIXEIRA, Cid: 1996).
Segundo Teixeira, Salvador foi construída para ser uma base de todo o processo mercantilista internacional, o porto de trânsito obrigatório da navegação européia. Sendo um ponto estratégico do mercantilismo mundial, Salvador, como capital do país, exercia mando político no Brasil emergente e a capital baiana era uma alfândega de inúmeras novidades culturais que vinham da Europa. Vários fatores, porém, fizeram Salvador declinar e mergulhar num provincianismo que até hoje apresenta seus efeitos, mesmo na era da globalização tecnocrática. O ciclo econômico da cana de açúcar no Nordeste brasileiro foi superado pela produção de açúcar de beterraba na Europa e na concorrência da cana de açúcar no Caribe. Os canais de Suez (França) e do Panamá, ao serem inaugurados, dispensaram a passagem obrigatória na capital baiana. Salvador garantiu auto-suficiência econômica, mas passou a viver num estado de isolamento sócio-cultural.
Outro ciclo econômico florescido durante o declínio da cultura de cana, o ciclo da mineração, transformou o centro do Sudeste brasileiro numa região promissora por suas riquezas. A partir daí, um dos Estados ganhou o nome de Minas Gerais. O comércio do ouro, sobretudo, necessitava que a capital do país fosse uma cidade mais próxima, e já havia movimentos defendendo que essa capital seja localizada no próprio Estado. No entanto, outra cidade fundada no século XVI, que havia expulsado os invasores franceses (a fundar a França Antártica, projeto de nação vinculada à coroa francesa), foi escolhida para ser a capital do país: Rio de Janeiro, fundada com o pomposo nome de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Cidade desenvolvida sem um planejamento urbano, o Rio de Janeiro começa a sofrer alguma expressiva evolução sócio-geográfica em 1808, quando a gigantesca comitiva do rei Dom João VI, que consigo levava o futuro imperador, Dom Pedro I, desembarcava no Rio para se instalar enquanto Napoleão ameaçava a Europa com suas sanções econômicas e políticas contra a Inglaterra. Faculdades foram instaladas, foram inaugurados a Quinta da Boa Vista e o Jardim Botânico, e a imprensa brasileira surgia, entre outras inovações. Uma sociedade urbana começa a se estabelecer e se estabilizar na então capital do país, e movimentos de grande importância foram feitos, como as iniciativas que pediam a libertação dos escravos e queriam a mudança do regime político do Império para a República.
O Rio de Janeiro vivia numa imensa miséria, o que influía na propagação de inúmeras doenças. Havia muitos cortiços e o processo de urbanização era caótico. Uma das campanhas de vacinação obrigatória, feita pela melhor das intenções pelo cientista Oswaldo Cruz, em 1904, foi duramente repudiada por uma população desinformada e revoltada. Com o tempo, outras campanhas de vacinação convenceram o povo de que era preciso prevenir e curar doenças e, depois, normas de higiene melhoraram a qualidade e o tempo de vida da população.
A administração do prefeito Pereira Passos, em 1905, buscava realizar transformações profundas na estrutura urbana da cidade. A intelectualidade carioca, desde meados do século XIX, invejava Paris, a capital francesa com sua belíssima estrutura urbana e sua cultura que então influenciava o mundo, pois a célebre cidade das luzes vivia uma fase historicamente conhecida como Belle-Èpoque. As ruas organizadas, as pessoas cultas e elegantes, a boemia com algum charme intelectual e, por vezes, requintado, e o simples prazer de andar pela rua à noite em sossego, tudo isso fazia as elites cariocas sentirem tristeza ao compararem com a caótica situação social do Rio de Janeiro.
Com Pereira Passos, a maior transformação urbana de sua ágil administração foi a Avenida Central, inaugurada em 1905, mais tarde chamada Av. Rio Branco, que é o seu nome atual. A avenida foi um dos primeiros cortes viários que influíram na mudança do visual do Centro do Rio, mas que determinou seu preço social. Com os cortes de várias áreas para a construção de avenidas, em administrações municipais posteriores, vieram então outras avenidas que extinguiram bairros e comunidades inteiras, como a Av. Presidente Vargas, inaugurada nos anos 40.
Nesses tempos, a preocupação social com a população pobre era bem pouca, e as indenizações feitas àqueles que se retirarem das áreas envolvidas para a construção de avenidas eram insuficientes. Com isso, mais o crescimento desordenado da população, vieram as ocupações de morros e terrenos ociosos - incluindo antigas fazendas - , cujas construções rudimentares vieram a caraterizar o processo de favelização, que atinge o seu auge nas últimas décadas do século XX e nas primeiras do século XXI.
Antes que a favelização atingisse índices preocupantes - que mostram o descaso das autoridades ao longo dos anos em relação aos problemas do povo pobre - , o Rio de Janeiro viveu seu auge como capital do país na década de 1950, quando houve até uma tentativa de remover algumas favelas da Zona Sul - Lagoa e Leblon - , concluída na década seguinte. A cidade gozava de fama internacional e da condição de palco das tensões políticas que, se afligiam a sociedade, também estimulavam o debate público. O atentado a Carlos Lacerda e o repentino suicídio de Getúlio Vargas em 1954, além de inúmeros manifestos militares, primeiro contra as medidas econômicas do então ministro do Trabalho de Vargas, João Goulart em 1953 e depois contra a vitória eleitoral de Juscelino Kubitschek e o mesmo Jango (votava-se para vice-presidente em separado), alegando que nenhum dos dois obteve maioria absoluta de votos (justificativa inexistente na Constituição de 1946), eram a tônica política da época, seguidas depois do audacioso projeto da transferência de capital incluído em cima da hora no Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, que teve o mandato assegurado por um golpe preventivo do general Henrique Lott.
Idéia do próprio Kubitschek que se tornou promessa urgente a partir de uma sugestão do primo do prefeito de Jataí (GO), durante um comício do ex-governador de Minas Gerais enquanto candidato à Presidência, a mudança de capital, proposta já cogitada por José Bonifácio de Andrada e Silva no século XIX - aliás, por curiosa coincidência, um descendente homônimo de José Bonifácio era figura política em evidência durante a Era JK - , era uma necessidade ante a vulnerabilidade do rio de Janeiro em caso de um possível ataque marítimo.
A escolha de Brasília foi, neste sentido, correta no sentido da estratégia geopolítica, uma vez que, sendo localizada no centro do país, reduzia sua vulnerabilidade, além de favorecer o povoamento do interior do país, que já existia há séculos antes da chegada de Cabral, mas era insuficiente para a dimensão territorial que ainda havia a se constituir em cidades ou povoados. Brasília, inaugurada em 1960, não sem os problemas de uma cidade iniciante (comércio precário, falta de água, urbanização incipiente), representava a esperança de chamar o Brasil para povoar ainda mais o interior. O Rio de Janeiro também apresentava sérios problemas, e naquele período o saneamento e os transportes coletivos estavam entre as maiores preocupações do povo carioca, a ponto de serem aproveitadas pelo anedotário popular e, em especial, pelas divertidas e modernas charges do desenhista Carlos Estêvão (1921-1972), da revista O Cruzeiro, famoso por seu humor cínico e crítico.
A inauguração de Brasília não representou, a princípio, a transferência efetiva da vida política e profissional da antiga capital para a nova. A cidade foi construída às pressas visando o cumprimento da promessa de Kubitschek, que temia que as obras de construção da nova capital se retardassem ou mesmo fossem paralisadas em governos posteriores. Por isso, a cidade foi inaugurada possuindo apenas sua estrutura básica, seus prédios principais e as cidades satélites que abrigaram os candangos que decidiram viver na nova capital. Mas alguns ministérios ainda funcionaram no Rio, nos primeiros anos da década de 60. Coube à ditadura militar completar o serviço e Brasília, que começou a se distanciar do projeto original de Costa e Niemeyer, só estabeleceu sua rotina, a rigor, a partir dos anos 70.
CONSEQÜÊNCIAS DA MUDANÇA DE CAPITAL
O Rio de Janeiro, com a fundação de Brasília, se transformou no Estado da Guanabara. Isso estava previsto na Constituição de 1946, vigente naquele 1960 que representou à Cidade Maravilhosa a perda de um status que lhe era caro para seu prestígio mundial: o de capital do país. O glamour de capital não tirou a beleza e o carisma da cidade, mas representou a frustração de muitos cariocas, que viram a cidade perder o seu charme.
A cidade até sofreu muitas transformações depois da fundação de Brasília, a primeira delas através do governo Carlos Lacerda, que realizou várias obras de urbanização da cidade e deu os primeiros passos para o projeto do Metrô carioca, além de ter reformulado o sistema de ônibus municipais, alterando até mesmo todo o sistema de códigos das linhas. Lacerda queria, na condição de governador da Guanabara, competir com o presidente da República Juscelino Kubitschek, de quem o jornalista e governador guanabarino fazia oposição enérgica, em termos de realizações de obras, embora em âmbito estadual (ou municipal), e não federal, mas ainda assim para fazer vistas à nação.
Em 1975, porém, a ditadura militar tentou uma "desforra" para a Cidade Maravilhosa: realizou, sem qualquer consulta popular, a fusão da Guanabara com o antigo Estado do Rio de Janeiro, que teve como capital Niterói. Visando desestabilizar o cenário político de cada Estado, a fusão favoreceu o empresariado, que conseguiu se adaptar nos negócios na nova situação. No entanto, o Rio de Janeiro pagou o preço da fusão, porque, imaginando recuperar a posição de maior vitrine do país, tutelando considerável número de cidades, acabou gerando problemas sérios na sua infra-estrutura. O desprezo à miséria popular e o erro dos aparelhos de repressão da ditadura em juntar numa mesma cela assaltantes e presos políticos fez com que se desenvolvesse o crime organizado, a partir de um dos primeiros grupos articulados política e militarmente, a Falange Vermelha. Depois vieram outras facções, das quais se destacam o Comando Vermelho e seu rival Terceiro Comando.
O Rio de Janeiro não se beneficiou com a situação, embora atualmente as pessoas mais jovens tenham a impressão de que a fusão surgiu de um velho anseio da população. Antes tivesse sido um anseio de parte da sociedade e de grupos políticos e empresariais, que já discutiam a fusão dos dois Estados já nos primeiros meses de existência da Guanabara. Quando uma cidade internacionalmente famosa tem que dividir as atenções de si mesma para com cidades como Niterói, Campos, Petrópolis e Angra dos Reis, o custo se torna bastante alto. Os problemas que a cidade vivia na época da construção de Brasília às vezes se resolvem, mas às vezes se agravam, não constituindo numa solução definitiva. Com o tempo, a boemia glamurosa das celebridades - que variam de músicos como Antônio Carlos Jobim à atriz Leila Diniz, e a outras figuras lendárias como Antônio Maria e Sérgio Porto, este também conhecido pelo pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta - perdia o sentido com o desaparecimento de seus personagens, e no lugar dela haveria uma boemia mais 'comercial', com pessoas comuns apenas indo à vida noturna por hábito, sem a emoção poética de antes.
No Século XXI, o Rio de Janeiro consegue manter sua desenvoltura, seu carisma, embora tenha perdido boa parte de seu glamour, devido às crises políticas da segunda metade do século XX, que dificultaram a resolução de muitos problemas e causou alguns danos, como o crescimento da violência e a favelização que aponta péssimas condições de vida de uma enorme parcela da população. A cidade ainda continua e continuará despertando a atenção do mundo inteiro, mas precisa resolver seus problemas, que estão acima de qualquer oportunismo político. É apenas uma questão de enxergar todos os lados desses problemas e estudar uma solução justa e eficiente, de grande interesse público.
BIBLIOGRAFIA
CONHECER BRASIL. Brasil, Volume Dois. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
COUTO, Ronaldo Costa. Brasília Kubitschek de Oliveira. Rio de Janeiro: Record, 2002.
GERSON, Brasil. História das Ruas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2000.
SECRETARIA ESPECIAL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. Brasília, capital da controvérsia. Cadernos da Comunicação - Série Memória. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2002.
TEIXEIRA, Cid. Entrevista. In: Pré-textos para discussão. n. 1. Salvador: Unifacs, julho de 1996.
(*) NOTA: Esse texto não é um relato preconceituoso ao Rio de Janeiro e em nenhum momento quer promover alguma imagem pejorativa à cidade. A questão do declínio se deve a fatores concretos que infelizmente acontecem na cidade e que certamente não são da vontade do povo carioca, mas apenas de grupos interessados em atividades socialmente nocivas.
Comentários