Por Alexandre Figueiredo
O maior patrimônio do povo brasileiro corre o risco de ser empastelado, diluído, distorcido, e ninguém se dá conta da gravidade disso. Para tornar a situação cada vez pior, essa destruição é promovida pela grande mídia como se fosse uma virtude, um ponto positivo, um manifesto da livre iniciativa das populações pobres. Nenhuma das contradições existentes é considerada. Nenhum dos aspectos ocultos é sequer cogitado. Tudo é maravilhoso, na abordagem da grande mídia.
Esse verdadeiro ato de vandalismo corresponde à música brega e popularesca, que nos últimos anos luta para tirar qualquer vestígio de cultura popular autêntica do acesso ao povo. Sua propagação, no entanto, desafia a sociedade, uma vez que surgem novos agentes de sua perpetuação, ou seja, antropólogos e sociólogos, que, em argumentações sutis, vendem essa música claramente comercial e grosseira, descendente direta de mecanismos de controle social durante a ditadura militar, como se fosse um "novo folclore", chegando mesmo a atribuí-la como um "movimento independente" e até "contrário" à ditadura.
Através dessas argumentações, põe-se em xeque o repertório crítico ao popularesco na música e nos meios de comunicação, difundido sobretudo nos momentos de crise do governo FHC, em 1999. Contestando fenômenos de massa como Carla Perez, Ratinho, Gugu Liberato, Fausto Silva e Tiazinha, essas críticas, tardiamente trabalhadas também em livros, se congelaram no seu enfoque. A situação mudou e os críticos não se prepararam quando dormiram com a "Egüinha Pocotó" (sucesso de MC Serginho) devidamente alojada na retaguarda do pior popularesco, para depois acordar e ver a mesma "Egüinha" reciclada e reembalada como "vanguarda" para as platéias "descoladas" do Tim Festival.
Tiazinha já é um mito superado, e sua intérprete, Suzana Alves, está completamente distante da personagem que a consagrou, revelando-se uma mulher inteligente e talentosa atriz. Carla Perez virou uma espécie de Xuxa baiana, continuando a ser ícone popularesco, mas num contexto diverso daquele que a consagrou. Ratinho, feito vilão de seriado japonês, foi agigantado pelo gigantesco olho da mídia e espera embarcar no futuro revival dos anos 90 sob o rótulo de "ícone cult trash". Gugu e Faustão seguem com seus programas de grande audiência, indiferentes às críticas.
Enquanto isso, Zezé Di Camargo & Luciano, que participaram da farra "sertaneja" da vitória de Fernando Collor em 1989, se passaram por "petistas" e tentaram furar o cerco da demanda popularesca lançando um filme biográfico que lhes deu seis meses de fama ao lado de artistas e intelectuais. A crítica, perplexa, não estava preparada para ver uma dupla de música brega, sem mexer um dedo na sua música de qualidade duvidosa, querer se colocar em pé de igualdade diante dos grandes nomes da MPB, usando como motivo, se não a qualidade musical (que deixa dúvidas), a quantidade de fãs.
Agora, em 2006, o brega dos anos 70, após pegar uma carona no confuso revival dos anos 80 - que se limitou a ser um revival não da década de 80, mas da televisão nos anos 80 - , se torna a raiz dessa tendência macro de transformar a "música brasileira" num atoleiro da cafonice, legitimando uma "cultura" criada dentro de um contexto de dominação social e política durante o AI-5. Diante da banalização de tantos absurdos ocorridos na vida humana, cuja veiculação na mídia (que em níveis normais é até necessária para fins de informação e alerta), da forma que é feita pela televisão e grande imprensa, insensibiliza e desmobiliza as pessoas, todo o universo musical marcado pela degradação social e pela veiculação, sutil e eventual, de valores inferiores da sociedade brasileira, é trabalhado pelos meios de comunicação como sendo "valores superiores", com base em paradigmas relacionados à idéia dominante de pobreza, que não é imune a estereótipos. Muito pelo contrário, é movida por este processo de estereotipação, em que se leva em conta apenas o fato de que seus ídolos expoentes vieram das classes econômicas desfavorecidas, mesmo que hoje sejam ricos ou mesmo com inclinação aristocrática (como Zezé Di Camargo & Luciano e Alexandre Pires).
No Brasil onde as questões sociais conseqüentes do desequilíbrio social e político de 21 anos de ditadura militar não estão ainda resolvidas - nossos fantasmas de 1964 e 1968 continuam assombrando, não mais como ameaça golpista, mas no sentido de que não recuperamos as conquistas perdidas pelo golpe militar e pelo AI-5 - , a era da informação, no país, é tanto vista com glamour e deslumbramento por platéias desinformadas das relações de poder entre generais e a própria mídia (que se insere numa estrutura de elites capitalistas, conservadoras, que até dado ponto sustentaram a ditadura que cismaram, depois, a combater, não por interesses genuinamente democráticos, mas na mesma perspectiva mercadológica que motivou, quase cem anos antes, a Princesa Isabel a abolir a escravidão no Brasil, deixando, no entanto, os ex-escravos à própria sorte) que a transmissão de informações é difusa e confusa.
Em conseqüência disso, a idéia de "cultura" e "entretenimento", num Brasil incipiente na recepção de inovações tecnológicas e na liberdade de informação, se torna confusa. Os dois termos, mesmo dotados de caraterísticas bastante diferentes, são vistos como se fossem uma coisa só.
Tomando como base o conceito de Edward Tylor (1832-1917), um dos primeiros a definir a idéia de "cultura", vemos que o autor a define como "todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade". Roque Laraia, comentando o conceito de Tylor, afirma que com tal definição o autor "abrangia em uma só palavra todas as possibilidades de realização humana, além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à idéia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos" (LARAIA: 2004).
Sim, a capacidade de realização. Se lembrarmos da música, podemos citar Igor Strawinsky, para o qual toda arte deve ser superior. Há um sentido de plenitude na cultura e na atividade artística, assim como há nesse caso um sentido de perenidade, de durabilidade. Coisa que não está relacionada na idéia de "entretenimento", palavra adotada nos últimos anos pela grande mídia. Entretenimento, na verdade, é uma maneira formal de definir "diversão", "passatempo". O mercado da comunicação entendeu que o uso da palavra "entretenimento" daria um significado "nobre" à simples idéia de diversão, como se houvesse um "controle de qualidade" em torno do ato de entreter. Do contrário da cultura, que constrói valores sólidos a serem transmitidos para futuras gerações, o entretenimento se reserva apenas à curtição do tempo presente, de duração provisória.
DESINFORMAÇÃO PROPICIA CONFUSÃO ENTRE CULTURA E ENTRETENIMENTO
Diante de uma demanda de público desinformada, "cultura" e "entretenimento" são vistas como uma idéia só. Sem qualquer noção do que é descartável ou durável nos produtos "artísticos", esses apreciadores de "cultura de massa", de uma forma que chega às vezes à arrogância - no sentido da defesa intransigente de seus ídolos, que os fãs não admitem crítica alguma, nem mesmo construtiva - , pensam na arte como algo inerente ao mercado, sua formação ideológica é dotada de todos os vícios e equívocos transmitidos pela pregação neoliberal dos meios de comunicação.
Por isso mesmo, não possuem idéia precisa nem correta a respeito da cultura. Ela se confunde entre o sentido de cultura como produto social e como produto econômico (mercadoria). A desinformação pública não se constitui de falta de informação, mas antes de uma assimilação descuidada de informações e dados, num fluxo intenso e por isso mesmo confuso, que não constituem em conhecimento real e desse modo se tornam mais sujeitos a assimilar a linguagem publicitária, com todas as suas meias-verdades em prol de qualquer coisa.
O excesso de informação, aliado à hegemonia tecnológica que domina quase todo o cotidiano dos jovens atuais, faz com que eles se sintam mais vulneráveis à mídia, na qual eles enxergam seus possíveis "tutores". Na verdade, esses "tutores" surgem à revelia desses jovens, e muitas vezes eles não são pessoas, mas emissoras de rádio, programas de TV, canais de TV. Eles são condicionados a uma série de valores nos quais o lúdico e o tecnológico são as prioridades atribuídas aos jovens.
Através disso, os interesses da grande mídia se tornam cruciais na deturpação de valores a partir do público jovem. A idéia da "cultura da periferia", corrompida pela confusão facilmente assimilável de "cultura" e "entretenimento", ao lado dos mandos e desmandos da chamada "cultura pop", comprometem a compreensão dos jovens de hoje a respeito do que é cultura e arte. A "cultura pop" complica a situação, fazendo a música prevalecer não por sua expressividade melódica nem poética, mas por outros aspectos, como coreografia, vestuário e biografia, que estabelecem no ídolo da música um discurso persuasivo eficaz.
A coreografia e o visual distraem o ouvinte, enquanto as rádios martelam a música incessantemente. O trabalho é completado pela exploração biográfica na mídia, que não é mais do que uma campanha de marketing disfarçada. E que se nivela, mesmo mostrando a origem pobre dos seus ídolos - as plantações de milho, as favelas, as famílias numerosas, os dramas pessoais da infância são alguns exemplos - , à exibição que as celebridades e as pessoas mais ricas fazem de suas casas luxuosas nas páginas das revistas Caras e similares. É ostentação do mesmo jeito, exploração publicitária de dramas pessoais aos quais não interessa fazer alarde, embora eventualmente mereça alguma menção.
TUDO AO MESMO TEMPO AGORA
O Brasil, um país jovem, mas ainda atolado no subdesenvolvimento agravado pelas fases de abatimento político (ditadura militar) e econômico (as desigualdades sociais seculares), só agora ingressa plenamente no processo de "cultura de massa". O país esteve à margem, durante muitos anos, de vários acontecimentos de grande repercussão no Primeiro Mundo. Não viveu a fase da soul music dos anos 60, tardiamente popularizada na década seguinte. Mesmo o rock brasileiro viveu um caminho de pedras mais tortuoso do que o similar dos EUA e Reino Unido. Não viveu a Contracultura na sua plenitude, por causa da ditadura militar. Não assimilou a pop art durante sua vigência, apesar do Tropicalismo evocar parcialmente suas lições. A popularização do punk rock só se deu mesmo na década de 90, e ainda assim inspirada na segunda fase, nos anos 80. E, sobretudo, a cultura de massa nos EUA se desenvolveu a partir dos anos 40, e já em 1958 distorções como o jabaculê nas rádios eram bastante conhecidas. No Brasil, a cultura de massa só se efetivou em 1968 e até hoje suas contradições não são devidamente compreendidas, nem mesmo a questão do jabaculê, que congelou-se nas pálidas questões de 1984. Ícones dos anos 60 como Sly & The Family Stone, Stooges, Andy Wahrol e Syd Barrett só seriam conhecidos pelo jovem médio a partir dos anos 90.
Por isso, o Brasil vive um momento de "tudo ao mesmo tempo agora". Nessa "cultura de massa" onde os paradigmas culturais parecem não ir antes dos valores difundidos durante o governo Ernesto Geisel - fase da ditadura posterior ao seu auge repressivo, marcada por um lento, controlado mas confuso processo de redemocratização - , como a hegemonia da música brega entre o grande público, o país mergulha no auge do poderio da grande mídia. Pensávamos que o poderio da Rede Globo fosse reduzido ou neutralizado pela concorrência, mas ele apenas se fortaleceu e ganhou a adesão dessa mesma concorrência, que, mesmo de forma não declarada, segue os valores e os estereótipos veiculados pela chamada "Vênus Platinada".
A grande mídia tenta, desta forma, colocar o país a par dos grandes fenômenos de massa, dos processos modernos de "cultura de massa" ("cultura pop"). Mas num enfoque confuso, como se quisesse acertar o relógio. Tranqüilizada pela idéia de "geléia geral" difundida pelo Tropicalismo - que não conseguiu abordar a gororoba cultural brasileira de forma crítica, pelo contrário, usando a "provocação" do apoio ao mau gosto cultural mais para legitimá-lo, perdendo o espírito de desafio aos valores moralistas, que passam a conviver harmoniosamente com o mau gosto reinante - , não há lógica, não há critérios, nenhuma análise, nenhuma crítica. Tudo é misturado, como se a democracia se baseasse nisso para se afirmar.
Em outros tempos, a cultura popular não apresentava as caraterísticas bastardas a ela atribuídas hoje. Ser pobre não era o mesmo que ser cafona, atrasado ou idiotizado, e ninguém usava a miséria como propaganda ou mesmo para um estranho sentimento de orgulho. A história brasileira registra: a cultura popular, autêntica, não sofre complexo de inferioridade, portanto, não pode ser associada a uma suposta predestinação "brega", "cafona" ou "rudimentar". A cultura popular sempre foi associada a uma arte de qualidade, intuitiva, de bom gosto, embora simples e inteligente.
NO PASSADO, ERA DIFERENTE
Embora se reconheça no Estado Novo uma ditadura, cuja constituição de 1937 foi inspirada por um governo fascista, na Polônia dos anos 30, a atuação do Ministério da Educação e Cultura escapou dos propósitos de controle social. Isso se deve pelo caráter progressista da equipe arrumada pelo ministro Gustavo Capanema, composta de intelectuais e escritores comprometidos com as causas progressistas, alguns participantes da Semana de Arte Moderna de São Paulo, realizada em 1922. O próprio mentor e principal nome do movimento modernista, Mário de Andrade, famoso por obras-primas como Macunaíma, Amar: Verbo Intransitivo e Paulicéia Desvairada, organizou uma grande pesquisa que favoreceu a difusão das culturas regionais por todo o país.
A pesquisa de Mário de Andrade resultou no que hoje conhecemos como cultura popular, e isso resultou em muitas conquistas. Essa cultura expressava um projeto de país, numa perspectiva nacionalista-popular que, em primeira instância, foi adotada como mecanismo de controle do Estado Novo de Getúlio Vargas. Mas a dedicação de intelectuais e artistas envolvidos com o Ministério da Educação e Cultura, que pelo seu natural compromisso com a cultura, até porque são os próprios criadores que em parte contribuem com ela, fez escapar os objetivos do Estado Novo em controlar as massas, com a pesquisa de Mário de Andrade (com notório compromisso com a identidade cultural do Brasil, como artista ou como pesquisador de outras manifestações artísticas, que o consagraram na Semana de 22) revelando as diversas faces da música brasileira. É graças a esta pesquisa que conhecemos ritmos como o samba, o baião, o maracatu, a embolada, o maxixe, as modas de viola, entre tantos outros ritmos e tendências musicais, constituindo o que hoje conhecemos como Música Popular Brasileira, denominação esta dada nos anos 60, através dos festivais da canção da TV Record.
Todavia, uma outra "cultura popular" surgiu divulgada por rádios do interior do país que eram controladas sobretudo por oligarquias políticas, muitas delas detentoras de grandes propriedades de terras. A música brega cresceu condicionada por uma crise no projeto nacionalista, ameaçado pela hegemonia norte-americana em tempos de Guerra Fria. Capitalistas e comunistas disputavam a hegemonia do mundo e, no Brasil, o golpe militar de 1964 - que foi durante seu período denominado "Revolução de 1964" e seu governo resultante, "governo revolucionário" - impôs censura no país e a resistência da cultura brasileira até tentou reverter a situação, mas com o Ato Institucional Número Cinco (AI-5).
Vários contextos e pretextos, nesses anos de chumbo do governo do general Emílio Médici (1969-1974) e com reflexos no governo seguinte do general Ernesto Geisel (1974-1979), permitiram a degradação cultural pela música brega. A falta de liberdade e a desqualificação do ensino público para tornar o povo mais submisso, a ação das rádios controladas pelos latifundiários e políticos conservadores, a falta de perspectivas de vida dos brasileiros, o isolamento da Música Popular Brasileira pela repressão, confinada entre a classe média intelectualizada, propiciaram a difusão e o crescimento da música brega. A Música Popular Brasileira não foi banida das rádios, mas passou a ser tratada como algo elitista, aristocrático, mesmo em relação a artistas de origem pobre como Luiz Gonzaga e Cartola.
Marcada pela cafonice, pela exploração do ridículo e por um certo tom paródico no visual e na atitude dos ídolos, juntamente com a música malfeita, por vezes sentimentalista, por outras simplesmente tola, a música brega não tem compromisso com a musicalidade nem com a arte. É uma música de entretenimento, artificial, sem qualquer identidade nacional, uma vez que seus elementos musicais são confusos. Sua única formação é radiofônica: ouve-se de Bee Gees a Cascatinha & Inhana. Mas esse ecletismo acaba se tornando artificial, uma vez que os ídolos bregas possuem talento limitado, sua popularidade vale mais pelo senso de humor e pela súbita rudeza cênica deles do que de alguma vocação musical séria. Em outras palavras, eles valem pelo espetáculo, feito circenses modernos, e não por qualquer musicalidade.
O crescimento da música brega foi, no entanto, o crescimento do poder dos meios de comunicação, sustentados pelo poderio político da ditadura. De baixo custo de investimento, a música brega também oferece como vantagem para os empresários da grande mídia o fato de seus ídolos serem geralmente ingênuos, submissos e maleáveis a modismos de temporada. Seus ídolos não polemizam nas entrevistas, e a única "polêmica" que deles pode render é o "mau gosto" que eles simbolizam. Para a ditadura militar e para os civis que a sustentavam (políticos, fazendeiros e empresários), a música brega não oferecia risco para o regime nem prejuízo para a grande mídia.
Acabou a ditadura, a MPB estava sofrendo uma crise criativa e o rock nacional era o ritmo da juventude brasileira. Nesses idos de 1985-1986, a música brega expandia seu espaço das AMs para as FMs, as emissoras de TV regionais ou de audiências menores à própria Rede Globo, do interior do país para as grandes capitais, dos rincões do Norte-Nordeste às periferias do Sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo, sobretudo). Com o tempo, a música brega, caraterizada por arremedos de boleros, Jovem Guarda, forró e até disco music, se diversificou rumo a simulacros de cultura popular: samba, música caipira e frevo eram, dessa forma, diluídos respectivamente por pagodeiros, duplas "sertanejas" (ou breganejas) e grupos de axé-music (surgidos num estágio mercantilista do Carnaval baiano). A partir daí, vieram outras tendências, como o "funk carioca", a lambada, o forró-brega (que às vezes emula a Jovem Guarda, noutras a lambada), o arrocha (versão eletrônica do brega dos anos 70) e outros.
O PREJUÍZO - O universo brega seria válido se não fosse levado a sério. No fundo, tudo é uma brincadeira, sem qualquer compromisso artístico. Seus ídolos, em sua maioria, são descartáveis e sua durabilidade se dá mais ao aspecto administrativo dos chamados "medalhões" (campeões de venda e exibição na mídia), que vêem no sucesso um bom negócio lucrativo e o fazem para garantir sua sobrevivência no estrelato.
No entanto, o brega é levado a sério, muitas vezes ao extremo. A recente atitude da grande mídia, a partir das Organizações Globo, de reciclar todas as tendências brega / popularescas como se fossem "vanguarda" ou "folclore", tenta vincular a cultura popular à idéia obrigatória de cafonice, por meio do grotesco ou da pieguice. Dividida em duas frentes, o front brega investe em tendências kitsch (o grotesco se passando por "cultura superior"), como a axé-music, o breganejo e o pagode romântico, e camp (o grotesco mais explícito), como o "funk carioca", o brega setentista e o pagode pornográfico baiano. Veículos de mídia dos mais diversos ligados à Globo, como a própria Rede Globo, o canal de TV paga Multishow e a revista Quem Acontece, puxado por outras corporações da mídia (Folha de São Paulo, SBT, Bandeirantes), já adotam o "funk carioca" como carro-chefe desta investida de levar o brega a sério (e sério demais).
O grande risco disso tudo é que a verdadeira cultura popular pode cair no esquecimento. Nosso patrimônio cultural está passando por um ato de vandalismo organizado e não percebemos. Em nome da classe pobre, condenamos-na ao eterno orgulho de sua miséria. Em muitos aspectos, imitamos o hit-parade norte-americano na valorização do brega, com sua fabricação de ídolos e exploração comercial dos mesmos. Sem sabermos, com a supervalorização do brega, em níveis quase totalitários, faz com que o Brasil se contente com uma "cultura pop", ao invés de investir na verdadeira cultura brasileira.
A exploração da mídia do povo pobre, embora aparentemente bem-intencionada, sucumbe aos preconceitos de uma elite letrada, abastada e bem-nascida, que pensa justamente estar rompendo os preconceitos e faz extremamente o contrário. Porque eles simplesmente ignoram que a verdadeira cultura popular não se vale da cafonice e seus valores mórbidos e conformistas. A cultura popular, registra a História, é inteligente, de boa qualidade, sem tolices nem papéis de ridículo. Do jeito que se processa, a "cultura popular" que a mídia tanto fala, com suas "Centrais da Periferia" e similares, em nada contribuirá para a construção de um país melhor, nem de um patrimônio cultural atualizado e moderno. Apenas contribuirá para fortalecer o poder das oligarquias, sejam as do latifúndio e da política direitista, sejam as das grandes corporações da Comunicação.
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