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A ELITE QUE QUER TOMAR O LUGAR DO POVO BRASILEIRO


Por Alexandre Figueiredo 

Vivemos um cenário insólito que a pós-verdade manifesta nas redes sociais luta para esconder, se valendo, não só da ciranda dos algoritmos mas também na disputa de narrativas, nas quais a mais influente não é fidedigna aos fatos, mas aquela que atende a interesses estratégicos de grupos envolvidos.

Trata-se de uma elite que busca o protagonismo pleno, através do presidente Lula, que no seu terceiro mandato passou a tomar procedimentos diferentes em relação aos dois anteriores, pois no atual mandato busca a consagração pessoal e aumenta ainda mais as concessões à direita moderada e as alianças com as classes dominantes, sob a desculpa de dominá-las e obrigá-las a aceitar um projeto político que, em tese, está voltado ao atendimento das classes mais pobres.

Com um país ainda social e culturalmente devastado, Lula porém realizou seu projeto político no qual dispensou, na campanha presidencial, um programa de governo, e que, no começo do terceiro mandato, preferiu priorizar a política externa enquanto não demonstrava à população um plano de reconstrução do país que fosse, ao mesmo tempo, claro e demonstrativo, e cujos supostos resultados consistiram numa falácia da "colheita sem plantação".

Há um clima de sonho e êxtase profundamente estranhos para pessoas adultas, uma ânsia de ver o Brasil tornando-se protagonista mundial, bem mais do que ver um país próspero e realmente igualitário. Enquanto as injustiças e desigualdades sociais continuam ocorrendo, sob o silêncio da mídia e das instituições, uma elite relativamente diversificada e numerosa espalha um clima de histeria tóxica em torno da expectativa da vitória de Lula nas eleições presidenciais.

Depois que o breve período do golpismo de 2015-2022 estimulou a micropolítica através de feminicídios, violência no campo, violência nas periferias, violência nas reservas indígenas, além da pandemia da Covid-19, que dizimaram milhões de brasileiros, a elite detentora de privilégios socioeconômicos e culturais que conduz as narrativas e os padrões de comportamento e visão de mundo que prevalecem nas redes sociais, resolveu apostar no seu protagonismo pleno.

ELITE DO BOM ATRASO

O termo "elite do bom atraso" foi por mim criado adaptando o termo "elite do atraso" do sociólogo Jessé Souza. Trata-se de uma repaginação da elite detentora do poder socioeconômico e cultural que, depois de lutar pelo golpe político contra a presidenta Dilma Rousseff, virou a casaca e hoje passa a ser radical defensora da reeleição de Lula que, no seu atual mandato, buscou uma aproximação com as classes dominantes, apesar de insistir na retórica de que "continua vinculado às bases populares".

A elite do bom atraso consiste numa frente ampla social comandada pela chamada burguesia ilustrada, a burguesia cool, festiva e pretensamente generosa, mas que conta com setores sociais que passaram a exercer influência dominante em setores hegemônicos da chamada opinião pública. São eles:

1) A própria burguesia ilustrada, de perfil ideológico mais liberal, cool e consumidora plena de bens de consumo e também de bens culturais, frequentadora de ambientes considerados atrativos no lazer hedonista da vida noturna e dos fins de semana;

2) A pequena burguesia, com caraterísticas comuns à burguesia ilustrada, porém mais modesta no âmbito socioeconômico, e que surgiu de setores emancipados da militância de esquerda, vinculados originalmente a setores intermediários das classes trabalhadoras, que mesmo com limitações financeiras gozava de relativa prosperidade;

3) Os chamados "pobres de novela", ou seja, pobres que migraram para a prosperidade socioeconômica a partir de progressos que vão desde as medidas do governo Lula, de cujos benefícios conseguiram se manter e se estabilizar, e que se tornaram adaptáveis aos padrões sociais dominantes e ao mercado hegemônico. São pobres que vivem de acordo com os padrões sociais vigentes e, tendo acesso ao consumo de TV e Internet, seguem também o sistema de valores convencionais difundido pela grande midia;

4) A sociedade identitária, hoje também conhecida como comunidade woke, ou seja, grupos sociais diversos que adaptam a antiga estética hippie e seu respectivo hedonismo lúdico e sexual para um contexto mainstream, também tão inclinados ao consumismo e à submissão aos valores da mídia hegemônica quanto os "pobres de novela";

5) Famosos em geral que são considerados formadores de opinião e que são também dotados de grande prestígio social e que gozam também de imensa prosperidade socioeconômica, equiparável ao da grande burguesia propriamente dita, não necessariamente vinculada a essa frente ampla social; incluem geralmente atores de TV e cinema de grande projeção e os chamados medalhões da Música Popular Brasileira.

É claro que há outros agentes sociais que, no entanto, estão perdendo presença social nesta frente ampla da elite do bom atraso. Influenciadores digitais, ídolos musicais brega-popularescos e comediantes de estandape (aportuguesamento do terno stand up) estão cada vez mais raros como personalidades influentes, estando mais associados a um cenário político anterior, ligado ao bolsonarismo, independente da posição desses agentes ser ou não favorável ao ex-presidente de extrema-direita.

Há também a influência do empresariado da Faria Lima, que atua na produção de padrões de comportamento, crenças, hábitos e linguagens a serem adotados pela população brasileira. Mesmo sem ser associada formalmente ao apoio ao atual cenário do terceiro mandato de Lula, a Faria Lima se insere no contexto atual sobretudo ao financiar o consumismo e o divertimento hedonista que atrai muitos jovens para o lazer frenético e a compra desenfreada de bens de consumo, de lanches a automóveis.

Mas a configuração desse quadro sociocultural continua excludente, pois as classes populares seguem alijadas do cenário do terceiro mandato de Lula embora, na teoria, sejam elas as "protagonistas". É um discurso farsesco, difundido com obstinada frequência nas redes sociais e numa mídia eclética que envolve a mídia patronal propriamente dita, como Globo e Folha de São Paulo, a mídia coadjuvante - como, por exemplo, Isto É, Band e portais digitais como IG e Terra - e a mídia de esquerda, como Diário do Centro do Mundo, Carta Capital e, de forma mais sectária ao lulismo, o Brasil 247.

O QUE ESTÁ EM JOGO: "SUBSTITUIR" O POVO BRASILEIRO

Essa narrativa tenta criar a ilusão de que uma hipotética revolução popular esteja se formando através do presidente Lula para ganhar o protagonismo mundial e colocar o Brasil no elenco dos países desenvolvidos. Só que, na vida real, fora da bolha sonhadora das redes sociais, o país segue com um quadro social degradante, com as convulsões sociais do período golpista de 2015-2022 que mesmo com o declínio do lavajatismo e do bolsonarismo continuam ocorrendo como se estes dois fenômenos estivessem ainda vigentes.

O que está em jogo nessa retórica de "revolução popular" é o fato, oculto por essa narrativa, de que a elite do bom atraso, que pode ser denominada também como "burguesia ilustrada", no sentido lato, apesar do caráter heterogêneo acima descrito, repete a estratégia das antigas elites do Segundo Império e da República Velha, que se consideravam "o povo brasileiro", em detrimento dos excluídos sociais que, novamente, deixam de serem considerados "povo".

Essa estratégia, por mais que se empenhe em dissimular seu caráter traiçoeiro através do apoio "espontâneo" e "democrático" ao presidente Lula, considerado por essa classe o único favorito para a reeleição, lembra muito os tempos da Casa Grande, que se atribuía pelo "único papel" de representar o povo brasileiro, enquanto, naquela época, entre o Brasil colonial e o fim do Segundo Império, indígenas, negros e mestiços não poderiam ser considerados "povo".

Em contrapartida, os excluídos sociais passaram a desconfiar e se decepcionarem com Lula, agora visto como um pelego político que prefere viajar pelo mundo usando o dinheiro público e a posar ao lado de autoridades e empresários. A elite do bom atraso luta para não ser divulgada essa realidade, a de que Lula perdeu o apoio das classes populares, algo que refletiu no breve período em que as supostas pesquisas de opinião dos institutos tiveram que reconhecer a queda de popularidade do presidente, mesmo entre pobres, jovens e nordestinos.

Embora os contextos variem bastante, como a pretensa solidariedade da elite abastada de hoje aos mais pobres - sobretudo no apelo insólito da burguesia ilustrada para que os próprios pobres votem em Lula em 2026 - , o que se vê, na verdade, é a gradual ascensão de uma classe de privilegiados que, deixando de fora o proletariado, o campesinato, os intelectuais de senso crítico mais afiado, as pessoas caseiras (acusadas de fobia da "felicidade" da vida noturna em bares e boates), entre outros, se projeta para o protagonismo mundial.

Esse protagonismo é apenas um reconhecimento internacional que serve para as elites brasileiras que apoiam Lula poderem fazer seu turismo tanto dentro do Brasil quanto no exterior, exibindo um status de superioridade social assegurado pelo rótulo de "desenvolvido" que querem que se conceda ao nosso país.

Sem seguir os padrões sociais desenvolvidos, a elite do bom atraso apenas quer fazer parte do circuito de consumo e benefícios socioculturais das nações mais prósperas, podendo assim gastar seu opulento dinheiro no hedonismo e na diversão em todos os aspectos.

Em outras palavras, a burguesia ilustrada quer apenas fazer parte dos benefícios de consumo e de lazer das pessoas de Primeiro Mundo, mesmo longe de se equipararem social e culturalmente às nações desenvolvidas. E Lula é considerado o único fiador, por ser mais mão aberta, patrocinando o lazer e o divertimento daqueles que o apoiam. E mais uma vez é a "casa grande" dos abastados de hoje que está na sua plenitude, enquanto as "senzalas" e "quilombos" seguem na exploração precária do trabalho, para garantir a felicidade e o bem-estar dos "bacanas".

FONTES: UOL, Carta Capital, Diário do Centro do Mundo, Blogue Linhaça Atômica.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro, Leya, 2017.

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