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A FARIA LIMA TORNOU-SE "DONA" DA CULTURA BRASILEIRA?


Por Alexandre Figueiredo

Estamos vivendo uma cultura estranha no Brasil, aparentemente popularizada. Bregalização cultural, dialetos em inglês, hedonismo desenfreado e, de certa forma, autoritário, ou seja, a imposição do "prazer" aos outros, como ter uma namorada, curtir futebol ou comer pão com mortadela, e um gosto musical repetitivo voltado ao hit-parade estrangeiro e aos "sucessos do povão".

Há a supervalorização de nomes como Michael Jackson, que nunca foi um artista genial e que, nos últimos anos de vida, se comportou como uma subcelebridade em busca de sensacionalismo. Da mesma forma, também há a superestima aos Guns N'Roses, banda de poser metal que também é beneficiada pela valorização exagerada dos fãs brasileiros. E isso acompanhado de nomes de baixa representatividade internacional que aqui são superestimados, como Outfield, Live, Information Society e Johnny Rivers.

Temos uma situação estranha, pois este não é o Brasil cultural que queríamos, que no âmbito da MPB se chega à "síndrome de Estocolmo" de glorificar Michael Sullivan, compositor, produtor e cantor que promoveu um esquema de destruição da própria MPB, conforme denúncia feita por Alceu Valença em 2014. Alceu não citou nomes, mas mencionou a gravadora RCA nos anos 1980, o que torna fácil identificar o processo à obra traiçoeira de Michael Sullivan, Miguel Plopschi e Paulo Massadas, artífices do comercialismo vira-lata brasileiro, claramente imitação barata do pop estadunidense.

Até mesmo gírias como "galera" e "balada", ou jargões como "tô de boa", estranhamente se propagaram, destoando do coloqualismo tradicional que nosso país desenvolvem em séculos. A gourmetização das favelas, a exaltação à precarização musical e até mesmo a glamourização do cigarro pelos jovens das grandes capitais brasileiras são parte de um culturalismo que, no âmbito religioso, ainda apoia o charlatanismo pretensamente altruísta dos "médiuns" do Espiritismo brasileiro, religião blindada pelo poder econômico brasileiro, pela mídia empresarial e pelo latifúndio e agronegócio do Triângulo Mineiro.

Que país é esse? Vemos que há valores desse estranho culturalismo que persistem no aparente sucesso nas redes sociais e na mídia empresarial, difundidos como se fosse a "consagração da vontade popular", embora claramente associados a interesses estratégicos de empresários e outros envolvidos nesse processo midiático-empresarial de manipulação dos gostos e hábitos populares.

Citamos alguns exemplos. É um sucesso de uma novela de temática "espírita", como A Viagem, na versão da Rede Globo de Televisão, não condiz à totalidade do povo brasileiro nem mesmo às classes populares propriamente ditas. A música analgésica do cancioneiro brega dos anos 1970 só diz aos embriagados de botecos decadentes de roças e subúrbios. E até o machismo enrustido de "musas sensuais", como Geisy Arruda e Mulher Melão, mulheres falsamente emancipadas que aceitam seu papel de "mulheres-objetos" através de uma campanha de erotização obsessiva, grosseira e descontextualizada.

Só que todo esse culturalismo conservador, mas às vezes falsamente subversivo, tem um planejamento estratégico por um grande lobby de publicitários, executivos, empresários, jornalistas e produtores culturais, que estão manipulando as vontades e desejos de uma parcela considerável de brasileiros, pelo menos aquela que na sua quase totalidade utiliza as redes sociais.

Trata-se da elite lúdica da Faria Lima, nome referente à famosa Avenida Brigadeiro Faria Lima, reduto de muitas empresas de grande porte no âmbito do entretenimento e da tecnologia situados na cidade de São Paulo, entre filiais de empresas estrangeiras e empresas nacionais.

"BALADA": A GÍRIA FOI UM TESTE DO PODER DA FARIA LIMA

A Faria Lima estaria por trás até mesmo da domesticação da cultura rock, através da rádio 89 FM, controlada por uma família que apoiou a ditadura militar e os governos Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso e defende a manutenção das fortunas abusivas dos super-ricos.

Ver que a cultura rock também foi alvo dessa máquina de lavar cérebros que é a Faria Lima foi ilustrativo, uma vez que o formato original de rádio de rock 24 horas por dia foi substituído por uma caricatura comercial, em que a "rádio rock" opera quase o dia todo como uma rádio pop comum, apenas tocando "somente rock", mas mantendo sempre o estilo inspirado nas rádios convencionais. A programação realmente roqueira se limitou a tão somente os programas transmitidos no fim de noite.

Mas o teste maior que a Faria Lima fez para verificar seu raio de influência sobre a juventude foi o uso de uma gíria privativa dos jovens ricos da noite paulistana dos anos 1990, a gíria "balada". Originalmente, essa gíria foi um eufemismo para o ecstasy, droga alucinógena consumida por essa juventude. Com o formato de pílula, essa droga era conhecida como "bala" e "balada" era uma festa onde se consumia esse entorpecente o tempo inteiro.

Através de uma emissora de rádio, a Jovem Pan, de uma emissora de TV, a Rede Globo, e de um apresentador que também é um empresário representante da Faria Lima, que é Luciano Huck, a gíria "balada" se propagou como "a gíria de todas as tribos e todos os tempos", chegando a invadir até o jornalismo "sério".

O processo lembrava bastante a "novilíngua" dos tiranos de 1984, o icônico livro de 1948 de George Orwell, que buscava manipular o vocabulário para "simplificar a linguagem" e empobrecer o repertório de palavras para assim debilitar a capacidade de raciocínio das pessoas. A gíria "balada" também simboliza o "vocabulário de poder" (words of power), descrito pelo jornalista inglês Robert Fisk (1946-2020) como um processo da imprensa política dos países da OTAN para manipular a opinião pública.

Pronunciada quase que cuspindo, a gíria "balada" tornou-se um "produto" no qual se vendia um ideal obsessivo de curtição noturna. Tendo o prazer humano como marketing, a gíria "balada", na verdade, era uma "mercadoria" vendida para garantir os lucros exorbitantes das casas noturnas em todo o Brasil.

PSEUDO-INTELECTUAIS E FALSOS ATIVISTAS

A Faria Lima é composta por uma elite de pretensos intelectuais, alguns dos quais atuando como coaches (palestrantes de eventos frequentados pela alta sociedade), dotados de um discurso envolvente de gerentes de empresas, sempre marcados por juízos de valor próprios de um etnocentrismo burguês.

Com um variado processo de manipulação estratégica dos gostos, desejos e vontades dos brasileiros, eles chegaram a fazer a gíria "balada" ser pronunciada por pais de família, evangélicos, nordestinos, crianças e até roqueiros, um público desavisado que facilmente acolheu uma gíria clubber relacionada às drogas alucinógenas.

A venda de um ideal de "curtição e prazer" chegou a fazer com que a gíria "balada" seja objeto de "tribunais de Internet", ainda nos tempos "inocentes" do Orkut, quando internautas reacionários, em atuação bem semelhante ao do "gabinete do ódio" bolsonarista, humilhavam quem não aceitasse essa gíria e a associasse à alienação da diversão obsessiva.

O êxito da propagação da gíria "balada", através da joint-venture informal Jovem Pan / Rede Globo, depois compartilhada por outros veículos da mídia - seja 89 FM, Isto É, Record, Band, SBT, Rede TV! etc - , comprovou o poder da Faria Lima em manipular os mais diversos âmbitos da cultura brasileira ou das culturas estrangeiras apreciadas no Brasil.

Se aproveitando de parecer uma elite "legal", a atual geração de empresários, publicitários e produtores, juntamente servidos de influenciadores digitais e outras personalidades famosas, a Faria Lima lúdica consegue até mesmo articular a glamourização da bregalização cultural, fazendo com que até o "funk" e o piseiro sejam consumidos por um público de alto poder aquisitivo.

Seu tino publicitário fez com que até uma velha canção brega de 1987, "Evidências", de José Augusto e Paulo Sergio Valle - este um letrista de MPB, irmão de Marcos Valle, mas momentaneamente envolvido com o brega visando interesses comerciais - , virasse um sucesso pseudocult nas vozes de Chitãozinho & Xororó, a dupla de canastrões do "sertanejo".

Visando reforçar os interesses comerciais, promover a precarização e a mediocrização culturais e moldar os hábitos, vontades e desejos da população brasileira, principalmente os jovens da atual Geração Z, a Faria Lima, herdeira do culturalismo ditatorial repaginado da Era Geisel - quando o AI-5, aos poucos, deu lugar a formas de desmobilização do "poder suave" (soft power), tenta reafirmar o poder das classes dominantes, mas de uma forma ao mesmo tempo simpática e oculta, como se a burguesia, agora, tivesse calçado os chinelos da humildade e do bom senso. Só que não.

FONTES: Blogue Linhaça Atômica, UOL, O Globo, Carta Capital, Diário do Centro do Mundo.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ORWELL, George. 1984. 1. Ed. Tradução de Heloísa Jahn e Alexandre Hubner. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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