Por Alexandre Figueiredo
A campanha do "combate ao preconceito" movimentou a grande mídia empresarial, a partir da Rede Globo e da Folha de São Paulo mas ganhando as páginas da Isto É, Veja, Caras e Estadão. No entanto, o proselitismo dos intelectuais pró-brega também fez a chamada mídia alternativa, que poderia servir de contraponto a essa visão, a pensar conforme a visão dominante da grande mídia, no que se refere aos fenômenos popularescos.
A mídia alternativa pagou caro por essa adesão, quando fez suas editorias culturais pensarem e agirem igualzinho à cobertura popularesca do caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo. Mordendo a isca da "luta contra o preconceito" e embarcando em conceitos verdadeiramente preconceituosos trazidos por intelectuais burgueses - que atribuíam o comercialismo popularesco como "cultura das periferias", como eles entendiam ser a "cultura popular" - , a mídia de esquerda sofreu crise financeira e o "combate ao preconceito" ajudou a abrir o caminho para o golpe de 2016 e, depois, para o bolsonarismo.
Passado o tempo da chorosa campanha "contra o preconceito", que apelava para a aceitação pública dos fenômenos popularescos como, supostamente, a "verdadeira cultura do povo pobre", vimos que o tal "combate ao preconceito" foi mais preconceituoso do que os preconceitos que dizia combater.
Isto quer dizer que a precarização cultural representada pelo comercialismo da música brega-popularesca - uma longa linhagem de "sucessos do povão" que vai dos primeiros ídolos cafonas, como Waldick Soriano e Nelson Ned, até os nomes do trap, piseiro, sofrência e arrocha de hoje - foi blindada por um lobby de intelectuais, jornalistas e celebridades para não apenas manter a chamada "cultura popular" na mediocridade como também para ampliar e fortalecer um poderoso mercado que está por trás, que movimenta muito dinheiro sob o apoio de grandes empresários e poderosos fazendeiros.
A "rica cultura popular" só é rica mesmo pela fortuna dos empresários, pois a chamada "cultura de pobre" nada tem da verdadeira riqueza cultural que os pobres do passado produziram, com seus sambas, baiões, catiras, maracatus etc.
Na verdade, o que a dita "campanha contra o preconceito" queria era ampliar mercados para os sucessos popularescos das rádios que, embora fossem bastante populares, eram controladas por oligarquias regionais diversas, entre lideranças políticas locais e grandes proprietários de terras. É um controle midiático que foi reforçado quando houve as concessões politiqueiras durante o governo José Sarney, entre 1985 e 1989, com a atuação decisiva do ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães.
Isso fez com que se desenhasse o quadro midiático que, a partir dos anos 1990, fizesse a música popularesca se tornar tão hegemônica que invadiu públicos de maior poder aquisitivo e maior formação educacional, como os de nível universitário.
O processo ideológico ocorreu de tal forma que hoje a MPB autêntica se encontra enfraquecida, vide a crise financeira passada pelo compositor e cantor Ivan Lins, que chegou a "mendigar", certa vez, se oferecendo para compor para dois ídolos popularescos com forte blindagem midiática, Ivete Sangalo e Alexandre Pires.
Por outro lado, a música brega-popularesca foi trabalhada pela grande mídia, através de uma propaganda bem articulada, para estar associada a "pessoas bonitas e legais". Puro apelo para ampliar reservas de mercado, nada a ver com a retórica de "reconhecimento de valor cultural".
Isso tanto é verdade que, não bastassem os vocais afetados e as músicas precariamente elaboradas, em boa parte precisando de arranjadores para torná-las mais "agradáveis" - como é o caso dos estilos brega-popularescos mais antigos, como a música brega dos anos 1970-1980, o "sertanejo" mais antigo e o "pagode romântico" - , alguns outros estilos não passam de meros karaokês, sempre dotados de uma mesma base sonora, independente do "artista".
É o caso do "funk" como um todo, seu derivado trap, o piseiro e o arrocha, estilos cuja figura do músico está em segundo plano, pois o que se vê é o desenvolvimento de uma mesma base de teclado, sobretudo na concepção de um mesmo padrão de batida eletrônica para diferentes canções e intérpretes.
Não se trata, portanto, da atuação de um músico específico para tocar baterias ou percussões, mas de um tecladista montar uma pré-definida batida. Em certos casos, há também uma melodia pré-elaborada que é apenas executada pelo teclado durante a performance, uma linha de montagem sonora pronta que só exige ao tecladista operador saber que teclas ele haverá de tocar, sem que haja uma criatividade ou espontaneidade.
Esses estilos musicais, portanto, desmascaram toda a retórica de "verdadeiro valor artístico-cultural" trazido pelo poderoso lobby de intelectuais pró-brega blindados pela mídia empresarial. Não se trata de um processo artístico espontâneo ou forte, mas tão somente de produção de karaokês disfarçados de "música popular" visando o mercado de bares, boates e casas noturnas, principalmente nas regiões mais pobres do Brasil.
A finalidade de todo esse processo é alimentar um mercado que inclui, principalmente, o consumo de cerveja, além de garantir o faturamento de produtoras de DVDs que envolvem esses estilos, sobretudo as apresentações ao vivo.
Essa tendência faz com que a música oficialmente associada ao povo pobre seja tão precária que, reduzida ao karaokê, ela representa um quadro gravíssimo de mediocrização cultural, o que faz com que o discurso dos intelectuais "sem preconceitos" seja mais perversamente preconceituoso, como se a "sabedoria" do povo pobre estivesse na sua ignorância e miséria.
FONTES: Carta Capital, Folha de São Paulo, O Globo, Caros Amigos, Blogue Linhaça Atômica.
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