Por Alexandre Figueiredo
Um projeto de Lei número 498/2021, proposto pela deputada Leci Brandão (PCdoB) com coautoria de Márcia Lia (PT), Márcio Nakashima (PDT) e Emídio de Souza (PT), foi aprovado em plenário na Assembleia Legislativa de São Paulo, em março deste ano. Antes disso, o Movimento Hip-Hop de São Paulo, em julho de 2023, se reuniu em Brasília para entregar ao presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Leandro Grass, um pedido para transformar o gênero em patrimônio cultural imaterial.
Embora a ação parlamentar seja válida, desde que não haja interesses espúrios por trás, a solicitação ao IPHAN tem um diferencial: buscar um embasamento técnico para o reconhecimento de um bem cultural como patrimônio. Os técnicos do IPHAN solicitam a uma comunidade o inventário e o histórico de um bem, como ele se tornou relevante como forma de expressão social da comunidade e de que forma esse bem contribui para a evolução e a transmissão de valores comunitários para as pessoas de seu meio.
A notícia do hip-hop cria uma certa controvérsia porque o estilo é de origem estrangeira, surgido nas áreas pobres de Nova York no fim da década de 1970. Mas no Brasil, o gênero, conhecido a partir do sucesso de Thaíde e DJ Hum - que fez o primeiro, mais tarde, se tornar apresentador de um programa de hip-hop na MTV Brasil - e, depois, consolidado pelo som de protesto dos Racionais MC’s, conseguiu desenvolver uma linguagem nacional própria e uma relevância social genuína e profunda.
Em São Paulo, o gênero se projetou a partir de ruas próximas à Avenida São João. O estilo também se propagou em outros bairros paulistanos. Eu mesmo pude ver, recentemente, um grupo de jovens, na proximidade da igreja de Nossa Senhora do Ó, na Freguesia do Ó, realizando uma competição de hip-hop.
De fato, nota-se uma relevância social no hip-hop brasileiro que, nos anos 1990, passou a canalizar uma rebeldia juvenil que o Rock Brasil deixou de ter, quando a geração 90 de bandas roqueiras passou a se preocupar mais com o humor do que com a criatividade musical.
Só devemos ter cautela porque esses argumentos podem favorecer, de maneira tendenciosa, o “funk”, ritmo introduzido no Brasil nos anos 1990 a partir do miami bass, e que, com todas as narrativas que tentem afirmá-lo como “genuína cultura popular”, quando se vê que, neste caso, o caráter mercadológico da “cultura de massa” é bastante explícito.
Este ano a deputada estadual pelo PT fluminense, Verônica Lima, teve aprovada sua proposta de promover o “passinho”, dança derivada do “funk”, como “patrimônio cultural imaterial”. Mesmo aparentemente associada às comunidades, o passinho é claramente inspirado no poder midiático dos “bailes funk” que lançaram a “coreografia”.
A iniciativa da parlamentar apresenta um claro caráter político, diferente da ação parlamentar acima citada, cujos autores incluíram Lecy Brandão, também conhecida cantora e compositora de sambas e conhecedora da vida nos subúrbios.
A proposta de Verônica Lima só não é tão escancarada quanto o que houve em setembro de 2009, quando várias personalidades vinculadas ou solidárias ao “funk” pediram para a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) o reconhecimento do gênero como “patrimônio cultural de caráter pipular”, um reconhecimento obtido sob critérios abertamente políticos sem que houvesse um embasamento técnico que sustentasse essa conquista.
Como todo fenômeno da música brega-popularesca, o “funk” tem nas comunidades apenas seus cenários de consumo, mas não como pontos de partida de alguma expressão sociocultural. Ou seja, o povo pobre, do contrário do que insiste a narrativa intelectual vigente, não aparece como criador dessa “cultura”, mas como consumidor.
CENÁRIOS DE CONSUMO
Observando bem a realidade, a música popularesca ou brega-popularesca apresenta como cenários de consumo principalmente os bares e boates, de tal forma que muitos sucessos popularescos mencionam o consumo de cerveja, associado ao prazer ou ao consolo das desilusões amorosas.
Em claro apelo mercadológico, os ritmos popularescos diversos são verdadeiras peças de merchandising, com menções a tecnologia de telefones móveis, de redes sociais e automóveis, com um forte apelo consumista que destoa da simbologia social atribuída pelo discurso intelectual dominante.
Essa narrativa intelectual chega a tendenciosamente a citar intelectuais do passado remoto, sem considerar diferenças de contexto, para justificar os aspectos negativos dos fenômenos popularescos. Se o som é americanizado, recorrem a Oswald de Andrade. Se é erotizado, recorrem a Chiquinha Gonzaga. Se tem baixaria, recorrem a Gregório de Matos. Tudo isso com argumentos sem objetividade nem embasamento lógico, apenas com intenso apelo persuasivo.
Há, portanto, a necessidade de haver maior discernimento, mesmo quando se fazem concessões em torno da percepção cultural. Pode ser que o hip-hop destoe dos padrões heterodoxos de compreensão cultural, mas ele se mostrou ser culturalmente consistente e socialmente importante. O hip-hop pode parecer "cultura de massa" pelas formas de divulgação, mas sua relevância social mostrou seu caráter de relevância e consistência nas comunidades em todo o Brasil, com adaptações do gênero feitas até por tribos indígenas.
Mas isso não significa que isso chegue ao ponto de dar o mesmo reconhecimento aos fenômenos popularescos, muitas vezes difundidos por emissoras de rádio e TV que, apesar de muito populares, são propriedades de oligarquias ricas e poderosas. Se os fenômenos popularescos são expressão de alguém, eles expressam os interesses de produtores de rádio e TV e de execitivos a serviço da indústria do entretenimento, sem estabelecer compromisso social algum com as comunidades.
Fontes: IPHAN, Agência Brasil, O Globo, Carta Capital, Blogue Linhaça Atômica.
Comentários