A BURGUESIA "DEMOCRÁTICA" BRASILEIRA VIU QUE PODERIA PEDIR VERBAS ESTATAIS PARA ATIVIDADES CULTURAIS E ASSISTENCIAIS E DEIXAR SUAS FORTUNAS PESSOAIS PARA USUFRUIR BENS COMO O CARRO SUV (NA FOTO, O MODELO TRACKER DA CHEVROLET).
Por Alexandre Figueiredo
No atual culturalismo, autoproclamado "democrático" e "de esquerda", existen dois artifícios, dois truques para camuflar a velha ordem social que está no poder pleno há 50 anos, pelo menos nos padrões e contextos existentes até hoje.
Essa elite, a elite do bom atraso, descende das velhas aristocracias associadas a atrocidades humanitárias do Brasil colonial ou mesmo de períodos relativamente mais recentes, como a República Velha e o golpe de 1964, mas sem romper com sua essência resolveu se repaginar e parecer "moderna" com o apoio incondicional ao governo Lula.
Esses artifícios são a institucionalização da pobreza e a autarquização da burguesia.
No primeiro caso, nota-se que a visão da pobreza mudou estranhamente quando uma geração de intelectuais foi treinada pelo tucanato acadêmico, ou seja, a influência do PSDB do sociólogo neoliberal e então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, nas universidades públicas nos anos 1990.
Esses intelectuais, descritos no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes..., agiram a partir ainda no fim do segundo governo FHC, em 2001, numa campanha que, no âmbito nacional, foi lançada pelo livro Eu Não Sou Cachorro Não, de Paulo César de Araújo, mas teve um precedente local na Bahia, o artigo "Esses Pagodes Impertinentes...", publicado pelo professor Milton Moura em Textos de Cultura e Comunicação, uma publicação acadêmica, embora a matéria tenha uma linguagem mais porralouca e que destoa do rigor acadêmico que, por ironia, serve para as bancas docentes de pós-graduação como desculpa para banir o pensamento crítico. O referido livro meu tem o título inspirado no título do artigo do acadêmico baiano.
Essa campanha se chamou de "combate ao preconceito" porque era um pretexto para intelectuais defenderem formas de entretenimento musical e comportamental popularescos, facilmente difundidas por rádios e TVs, forçando a aceitação dessas expressões marcadamente comerciais como se fosse "cultura genuinamente pipular".
A desculpa, que esconde que esses sucessos popularescos são abertamente patrocinados por oligarquias políticas e empresariais, inclusive a mídia corporativa, teve xomo objetivo ampliar os mercados da música popularesca para as classes A e B, tirando da MPB e do Rock Brasil grande parte de seus espaços de expressão.
Através desse suposto "combate ao preconceito", que escondia preconceitos ainda piores sobre o povo pobre, foi criada uma concepção "positiva" da pobreza, com a institucionalização das favelas, antes aberrantes construções consequentes da exclusão imobiliária que impedia os pobres de obter moradias decentes.
As favelas passaram a serem vistas como "paisagens pós-modernas", para o deleite das elites paternalistas que aproveitavam a nova imagem exótica da miséria humana para contemplar as "paisagens de consumo" e os "safáris humanos" a que foram convertidas as favelas e seus moradores, aos olhos de turistas afoitos por pretensas novidades.
A gourmetização da pobreza humana atendia às demandas das esquerdas identitárias, formadas por ex-pobres incluídos no status quo hedonista de uma classe média herdeira do desbunde pós-tropicalista. Esse identitarismo, que promove os pobres como uma suposta etnia e as favelas como pretensas aldeias, serve tanto para evitar resolver os mais complicados problemas da pobreza humana, acumulados por séculos de opressão violenta contra negros e indígenas, como para um escudo para blindar os poucos pobres que conseguem ficar muito ricos através da seletividade social.
Com isso, se um ex-pobre, como um funqueiro ou um craque de futebol, se tornam muito ricos e, vivendo do luxo e da extravagância, são acusados de serem burgueses, a origem pobre esquecida por eles só é lembrada para fazer a chamada "carteirada". "Você fala mal de mim poque sou pobre", argumentam, misturando vitimismo e arrogância.
Esse artifício consiste em criar uma "identidade" do pobre, um estereótipo a serviço de paradigmas que se pir um lado marcam preconceituosamente a imagem do miserável na sociedade, por outro protegem os poucos pobres que conseguem algum lugar de prestígio na burguesia, quando acusados de tamanho privilégio. A origem pobre passa a ser usada como carteirada, como uma máscara para os ex-pobres obtiverem os mesmos privilégios abusivos da burguesia sem serem acusados de burgueses.
Assim, se um ídolo do futebol ou da música popularesca compram carros caríssimos, com valor calculado em seis dígitos numéricos, ou mansões milionárias, além do consenso social dominante apelar para a meritocracia - esses ídolos "conquistaram o que era direito de ganhar" - , eles são poupados de serem considerados burgueses, já que, supostamente, manteriam os mesmos hábitos de quando eram humildes.
AUTARQUIZAÇÃO DA INICIATIVA PRIVADA
Outro truque consiste na burguesia que apoia o atual governo Lula em agora defender a ideia do Estado forte, depois de décadas defendendo o capital privado com punhos de ferro. É uma mudança de postura que precisa ser observada com muita atenção.
As mesmas pessoas que saltavam da cadeira toda vez que eram informadas de algum protesto organizado contra a privatização de uma estatal, de repente, passaram a tolerar a sobrevida de estatais, embora, evidentemente, elas não se tornaram amigas da reestatização. A postura consiste em se contentar com o que foi privatizado mas, em contrapartida, tolerar o que continua estatal.
É uma postura de conveniência com o atual momento político, com Lula presidindo o Brasil. Lula é conhecido por ser mão aberta na concessão de verbas estatais e no pagamento de dinheiro para obter apoio ao petista. Com isso, os antigos defensores radicais da iniciativa privada passaram a preferir o capital misto ou as privatizações "temporárias", as "concessões" ou contratos de prestação de serviços privados de um bem público, do que a venda propriamente dita, no antigo modelo de consórcios com a participação de empresas estrangeiras, inclusive, por ironia, estatais de outros países.
Por meio dessa nova postura, a burguesia que se considera "democrática" e se afasta da sombra decadente do bolsonarismo, tem a esperança de, por meio de projetos culturais ou assistenciais, obter verbas estatais que, na prática, "autarquizam" a iniciativa privada.
Dessa forma, a burguesia se vê na vantagem de usar verbas estatais para os "deveres" e deixar seus patrimônios particulares para o lazer. O dinheiro estatal se volta para ser o recurso primordial, para não dizer o único, para os trabalhos da burguesia ilustrada do Brasil atual, ao passo que suas riquezas pessoais deixam de ser aplicadas, pelo menos em grande parte, para tais obrigações.
Isso faz sobrar mais dinheiro e o Estado acaba gerando, mesmo sem querer, uma nova demanda de super-ricos, uma ironia se percebermos que, na teoria, Lula se dedica a combater a pobreza e a miséria. E aí vemos o quanto a burguesia que chegou a defender o golpe de 2016, de repente, passou a apoiar Lula. É porque essa elite admite que se enriqueceu durante os outros mandatos do petista e, hoje, querem repetir ou ampliar a dose.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.
SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro, Leya, 2017.
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