Pular para o conteúdo principal

A CENSURA "TÉCNICA" AO PENSAMENTO CRÍTICO



 
Por Alexandre Figueiredo

Já mencionamos que é mais possível expressar pensamento crítico em comédias do cinema comercial estadunidense do que de documentários brasileiros que se proclamem "imparciais" e "objetivos". É estarrecedor ver que o verniz da racionalidade e dos critérios técnicos para abordar qualquer assunto impõem tamanhas restrições.

Aqui pensamento crítico é confundido com "opinião" e falsamente definido como "juízo de valor". Aqui o que temos é uma cosmética da racionalidade, que produz um discurso que é técnico na forma, mas seu compromisso com a produção de Conhecimento sai seriamente prejudicado e seu compromisso social de informar o público se torna, simplesmente, nulo.

Documentários e monografias feitos no Brasil, em verdade, não passam de produções mercadológicas para inglês ver. Servem mais para forjar produtividade intelectual para alimentar vaidades pessoais de produtores e coordenadores. Esses "produtores e coordenadores" podem ser os diretores de cinema, diretores de colegiados de pós-graduação nas universidades (inclusive as públicas), os produtores cinematográficos, os professores universitários mais influentes e, não raro, com algum trânsito na mídia (ainda que a chamada mídia alternativa, alinhada à esquerda) e outros envolvidos de igual reputação.

O que se vê é uma maquiagem muito habilidosa, uma narrativa muito bem construída de um tema, em que a visão oficial prevalece, mesmo que aspectos conflitantes sejam todos mencionados. É necessário dar uma aparência de objetividade, bem mais sutil e textualmente correta (textualmente não só no aspecto da escrita ou das palavras, pois também o audiovisual diz muito como texto, inclusive o uso ou não de um grito, uma risada, um choro ou o uso de uma ironia).

No caso dessas produções "técnicas", usa-se a "frieza" emocional e uma linguagem "comedida" que, no contexto atual, precisam escapar dos clichês das produções bolsonaristas. Estas, comprometidas em dar um aparato "verídico" das fake news, têm forte apelo sensacionalista e geralmente seus locutores variam entre homens com vozes imponentes e mulheres com jeito de madames revoltadas tentando falar com relativa calma.

Daí a fuga dessas estratégias. A pretensa objetividade que marca documentários e monografias precisa adotar uma narrativa sóbria, leve, sem a intenção de produzir impacto. No caso de documentários, nada de imitar de forma grosseira o Cid Moreira narrando salmos - e, ironicamente, Cid já narrou, no passado, documentários de forma brilhante - , mas "conversar" com o público, com uma linguagem ao mesmo tempo culta, no sentido do cumprimento das regras gramaticais, e simples 

No caso das monografias, a cosmética envolve critérios de técnica linguística mais rígidos, nesmo quando os professores universitários façam uma verdadeira conversa para boi dormir, falando de projetos de pesquisa que "aproximem" a universidade da sociedade.

Existe até um caminho ideológico para isso. Na primeira etapa, a apresentação, é exigido, pasmem, que o pós-graduando "enrole" na explicação do tema escolhido, com um discurso prolixo que só precisa da cosmética da linguagem técnica. No desenvolvimento, se faz um "desfile" dos principais pontos de vista relacionados ao assunto por meio de uma seleção de fontes consultadas. É permitido mencionar aspectos conflitantes e polêmicos, desde que de forma "distanciada" do autor.

A conclusão não pode ser contestatória. Fala-se muito que as monografias abordam as problemáticas dos fenômenos cotidianos, mas a verdade é que essas "problemáticas" são sempre desproblematizadas e transformadas em patrimônio fenomenológico a ser preservado e legitimado pelo meio acadêmico.

Nos documentários, com as devidas diferenças específicas de linguagem, há a preocupação comum da proteção fenomenológica, evitando, com similar empenho, posições "opinativas demais". Tudo para evitar climas de inquietudes e incômodos que acontecem nos círculos intelectuais europeus.

Qual a aspecto de censura dessas produções que, na teoria, apenas restringem o pensamento crítico visando uma abordagem mais "responsável", "equilibrada" e voltada a "ouvir todos os lados"? Simples, trata-se de usar um pretexto técnico de fazer inveja aos antigos tecnocratas do IPES-IBAD de sessenta anos atrás, visando, sob a desculpa da imparcialidade e da objetividade, proteger e preservar o que é estabelecido pela classe dominante, através de uma narrativa oficial que não pode ser prejudicada.

Critérios de ordem econômica e social, voltados a justificar os custos financeiros e evitar polêmicas, motivam essas produções que precisam manter o estabelecido, mesmo se esse estabelecido se baseie em valores dominantes que foram desenvolvidos no auge da ditadura militar e que atendem, até hoje, aos interesses da ordem social dominante, a classe que fez o golpe de 1964 mas que tenta a todo custo sobreviver ao naufrágio bolsonarista.

O que vemos como consequência é que essa censura disfarçada de critérios objetivos faz com que essas produções - capazes de passar pano no charlatanismo de "médiuns" do Espiritismo brasileiro e na espetacularização da pobreza pelo "funk" e pelo antigo som brega dos anos 1960 - tenham somente seus quinze minutos de fama quando lançados, para depois, estéreis na produção do verdadeiro saber, caírem no mais pleno esquecimento, sem oferecer algo instigante para a sociedade.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

IPHAN TOMBA CENTRO HISTÓRICO DE JOÃO PESSOA

Por Alexandre Figueiredo No dia 05 de agosto de 2008, o Centro Histórico da cidade de João Pessoa, capital da Paraíba, passa a ser considerado patrimônio histórico. Uma cerimônia realizada na Câmara Municipal de João Pessoa celebrou a homologação do tombamento. No evento, estava presente o presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Luiz Fernando de Almeida, representando não somente a instituição mas também o ministro interino da Cultura, Juca Ferreira, ausente na ocasião. Luiz Fernando recebeu dos parlamentares municipais o título de "Cidadão Pessoense", em homenagem à dedicação dada ao Centro Histórico da capital paraibana. Depois do evento, o presidente do IPHAN visitou várias áreas da cidade, como o próprio local tombado, além do Conjunto Franciscano, o Convento Santo Antônio e a Estação Cabo Branco, esta última um projeto do arquiteto Oscar Niemeyer que foi inaugurado no mês passado. Luiz Fernando de Almeida participou também da abertura da Fei...

A POLÊMICA DA HISTÓRIA DAS MENTALIDADES

Por Alexandre Figueiredo Recentemente, a mídia lançou mão da história das mentalidades para legitimar tendências e ídolos musicais de gosto bastante duvidoso. O "funk carioca", o pagode baiano, o forró-brega, o breganejo e outros fenômenos comerciais da música feita no Brasil sempre lançam mão de dados biográficos, de sentimentos, hábitos pessoais dos envolvidos, chegando ao ponto da ostentação da vida pessoal. Também são mostradas platéias, e se faz uma pretensa história sociológica de seus fãs. Fala-se até em "rituais" e as letras de duplo sentido - na maioria das vezes encomendada por executivos de gravadoras ou pelos empresários dos ídolos em questão - são atribuídas a uma suposta expressão da iniciação sexual dos jovens. Com essa exploração das mentalidades de ídolos duvidosos, cujo grande êxito na venda de discos, execução de rádios e apresentações lotadas é simétrico à qualidade musical, parece que a História das Mentalidades, que tomou conta da abordagem his...

SÍLVIO SANTOS E ROBERTO CARLOS: COMEÇO DO FIM DE UMA ERA?

Por Alexandre Figueiredo Símbolos de um culturalismo aparentemente de fácil apelo popular, mas também estruturalmente conservador, o apresentador Sílvio Santos e o cantor Roberto Carlos foram notícias respectivamente pelos seus desfechos respectivos. Sílvio faleceu depois de vários dias internado, aos 94 anos incompletos, e Roberto anunciou sua aposentadoria simbólica ao decidir pelo encerramento, previsto para o ano que vem, do seu especial de Natal, principal vitrine para sua carreira. Roberto também conta com idade avançada, tendo hoje 83 anos de idade, e há muito não renova sua legião de fãs, pois há muito tempo não representa mais algum vestígio de modernidade sonora, desde que mudou sua orientação musical a um romantismo mais conservador, a partir de 1978, justamente depois de começar a fazer os especiais natalinos da Rede Globo de Televisão.  E lembremos que o antigo parceiro de composições, Erasmo Carlos, faleceu em 2022, curiosamente num caminho oposto ao do "amigo de fé ...