Por Alexandre Figueiredo
A prometida "reconstrução do Brasil" do governo o presidente Luís Inácio Lula da Silva, iniciado neste ano que agora se encerra, se resumiu, na prática, apenas a uma normalidade institucional, sem no entanto trazer as tão alegadas mudanças que o terceiro mandato do petista disse que, "de fato", iria implantar para valer.
Diferente dos dois mandatos anteriores, Lula deixou de lado o projeto progressista para governar combinando um projeto econômico neoliberal com assistencialismo. Se Lula prometeu fazer um governo "mais à esquerda", ele realizou o contrário, apenas mantendo os projetos de grife que, no primeiro mandato, eram novidade, como Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida. Até os aumentos salariais reduziram o valor de acréscimo, pois nos mandatos anteriores chegava-se a somar R$ 120 e hoje está em torno de R$ 92.
É, portanto, um governo medíocre, embora com algumas ações corretas, como comprova a normalidade institucional, na qual as pessoas podem ir à Justiça, podem ir aos bancos, podem ir ao comércio sem que seus direitos legais sejam ameaçados, como foi durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Mas o atual governo Lula já mostra que sua promessa de "grandes mudanças" simplesmente não se realizou e dificilmente irá se realizar.
Dito isso, porém, muita gente reage com estranheza. Aparentemente, as redes sociais e a mídia dita "democrática" - não se fala da tradicional mídia empresarial que apoiou abertamente o governo Temer - exaltam o atual mandato de Lula como se fosse "o governo de todos os sonhos". Constantemente blogueiros e jornalistas da mídia progressista chegam a exagerar definindo o atual governo Lula como "o melhor de toda a História do Brasil".
Essas pessoas são exatamente todo o povo brasileiro? São as classes populares e o proletariado que atuam com frequência nas redes sociais? Evidentemente, não. Afinal, são pessoas de elite, da classe média nos critérios do sociólogo Jessé Souza, pessoas abastadas, com muito dinheiro no bolso, mas alinhadas sempre a velhas elites e descendente de antigas aristocracias.
Trata-se, portanto, de uma minoria híbrida, que corresponde a cerca de 30% da população, exatamente o eleitorado de Lula em 2022. Conforme informamos em outras postagens, é uma elite que vai dos pobres remediados - com dinheiro para fazer festas nos quintais e nos terraços das lajes todo fim de semana - aos famosos que se tornam muito ricos e viram até empresários, mas não possuem o poder de decisão equiparado aos grandes banqueiros.
Entre esses dois limites, há a "classe média comum", supostamente esclarecida e que se julga "detentora da visão mais objetiva da realidade". Seus pontos de vista não são tão coerentes como se supõe, e culturalmente nota-se um apego ao chamado mainstream (ou seja, o pouco que faz sucesso comercial na mídia do entretenimento) e, no plano da música brasileira, a bregalização. É, portanto, uma elite sem muita criatividade e preocupada mais na agregação social no que na diversificação dos bens culturais.
Essa elite, como mencionamos, é herdeira das antigas oligarquias que, no passado, exterminaram índios, escravizaram negros, promoveram fraudes eleitorais, defenderam golpes políticos e detinham abusiva e impune concentração de renda. Hoje essa concentração de renda até continua, mas sob outros contextos, já que essa elite, definida por mim como "elite do bom atraso", hoje promove bom mocismo e tenta cumprir as lições de casa do seu autoproclamado esquerdismo democrático.
O que vimos nessa elite em 2023 foi um entusiasmo sem limites pelo consumismo, motivado por um protagonismo social inédito que dava a ilusória impressão de que essa parcela de brasileiros iria dominar o mundo, por ser considerada "a classe social mais sábia, mais divertida e mais preparada para protagonizar o futuro global". Lula reforçou essa ilusão através de suas viagens ao exterior e de sua intromissão em eventos políticos estrangeiros.
Discriminando o senso crítico, a "elite do bom atraso" fez o Brasil manter o mesmo estado de espírito do "milagre brasileiro", mantendo os "heróis de sempre", como ídolos bregas e "médiuns", símbolos do culturalismo conservador da ditadura militar, sobretudo a Era Geisel, considerada, na prática explícita mas nunca assumida formalmente, referência para a vida padrão dos brasileiros até hoje.
Com isso, o que se viu foi uma ênfase no consumismo e no hedonismo no entretenimento, quando o consumo de cerveja atingiu dimensões estratosféricas. O futebol, a religiosidade e o consumo de automóveis, a agravar os congestionamentos nas áreas urbanas, se consolidaram nesta "qualidade de vida" que só beneficia uns poucos que querem demais na vida.
Não se trata de um projeto visando a justiça social, pois os miseráveis extremos, como os moradores em situação de rua, os intelectuais autênticos, que valorizam a cultura refinada e questionam os problemas reais da sociedade, as pessoas solteiras, caseiras e abstêmias ao álcool e os antigos proletários e camponeses, todos eles estão excluídos do espetáculo de Lula 3.0, supostamente definido como "um só Brasil, um só povo".
Lula apenas faz um "recorte", em seus eventos públicos - que ainda parecem mostrar um forte ranço de campanha - , dos "pobres", "proletários" e "camponeses" que estão ao seu lado, que mais parecem figuras estereotipadas, feitas para a propaganda governamental, sem reflexo real nos excluídos acima citados que não se sentem identificados com a festa hedonista-identitária do Brasil lulista de hoje.
Outro aspecto que se observa é que Lula sinaliza governar mais para as pessoas que passam as madrugadas acordadas festejando e bebendo cerveja do que para os trabalhadores que precisam dormir mais cedo para encarar no dia seguinte mais uma jornada de trabalho. O que indica que Lula parece saber da decadência do proletariado, do campesinato e dos movimentos sindicais, um triste legado de Michel Temer que o atual presidente do Brasil não se interessa em reverter de verdade.
Numa atuação decepcionante em relação aos dois mandatos anteriores, que eram muito bons, Lula prefere governar para uma classe média que ele finge menosprezar, como se observa nos textos tendenciosos dos jornalistas apoiadores do presidente. Enquanto oficialmente os articulistas "cobram" uma política de atendimento das demandas da classe média, na prática Lula somente tem a classe média como foco prioritário de seu governo.
Isso se dá porque a própria classe média abastada do Brasil não se assume como tal. Dotada de muita megalomania por conta do "momento único" de protagonismo social pleno, a "elite do bom atraso" se acha "gente como a gente", tenta se mimetizar como se fosse uma sociedade de pessoas simples e empobrecidas, e por outro lado se autoproclama "a humanidade mais legal do planeta", manifestando desdém pela sociedade "racional demais" da Europa, sobretudo Escandinávia.
A única sociedade estrangeira admirável, para a "elite do bom atraso", é a estadunidense, por ela parecer "divertida" e "atraente" para a elite brasileira, oferecendo os "bens culturais" que se consome no Brasil, embora por intermédio de uma elite de empresários, produtores, editores e porta-vozes do entretenimento no nosso país, que selecionam aquilo que, do exterior, deve "fazer sucesso" entre os brasileiros, sem sair dos rígidos limites do mainstream.
Isso está de acordo com o que Jessé Souza descreve sobre a elite do atraso e seu viralatismo cultural, em seus diversos livros. Os EUA se tornam o "modelo de sociedade", com sua superioridade presumida baseada na reputação de "racionalidade", que, ressignificada no "bom atraso" de um viralatismo cultural nunca assumido atualmente, pois envolve "as boas coisas da vida" - oficialmente, o viralatismo cultural ou culturalismo vira-lata é atribuído somente aos derivados do bolsonarismo e do lavajatismo - , torna a nação de Tio Sam o símbolo do "paraíso na Terra".
Este aspecto é sintomático quando se vê que o público médio brasileiro consome muito os seriados de TV, as músicas pop de sucesso nos EUA (mesmo quando seus intérpretes são estrangeiros em relação aos Estados Unidos, sendo originários da Grã-Bretanha, Austrália, Itália, França, Canadá, México, Colômbia etc, é sob a sombra de Tio Sam que esses ídolos são reconhecidos) e toda uma indústria de "saudosismo de resultados" que já ganhou sua versão brasileira, o "brega vintage" de Gretchen, Chitãozinho & Xororó, Odair José, É O Tchan e Michael Sullivan, entre outros.
É um culturalismo de uma elite com hábitos muito "peculiares". Seu vocabulário envolve jargões oriundos da elite paulistana da Faria Lima - como a gíria "balada" e definição de freguês como "cliente", expressão usada de maneira generalizada e sem critério, até para quem compra um salgadinho de um vendedor ambulante - , "dialetos" em inglês (como bike, boy, snack e body, para maiô).
Seus costumes envolvem um lazer convencional e pouco criativo, envolvendo viagens de turismo aos mesmos lugares (como Bariloche, Paris, Orlando e Nova York), o apreço exagerado ao futebol, a valorização de subcelebridades, o endeusamento cego a ídolos como Michael Jackson (que no seu país de origem, os EUA, nunca foi classificado como "genial", e, dos anos 1990 ao fim da vida, o "rei do pop" se comportava como mera subcelebridade em decadência) e a costumes estranhos como um estranho orgulho em jogar comida fora nos restaurantes.
A visão de miséria dessa "elite do bom atraso" é meramente paternalista, e esta classe já ressignificou o sentido de pobreza, já "diferente" de miséria uma vez que, acolhendo conceitos identitaristas, a ideia de ser pobre deixou de ser vista como um problema socioeconômico para ser considerada uma pretensa identidade social, como se os pobres de hoje fossem "indígenas pós-modernos", com as favelas transformadas em "aldeias" para o deleite consumista dos turistas a fazer desses ambientes degradados paisagens de consumo através dos chamados "safáris humanos".
E isso é aberrante, como é aberrante o endeusamento cego e obsessivo a um tipo duvidoso de filantropo, o "médium", que é um tipo de charlatão religioso, supostamente se relacionando com pessoas mortas, e que tenta a todo custo mascarar suas práticas fraudulentas, que incluem literatura fake e outros truques, com um assistencialismo fajuto que não consegue dar mais do que uns precários mantimentos para os pobres que se humilham enfrentando longas filas para receber, uma vez por mês, aquilo que se esgota em dois dias.
Essa "caridade" serve para mascarar o elitismo aristocrático que ainda corre nas veias e nos corações de pedra da "elite do bom atraso" fantasiada de "gente simples". Através dessa atitude, esta sociedade tenta atribuir a missão de "ajudar o próximo" a supostos representantes que nem sequer chegam a exercer tal tarefa, até porque eles apenas se promovem às custas do que outras pessoas doam, sem mover um dedo para a "ajuda aos mais necessitados" que muitos insistem em acreditar em relação aos "médiuns".
A defesa da bregalização e, principalmente, do "funk", faz com que a "elite do bom atraso" também disfarce seu elitismo gritante, e, assim como glorifica os "médiuns" pela hipotética ajuda aos pobres, também glorificam os funqueiros e outros popularescos pela hipotética diversão do povo pobre, fazendo vista grossa para a realidade contundente de que o entretenimento brega-popularesco ou "popular demais" - causa maior do pretenso "combate ao preconceito" das elites intelectuais de 2002-2014 - é apoiado por grandes oligarquias empresariais, midiáticas e até latifundiárias.
Com essas caraterísticas, a "elite do bom atraso" tenta parecer "invisível" ao olho nu, por fazer o possível para parecer "gente simples e comum", para que seus valores privativos sejam vistos como "universais" e "públicos". Descendentes dos golpistas de 1964 e das elites privatistas que tiveram seu auge nos anos 2000, a "elite do bom atraso" de hoje finge defender a soberania econômica do Estado, sob o indisfarçável interesse em obter, do presidente Lula, generosas verbas estatais para suas atividades aparentemente culturais.
O ano de 2023 mostrou a ascensão aparente da "elite do bom atraso", que, em tese, conquistou o Brasil e o mundo. Mas a verdade é que essa elite é apenas a velha ordem social repaginada, que segue moldes contemporâneos originários do "milagre brasileiro" da ditadura militar, mas que se tornou ressignificada para parecer pretensamente progressista, democrática ou esquerdista.
Trata-se de uma velha sociedade que "mudou para continuar a mesma", e cuja megalomania que oculta seu viralatismo cultural enrustido se volta agora para o sonho de se prevalecer no imaginário da humanidade planetária, imaginando poder jogar para escanteio povos mais experientes e antigos da Europa, já consagrados por séculos de produção de Conhecimento e Saber, com iniciais maiúsculas.
O Primeiro Mundo certamente não irá se dobrar para a "elite do bom atraso" que se acha "a humanidade por excelência" e quer bancar a "dona do mundo", não satisfeita em se achar "dona do Brasil". Lá fora, a experiência e a vigilância dos estrangeiros, com todas as imperfeições e erros que possam cometer, pelo menos é suficiente para evitar que a megalomania da mediocridade sociocultural brasileira prevaleça sobre toda a humanidade planetária. Pretensiosismo tem limites.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.
SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro, Leya, 2017.
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