ROGÉRIO SKYLAB ENTREVISTA O PARCEIRO MICHAEL SULLIVAN NO PROGRAMA APRESENTADO PELO PRIMEIRO, MATADOR DE PASSARINHO, DO CANAL BRASIL.
Por Alexandre Figueiredo
Estranha a esquerda que exerce o protagonismo nos governos de Lula. Uma esquerda não apenas de perfil identitário, o que já causa estranheza, por importar um culturalismo próprio do Partido Democrata, sigla da direita moderada dos EUA. É uma esquerda que prefere apoiar alguns valores conservadores do que outros, mais progressistas, mas vistos erroneamente como "ultrapassados".
Trata-se de uma esquerda que, no ideário marxista, se identifica com o perfil pequeno-burguês. Uma "esquerda" de professores, artistas ricos, celebridades, socialites, jornalistas da grande mídia, carregados de um juízo de valor que destoa das causas esquerdistas originais, por estar mais voltado a uma visão hierárquica que vê no povo pobre um bando de idiotas pueris.
Essa esquerda está distante do esquerdismo tradicional que, em outros tempos, estava associado ao varguismo, janguismo, brizolismo, com as Ligas Camponesas, com os movimentos operários originais. Mesmo com respeitosa apreciação a esses ícones, nota-se, entre os esquerdistas festivos dos últimos tempos, uma falta de identificação com esses símbolos.
A esquerda festiva, observando bem, é tão cria da sociedade conservadora brasileira quanto o Partido Socialista Brasileiro (PSB) - partido que abrigou Geraldo Alckmin para a Vice-Presidência no atual governo Lula - foi cria de dissidentes da União Democrática Nacional (UDN), o partido da direita moderada que existiu entre 1945 e 1964 e cujo perfil hoje se aproxima da União Brasil (fusão do PSL então bolsonarista com o DEM).
Temos que nos lembrar de que essa esquerda festiva, formada por gerações relativamente mais recentes, nascidas depois de 1955 e que, vivendo uma vida com significativo, embora modesto, conforto, durante os anos de chumbo, era muito nova para entender a grandeza do pré-1964 e muito feliz para romper com o culturalismo conservador que o "milagre brasileiro" deixava exibir via rádio e televisão. Portanto, essa é uma esquerda que a direita gosta.
"BRINQUEDOS CULTURAIS"
A formação midiática das antigas crianças e adolescentes dos anos 1970 permite explicar o fraco caráter progressista de uma geração de esquerdistas festivos e identitaristas, que não hesitaram em acolher o que eu chamo de "brinquedos culturais", valores e fenômenos da direita moderada que, por apresentarem uma suposta carga positiva, representam algo "agradável" a esses setores das esquerdas.
Os "brinquedos culturais" são fenômenos ou personalidades que apresentam "valores positivos", relacionados a uma religiosidade conservadora que se introduziu na educação familiar dos esquerdistas festivos, junto a uma visão glamourizada da pobreza trazida pela abordagem paternalista da miséria humana, temperada com a perspectiva da "sociedade do espetáculo", a ver a pobreza humana como uma "identidade sociocultural", isolando o problema socioeconômico a uma simples "falta de dinheiro".
Com os "brinquedos culturais", as esquerdas festivas e identitárias - que denomino também como "esquerdas médias", ou seja, esquerdas mainstream - acabam vendo a vida cotidiana não como uma realidade concreta, mas como uma idealização inspirada na dramaturgia, como se o Brasil fosse um país fantasioso dos enredos das novelas de horário nobre da televisão brasileira.
Daí que surgem arquétipos, alguns associados à meritocracia, ligados a esses "brinquedos": é o jovem pobre que vira craque de futebol, gancho para os ídolos do futebol real que movimenta um mercado milionário. É o idoso ou a idosa de pequenas generosidades, que na realidade se relacionam à imagem glamourizada dos religiosos ultraconservadores, como "freiras católicas" e "médiuns espíritas", que movimentam um padrão de caridade meramente paliativo, precariamente benéfico ao povo pobre.
Temos também a menina pobre que busca sua "salvação pessoal" no "funk", gênero que também é glamourizado por esse imaginário, por representar um tipo de população pobre bastante estereotipado e de acordo com a visão paternalista de que pobre tem que desempenhar o papel de "ingênuo", quase como um miquinho de realejo, "feio" mas obediente.
Junto a isso, também há as figuras da mulher-objeto pseudo-feministas que supostamente se livra das amarras masculinas buscando uma erotização obsessiva e tornada sua única atividade, representada por subcelebridades triunfalistas como Geisy Arruda e Renata Frisson, a Mulher Melão, que no entanto movimentam um mercado de voyeurismo virtual cujo público é justamente de homens machistas e sexualmente afoitos.
RESSENTIMENTO
Os cantores da música brega-popularesca, principalmente os hoje glamourizados ídolos cafonas do passado, também estão nesse cardápio culturalista dos "brinquedos" acolhidos por essas esquerdas infantilizadas.
A estética derrotista e resignada que faz com que os cantores popularescos variem entre a voz desajeitada e molenga e a voz forçadamente operística, respectivamente simbolizadas por Odair José e Waldick Soriano, mostram um culturalismo marcado pela conformação, pelo lamento resignado, pela abnegação social, que contrariam, e muito, a antiga autoestima fortalecida dos antigos movimentos das classes pobres.
O que faz as esquerdas festivas apreciar esse cenário ultraconservador e conformista da canção brega e de seus derivados da canção radiofônica "popular demais" das últimas décadas é algo que precisa de um questionamento profundo. O que se pode inferir é que a formação social burguesa durante a ditadura militar faz com que a esquerda mainstream de hoje esteja mais identificada por um culturalismo de direita "positivo" do que com o progressismo clássico que lhe soa "inacessível".
Daí que ícones do esquerdismo clássico, brasileiro ou estrangeiro, como Karl Marx, Leonel Brizola, movimentos operário e camponês (com a sua luta por reforma agrária), Paulo Freire, Darcy Ribeiro, são apreciados apenas formalmente, sem que as esquerdas médias manifestem uma identificação natural e afetuosa. Essas esquerdas apenas "apoiam" esses ícones por uma questão protocolar.
No entanto, há um aspecto estranho a ser levado em conta, e que permitiu que uma geração de intelectuais burgueses comandasse o viralatismo cultural dissimulado pela "campanha contra o preconceito", uma farsa tão aberrante quanto o "combate à corrupção" da direita do golpe político de 2016, assunto que descrevi no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes....
Há um ressentimento por parte das esquerdas festivas contra o intelectualismo clássico dos tempos de Getúlio Vargas a João Goulart. É como se as esquerdas atuais preferissem o "milagre brasileiro" do que os Anos Dourados do período de Juscelino Kubitschek, quando houve debates culturais que parecem renegados nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT).
É uma estranha fobia das esquerdas atuais com o senso crítico e o aprimoramento cultural, de tal forma que a gente pergunta se essas esquerdas também não se irritam quando veem o povo pobre pedindo dinheiro em sinaleiras, operários fazem passeatas nos centros das cidades pedindo melhores salários ou favelados fechando rodovias e camponeses invadindo fazendas.
Em recente entrevista a um podicaste, o cantor e compositor Rogério Skylab, antes um ícone da MPB alternativa influenciada pela poesia concreta e pela cultura subversiva da segunda metade dos anos 1970 - que, em São Paulo, revelou o cenário da Lira Paulistana comandada por Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção - , fez duras críticas ao Rock Brasil, a ponto de chamar seus músicos de burgueses e, indo mais além, chamando as canções de Cazuza e da Legião Urbana de Renato Russo "horríveis".
Essa abordagem acompanha o processo de demonização da Bossa Nova, hostilizada por essa esquerda "ilustrada" que lê Folha de São Paulo e que prefere acreditar que um inócuo sucesso de axé-music, "Xibom Bom Bom", do grupo vocal baiano As Meninas, é "inspirado" na obra de Karl Marx. Essa esquerda festiva, que se diz "socialmente consciente", prefere ver o povo pobre se comportando como nos núcleos cômicos das novelas de TV, mas, por outro lado, também não esconde seu riso perverso quando informada de que o bossanovista João Gilberto morreu pobre e falido.
Em contrapartida, Skylab, que se define como "tradicionalmente esquerdista", se identifica mais com o conservadorismo culturalista do brega-popularesco. Skylab foi parceiro do cantor, compositor e produtor Michael Sullivan, o mesmo todo-poderoso produtor que ameaçava destruir a MPB nos anos 1980 e que depois, por puro oportunismo, recorreu a ela para se relançar na carreira.
Skylab também achou a obra Eu Não Sou Cachorro Não, de Paulo César de Araújo - uma coleção de teorias conspiratórias e fake news que tratam os velhos ídolos cafonas como supostos rebeldes combativos - , "um bom livro". Em outra postagem, Skylab sugere estar ouvindo muito o "brega sertanejo" (o tal "sertanejo de sofrência", antes chamado tendenciosamente de "sertanejo universitário").
Para um cantor considerado um potente nome da MPB independente, Rogério Skylab reflete o caráter ressentido de uma esquerda pequeno-burguesa, que expressa um viralatismo cultural não-assumido, marcado pelo coitadismo da bregalização, uma parte principal dos "brinquedos culturais" que as esquerdas tomam como "suas" mas que sempre foram um patrimônio sociocultural de uma direita conservadora e paternalista.
Esses Intelectuais Pertinentes... foi um livro escrito por mim como uma forma de trazer essa análise, de maneira bastante corajosa num cenário de profundo anti-intelectualismo, quando ter senso crítico e uma capacidade mais substancial de pensar as coisas gera incômodo até em quem se acha "intelectualizado" mas prefere que supostos representantes do povo pobre, de mulheres-objetos a craques do futebol milionário brasileiro, de "médiuns espíritas" a cantores cafonas, sejam gourmetizados pelo imaginário esquerdista mesmo com evidentes caraterísticas do culturalismo vira-lata da direita moderada.
Isso indica o quanto há uma parcela da sociedade que se considera "progressista, mas nem tanto". Que foi capaz de acolher ícones do conservadorismo cultural, como Sílvio Santos, Roberto Carlos e Zezé di Camargo, depois revelados direitistas convictos.
Trata-se de uma classe de esquerdas ressentidas com o intelectualismo clássico e, portanto, esperançosa que a meritocracia, da qual acreditam de forma mal-disfarçada, possa gourmetizar os medíocres das últimas décadas e demonizar os antigos mestres. Essa classe diz apreciar Paulo Freire, mas no fundo prefere ver o povo pobre permanecendo ignorante, pois o juízo de valor dessa esquerda "ilustrada" e "dona da verdade" acha que a ignorância do povo pobre é um tipo de "pureza espiritual". Com esquerdas assim, para que direita?
FONTES: Whiplash.Net, Carta Capital, Caros Amigos, Blogue Linhaça Atômica.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.
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