Por Alexandre Figueiredo
Diferente da antiga choradeira do "combate ao preconceito", a gourmetização da música brega-popularesca está de volta no Brasil governado por Lula. Embora houvesse o expurgo da parte bolsonarista dos ídolos brega-popularescos, a canção popularesca voltou a tona já ensaiando, durante o governo Jair Bolsonaro, por fenômenos de nostalgia comercial enrustida, em que os antigos ídolos, que fizeram sucesso entre 1968 e 2005, passaram a ser vendidos como falsas relíquias culturais.
A Virada Cultural de São Paulo, principal vitrine de ídolos popularescos esquecidos e considerados "fora de moda", que buscam retomar a carreira sob o patrocínio de verbas estatais estaduais ou federais - daí a atitude oportunista de ídolos comerciais, como Luís Caldas e Leandro Lehart, este do Art Popular, de renegarem, no discurso, o comercialismo musical que exercem - , é o reduto dessa tentativa de reabilitar a música popularesca para uma reputação pretensamente cult.
Com isso, os bares em vários bairros das capitais brasileiras, principalmente nos subúrbios, agora estão tocando, em larga escala, os velhos sucessos do brega dos anos 1970, seja de nomes como Waldick Soriano, Reginaldo Rossi e Odair José, passando por nomes como Paulo Sérgio e Fernando Mendes, e indo para nomes ainda mais caretas como Nelson Ned e Bartô Galeno.
Chorosos boleros, caricatas canções country e pálidos roquinhos datados e comportados, inspirados na canção italiana dos anos 1960, são executados em botecos, em casas e alguns estabelecimentos situados em bairros populares. Em São Paulo, residências na Casa Verde, na Freguesia do Ó e nos subúrbios de Sapopemba e Guaianases mostram o velho som brega ouvido nas alturas, tanto de dia quanto de noite e até na madrugada.
A onda da relembrança do brega também contagiou o cantor Otto, que deixou o mangue beat que o lançou na carreira, como ex-percussionista do Mundo Livre S/A, para fazer tributo ao ídolo brega Reginaldo Rossi. Já o crítico musical Régis Tadeu, que geralmente é bastante enérgico nas críticas aos fenômenos popularescos mais recentes, como o "funk" e o piseiro, é mais complacente com o brega mais antigo e já enumerou os "cinco melhores discos" de música brega antiga num de seus vídeos.
Mais uma vez a música popularesca encontra no governo Lula um gancho para reciclar seu sucesso comercial, dentro de um padrão de culturalismo que nunca foi, de fato, esquerdista. Afinal a música brega-popularesca teve origem num cenário cultural e midiático que apoiava a ditadura militar.
A atual postura pró-brega trazida já no primeiro governo Lula (2003-2006) e reciclada pela intensificação da campanha intelectual "contra o preconceito" em 2005, na verdade busca neutralizar o engajamento cultural que, nos tempos de João Goulart ou mesmo nas reações da sociedade contra a ditadura militar nos seus primórdios (1964-1968), marcado primariamente pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE) e pela MPB politizada e solidária ao povo pobre que se manifestava nos festivais da canção de 1965-1968.
A campanha pró-brega trazida por nomes como Paulo César de Araújo e Pedro Alexandre Sanches estão mais próximas, no método e no apelo à opinião pública, ao que os intelectuais neoliberais, através dos "institutos" IPES e IBAD, pregavam para desqualificar o governo João Goulart, lançando mão de ideias "científicas" para derrubar o governo progressista.
Combinando a atuação dos neoliberais do IPES-IBAD com métodos de provocação do Tropicalismo, os intelectuais pró-brega da Era Lula, na verdade treinados e formados sob o neoliberalismo acadêmico dos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), usavam o pretexto de "combater o preconceito" para três motivos estratégicos:
1) Promover a desmobilização política das classes populares, com a enganosa desculpa de que o entretenimento popularesco já seria uma "mobilização popular";
2) Evitar o fortalecimento da cultura musical brasileira demonizando a MPB tradicional, tendo como alvo principal a Bossa Nova, o CPC da UNE (tido como "ideológico demais") e até a MPB dos festivais da canção, como Chico Buarque e a falecida Elis Regina, tidos como "chatos" e "hermenêuticos demais";
3) Isolar as esquerdas e os movimentos sociais para ações e decisões de cúpula, limitando os debates e as ações para dirigentes, supervisores e especialistas, privando as classes populares da participação efetiva e direta desses debates e movimentos.
Isso foi crucial para isolar e enfraquecer as esquerdas, mesmo quando os intelectuais pró-brega tivessem desempenhado um papel farsante de se fingirem solidários ao esquerdismo pleno. Os discursos de Araújo, Sanches e companhia - com o antropólogo Hermano Vianna sendo o único a assumir o vínculo com as forças neoliberais - se aproximavam das manobras do "neoliberalismo progressista" dos EUA do Partido Democrata (Bill Clinton e Barack Obama), no qual o culturalismo "progressista" possível envolvia o identitarismo cultural, em detrimento do antigo trabalhismo.
Com essa retórica, as forças reacionárias tiveram o caminho aberto. A ausência do povo pobre nos debates políticos, já que estava "distraído" com o "funk", com os ídolos cafonas do passado e com modismos como o tecnobrega, foi compensada pelo reacionarismo puxado pela classe média conservadora, que elegeu Sérgio Moro como "herói circunstancial" no desmonte gradual dos governos do PT, permitindo a ascensão de Michel Temer e Jair Bolsonaro.
Passados os dois governos e as crises e retrocessos por eles causados, Lula retornou ao poder sob uma força de alianças que contou com a ajuda da chamada direita moderada, representada pelos membros mais antigos do PSDB e PMDB e pelo empresariado "democrático", herdeiro da antiga burguesia nacional apoiada ingenuamente pelas esquerdas dos tempos de João Goulart, que mais tarde foram traídas por sua querida elite quando esta foi apoiar o golpe civil-militar de 1964.
Embora tentasse implantar um projeto "mais à esquerda" do que nos dois mandatos anteriores, Lula demonstra fraqueza de desempenho e suas medidas supervalorizadas acabam sendo apenas pálidas sombras do que ele havia feito entre 2003 e 2010. Boa parte desse declínio se dá porque Lula encontra um cenário herdado de Jair Bolsonaro e tem que resolver conflitos com a "frente ampla", eufemismo para o apoio condicionado da direita moderada que ajudou a eleger o atual presidente do Brasil.
A sabotagem ao projeto cultural executada pelos intelectuais pró-brega já se completou, embora textos questionadores como os de meu próprio blogue Mingau de Aço tivessem contribuído para pôr em xeque a reputação desses intelectuais dentro dos círculos esquerdistas, uma vez que sua campanha "contra o preconceito" acabou causando estragos, como a falência do periódico Caros Amigos, visada negativamente por conta do culturalismo com pitadas de coitadismo dos textos de Pedro Alexandre Sanches e MC Leonardo.
O atual governo Lula não encontra mais esse processo organizado de sabotagem culturalista. Seus pregadores nem precisam mais usar a mídia de esquerda como trincheira e vestir a camisa vermelha esquerdista para fazerem gols contra (uma vez que a campanha pró-brega interessa à mídia corporativa, como a Rede Globo e a Folha de São Paulo). Hoje eles estão entrincheirados em portais "isentos", como UOL (da Folha de São Paulo), Internet Group (IG) e Terra, ou então dentro da mídia corporativa, como a própria Folha de São Paulo e a dupla Rede Globo / O Globo.
Em contrapartida, a bregalização virou o "novo normal", ainda que seus ideólogos tivessem desaparecido da trincheira esquerdista ao serem vistos como moleques que apedrejaram a janela de alguma casa (foi demais, por exemplo, Sanches tentar derrubar a reputação de Chico Buarque, apelidado pejorativamente de "coronel da Fazenda Modelo", em alusão ao primeiro romance do cantor).
A campanha do "combate ao preconceito" se revelou como "cabeça de praia" para o lavajatismo - afinal, a bregalização defendida pela intelectualidade "bacana" recomendava o povo pobre de "permanecer fiel" aos papéis sociais que o "sistema" lhe impõe, em troca de uma aceitação "piedosa" da chamada opinião púbica - , mascarando o neoliberalismo ideológico pela retórica da "provocação" do "mau gosto" popularesco (defino isso como "ditabranda do mau gosto), enganando setores influentes das esquerdas brasileiras.
Mas como tudo se consolidou, não é necessário o discurso do "combate ao preconceito", até para evitar o efeito kamikaze de abrir caminho para o reacionarismo "manifestoche" dos apoiadores da Operação Lava Jato e o papelão de ter apoiado os reacionários Zezé di Camargo & Luciano.
Como o mercado brega-popularesco tornou-se dominante e cresceu como um câncer terminal se espalhando pelo organismo, não é preciso mais chorar pela aceitação dos fenômenos popularescos, pois eles já conquistaram o que queriam: ampliar reservas de mercado para atingir públicos jovens com maior poder aquisitivo, dando um verniz de "modernidade" à cultura brega-popularesca e permitindo até mesmo a catarse juvenil através do "funk", do "sertanejo" etc, no lugar da antiga rebeldia do hoje ridicularizado Rock Brasil.
Com esse cenário, foi possível armar uma falsa nostalgia com uma reputação pseudo-cult dada a nomes ultracomerciais de valor artístico-cultural bastante duvidoso, de Michael Sullivan a É O Tchan. Junto a isso, se empurram os velhos ídolos cafonas dos anos 1960-1970 para um saudosismo calculado meticulosamente por um mercado dominado por fabricantes de automóveis, cervejas e pelas gigantes da Informática e das redes sociais (as Big Techs), hoje as maiores interessadas pelo entretenimento popularesco, vide as letras de muitos sucessos radiofônicos.
Afinal, desde que Reginaldo Rossi, com seu sucesso "Garçom", fez vender muitas bebidas alcoólicas ao cantar o alcoolismo como "amigo consolador" de uma frustração amorosa, vieram, de um lado, as "cervejadas universitárias" da axé-music, as constantes pronúncias do verbo "beber" no "sertanejo universitário", e, de outro, as menções a marcas de automóvel, como Cross Fox (Volkswagen) e Camaro (Chevrolet) e a plataformas como WhatsApp (apelidado de "Zap-Zap"), Instagram e Only Fans.
Tudo isso é uma farsa mercadológica, que tem como objetivo manter o povo pobre "ocupado" na diversão popularesca, para que o projeto progressista de Lula se dilua sempre em medidas paliativas decididas "de cima", com os debates públicos rebaixados a uma ação de cúpula. Enquanto isso, o empresariado do entretenimento popularesco se enriquece às custas da diversão do povo pobre convidado pela intelectualidade pró-brega a se contentar com sua pobreza, evitando assim um engajamento popular que ameaçaria as estruturas de poder que dominam o país há tempos.
FONTES: Carta Capital, Caros Amigos, Blogue Mingau de Aço, Blogue Linhaça Atômica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.
SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro, Leya, 2017.
SOUZA, Jessé. A Guerra Contra o Brasil. Rio de Janeiro, Estação Brasil, 2020.
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