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O CULTURALISMO DE UMA ELITE QUE PENSA SER "TODA A HUMANIDADE"

NO PLANO IDEOLÓGICO, A ELITE DO ATRASO VARIA ENTRE OS GOLPISTAS HISTÉRICOS E OS ESQUERDISTAS IDENTITÁRIOS.

Por Alexandre Figueiredo

Existe um conjunto de valores socioculturais de certa forma pitorescos. Adotam referenciais convencionais, embora seu público se julgue "diferenciado". Se julgam insubmissos ao poder midiático, por consumirem prioritariamente as redes sociais, mas demonstra ser influenciado por um poder midiático que varia entre a Rede Globo e a Folha de São Paulo, passando pelo SBT, Record, Rede TV! e Jovem Pan, esta difusora da gíria "balada" que simboliza esse clima de alienação e arrogância.

Esse público alterna entre o hedonismo desenfreado e a submissão místico-religiosa. Falam "dialetos" em portinglês (como "boy", "dog", "body" para maiô, e o até hoje não oficialmente traduzido "bullying", como se o ato de humilhar pessoas indefesas não fosse um problema geral da humanidade, mas uma "invenção" dos EUA dos anos 1990). 

Apreciam a bregalização cultural, seja a música brega-popularesca em geral, seja o humorismo datado de programas como Chaves, seriado mexicano produzido entre 1971 e 1980. Na música brega-popularesca, de nomes antigos como Waldick Soriano, Odair José e Benito di Paula, "veteranos" como Chitãozinho & Xororó, Bell Marques, É O Tchan e Michael Sullivan e "contemporâneos" como todo o "funk" e nomes como  Luan Santana, Anitta, Pabblo Vittar e Léo Santana, há grande obsessão por essa mediocridade musical gourmetizada pelo mercado e pela grande mídia.

É um público que glamouriza o hit-parade de tal forma que confunde "grandes sucessos" com "vanguarda". Tenta parecer moderno dentro dos limites da cafonice. Veem o mundo como se seus umbigos fossem o centro do universo.

No gosto musical, por exemplo, são capazes de glorificar nomes de menor expressão no exterior, como Johnny Rivers, a banda Outfield (do sucesso "Your Love") e os superestimados Guns N'Roses, banda de poser metal, e o finado cantor pop Michael Jackson, que só é considerado "gênio" pelos padrões provincianos de mentalidade que valem só no Brasil. 

Pouca gente consegue admitir que, dos anos 1990 até o fim da vida, Michael Jackson agia como uma subcelebridade e mesmo sua carreira musical é vista com certo exagero, pois o cantor nunca foi revolucionário e nem seu álbum de maior sucesso, Thriller, de 1982, é considerado tão genial assim.

Aliás, esse público brasileiro valoriza as subcelebridades, as banalidades da mídia do entretenimento, de forma a se iludir que "pessoas comuns" sem muito talento possam contribuir com algo relevante no divertimento das pessoas. Para esse público, se alimenta uma poderosa indústria de subcelebridades que exibem suas vidas particulares para o voyeurismo de internautas, leitores, ouvintes e telespectadores.

Na literatura, há a preferência por livros que evitam a transmissão de Conhecimento. Prevalecem obras consideradas analgésicas, como livros de auto-ajuda, de ficções dversas - ultimamente inspiradas em seriados de streaming como HBO e Netflix - , diários de youtubers e até os supérfluos "livros para colorir", um gigantesco e vergonhoso desperdício de papel num contexto em que jornais impressos começam a diminuir na imprensa brasileira.

É ilustrativo o culturalismo desse público, que supervaloriza o futebol, a religião (sobretudo neopentecostais, católicos-carismáticos e "espíritas") e as festas noturnas, que mostra seu provincianismo arrogante quando glorifica o pop rasteiro brasileiro, de nomes como Anitta, Pabblo Vittar e outros, ignorando que estes nomes apenas representam uma imitação do que se fazia no pop estadunidense 20 ou 25 anos atrás.

Esse público combina pieguice com rebeldia sem causa. Uma parcela desse público é capaz de fazer linchamento digital - o chamado "Tribunal da Internet" - para defender suas convicções e ficar patrulhando quem se recusa a compartilhar de valores tão duvidosos.

Enfim, este público, que muitos pensam ser "toda a humanidade" existente no Brasil e, talvez, esperançosa em fazer prevalecer seu culturalismo pelo resto do mundo, é bem menos "universal" do que se imagina.

Esse público é de classe média, que apenas varia, em um largo leque, dos chamados "pobres remediados", capazes de realizar uma festa na laje todo fim de semana, aos famosos muito ricos, mas ainda sem o poder decisório de grandes empresários e grandes banqueiros.

Dentro de um clima de polarização política, esse "povo" varia, ideologicamente, entre o mais histérico reacionário golpista, como no público bolsonarista, e o mais apaixonado lulista, como na chamada "esquerda identitária", mas o conjunto de valores apoiado segue uma lógica comum, sempre voltado a valores socioculturais medíocres e uma grandiloquência cultural que supervaloriza essa mediocridade.

Esse público pensa ser "toda a humanidade". Pode até ser uma relativa maioria, algo em torno de 60%, mas em verdade apenas 30% que conseguem ter seus referenciais compartilhados pelo "passivo" restante, num país com um sistema educacional precário e uma linhagem de mediocridade social que vem de muito tempo.

Conforme a dimensão temporal, esse culturalismo popularesco difundido a partir da chamada "elite do atraso" - um conjunto que envolve uma classe média "alta" identificada com a mediocridade cultural - , pode ser compreendido tanto quanto uma herança das aristocracias escravocratas do Brasil colonial do Século XVII, numa perspectiva temporal distanciada, quanto pelas elites beneficiadas pelo "milagre brasileiro" que culturalmente se formaram por valores conservadores da mídia da Era Geisel (1974-1979).

Não são valores modernos, voltados à evolução da qualidade de vida das pessoas. Esses valores incluem um entretenimento que permanece na zona de conforto da mediocridade, ouvindo sempre o mesmo hit-parade estrangeiro das rádios de pop adulto que, de tanto repetirem, já nem podem representar mais o flashback, no caso de canções mais antigas. Ou então a música popularesca, numa mediocridade tão escandalosa que, no Carnaval de Salvador deste ano, nomes de valor duvidoso como Léo Santana e Durval Lélis atraíram grandes públicos sem mérito para tanto.

Esse público não pode ser considerado como "universal". É apenas uma elite, 30%, que conduz o restante 30% e, talvez, de maneira quase inconsciente, quem estiver conectado a esse poder midiático, seja da grande mídia (Globo, SBT, Folha, Jovem Pan etc), seja das Big Techs (Facebook WhatsApp, Instagram, Tik Tok, Kwai), dos quais partem esses valores aparentemente compartilhados pela "maioria esmagadora" dos brasileiros.

IGNORÂNCIA QUE PENSA SER "MAIS SÁBIA" QUE OS SÁBIOS

São valores voltados à mediocridade, que é confundida com simplicidade. É uma precarização cultural. Na simplicidade cultural, se mantém o básico dos valores de dignidade e fortalecimento pessoal (que não deve ser confundido com o prazer de se acolher um produto de entretenimento qualquer que esteja na moda). Já a precarização cultural, ou mediocrização cultural, não há esse aspecto básico, pois tudo que é difundido pela mídia é acolhido passivamente, movido pelos instintos do público.

Pode ser um humorístico datado, um programa policialesco de TV, um sucesso de "funk", "sertanejo", axé-music ou forró-brega (agora na sua variação chamada "piseiro" ou "pisadinha") ou outra atração de entretenimento. De repente o Brasil virou um "programa da tarde" do SBT, Band ou Record, ou uma novela das 21 horas da Rede Globo, ou um noticiário da Rede TV!. Isso quando o Brasil não é um programa da Jovem Pan, responsável por difundir a gíria "balada", antes um jargão dos jovens ricos da Faria Lima para definir agitos noturnos movidos a pílulas alucinógenas (as tais "balas").

Numa sociedade brasileira, hipermidiatizada e hipermercantilizada, há uma falsa impressão de que as pessoas culturalmente são "fluentes", e seus valores se desenvolvem "espontaneamente" como o ar que respiramos. Isso é um grande engano. O poder midiático, no Brasil, exerce uma influência tão forte que, no âmbito das redes sociais, o Orkut, apesar da origem estrangeira, criado na Turquia, tornou-se um fenômeno surpreendentemente brasileiro.

Mesmo a atitude de uma considerável porção de internautas de evitar o vínculo midiático - geralmente os internautas manifestam falso repúdio aos veículos midiáticos e suas celebridades diretamente associadas - só revela um cenário de hipocrisia, pretensiosismo e mentiras em torno desse culturalismo decadente enrustido, tanto pelo lado das esquerdas quanto pela direita, moderada ou extrema.

Afinal, todos fingem que esse culturalismo é "universal", "moderno", "vanguardista", "futurista", "impessoal". A mediocrização chega aos níveis preocupantes de definir as ideias de "liberdade" e da "vida de solteiro" nos padrões da mais explícita idiotização social, como se a ideia de "felicidade" dependesse do processo de imbecilização e do rebaixamento cultural.

O mais grave disso tudo é que esse culturalismo decadente em diversos âmbitos se deixa mover pela Síndrome de Dunning-Kruger, o problema psicológico descoberto em 1999 pelos pesquisadores estadunidenses David Dunning e Justin Kruger, que consiste nas pessoas com baixo nível de conhecimento se julgarem mais sabedoras do que quem realmente conhece as coisas. Ou seja, é quando alguém ignorante se julga mais sábio que os verdadeiramente sábios.

A Síndrome de Dunning-Kruger, neste sentido, representa um sério perigo, porque o culturalismo decadente brasileiro - o "culturalismo vira-lata", só para usar uma expressão do sociólogo Jessé Souza - tem a pretensão de se impor ao mundo, pela megalomania do seu público nas redes sociais, que se acha "dono da verdade" a ponto de fazer o "tribunal da Internet" para agredir, através de um verdadeiro "assassinato de reputação", quem não pensa igual a eles.

Há, portanto, uma necessidade de situar esse culturalismo, mesmo "diversificado", a um número específico de pessoas, pois os valores acima citados não são universais, correspondendo apenas a interesses de grupos sociais específicos que, por sorte destes, é compartilhado facilmente por um grande número de pessoas. Atribuir essa mediocridade cultural ao interesse de uma elite do atraso é o primeiro passo para ver o quanto esses valores duvidosos não prevalecem porque são de "todo mundo", mas porque partem de uma elite de pessoas que têm o poder da visibilidade e da formação de opinião.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.

SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro, Leya, 2017.

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