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QUE LEVOU O BRASIL A QUERER UMA "DEMOCRACIA QUALQUER NOTA"?

APOIADORES DE LULA FAZEM O "L" EM IPATINGA, MINAS GERAIS - O identitarismo festivo substituiu o ativismo trabalhista nas campanhas das esquerdas no Brasil.

Por Alexandre Figueiredo

A decadência do bolsonarismo, que acontece no Brasil, embora não deva ser superestimada, deve ser vista com cautela. Apesar disso, porém, há um clima de euforia a respeito de uma suposta mudança política, social e cultural que pouco tem a ver com o processo de mudança em si, mas da remoção apenas de uma aparente simbologia de raiva e contrariedade, que de forma generalizada está associada ao governo que se encerra, o do extremo-direitista Jair Bolsonaro.

Isso porque Bolsonaro foi derrotado por Lula não por este ainda representar o antigo líder sindical que se tornou símbolo das esquerdas, mas por ele ter explorado as fraquezas emocionais dos brasileiros. Se Lula em 2002, mesmo se tornando uma novidade eleitoral ao vencer a campanha presidencial daquele ano, já não fez o tão imaginado "governo da mudança", o Lula extremamente moderado de 2022 mais dificilmente representará a mesma expectativa.

Isso porque Lula se aliou às forças políticas e econômicas mais conservadoras e, embora supostamente inclinadas ao atendimento das demandas sociais, são bem menos flexíveis do que os aliados direitistas que o hoje presidente eleito teve ao seu dispor nas campanhas anteriores, de 2002 e 2006.

Com Geraldo Alckmin, político neoliberal filiado à seita católica neo-medieval Opus Dei, como vice-presidente da chapa, Lula também conta com economistas conservadores, como Pérsio Arida, Armínio Fraga e Pedro Malan, entre seus apoiadores, e o petista ainda tem um flerte com as elites empresariais da Faria Lima, nome referente à Avenida Brigadeiro Faria Lima, um dos maiores redutos do empresariado brasileiro, por nela se situarem sedes ou filiais de várias empresas importantes.

Através dessas alianças, que Lula definiu como "frente ampla", seu programa originalmente progressista foi pouco a pouco perdendo as propostas progressistas mais arrojadas, para atender às exigências programáticas dos aliados conservadores.

Dessa maneira, saíram do programa a defesa do aborto em casos urgentes (como estupro e doenças que ameacem a saúde da gestante), a regulação da mídia (que dará lugar ao simples fortalecimento da EBC, Empresa Brasileira de Comunicação, para competir com as redes comerciais sem colocar risco à hegemonia destas), o cancelamento de privatizações recentes (Eletrobras e venda de reservas e subsidiárias da Petrobras) e mesmo a revogação da reforma trabalhista e do teto de gastos.

No caso da reforma trabalhista, Lula desistiu de revogar, apenas mudando pequenos pontos, referentes a contratos de empregados e acordos trabalhistas, sinalizando maior poder de decisão para os patrões e diminuindo apenas os prejuízos das classes trabalhadoras. Lula também irá contemplar a regulamentação de novas atividades profissionais, o home office e os trabalhadores de aplicativos virtuais como o Shopee e o iFood.

No caso do teto de gastos, isso envolve a atividade do grupo de transição governamental de Lula, comandado pelo vice Alckmin, que propõe a PEC da Transição, ou seja, proposta de emenda constitucional para criar uma verba excepcional fora do Orçamento oficial da União para os próximos quatro anos. Fala-se em valores que variam de R$ 175 bilhões a R$ 198 bilhões para garantir programas sociais como Bolsa Família e auxílio de R$ 150 para cada filho de até seis anos gerado ou adotado por uma família pobre.

Lula sinaliza que fará um governo conservador, e, embora ele atuasse como um líder de todo o processo, a qualidade de seu projeto político será comparável à do governo João Goulart no começo de sua fase parlamentarista, comandada pelo então primeiro-ministro Tancredo Neves entre 1961 e 1962. Tancredo é ancestral político de Geraldo Alckmin, e entre um e outro existe a ligação de Mário Covas, afilhado político do primeiro e padrinho político do segundo.

CULTURALISMO SEM RAIVA, MAS NÃO NECESSARIAMENTE MELHOR

O astral sociocultural dos brasileiros nessa nova época inaugurada pela campanha presidencial de Lula não necessariamente se dedica a profundas melhorias culturais, mas à manutenção de um cenário sociocultural vigente desde 1974, conservador e em vários pontos retrógrado. Trata-se apenas de um cenário em que apenas se exterminam elementos associados a simbologias de raiva, intolerância e contrariedade explícitas.

O culturalismo que prevalece no Brasil, aliás, se ancora, entre outras coisas, no saudosismo comercial da antiga bregalização cultural dos anos 1970 aos 2000, evocando nomes como Odair José, Benito di Paula, Michael Sullivan, Grupo Raça Negra, Chitãozinho & Xororó e É O Tchan, relançados sob o pretenso rótulo de "cultura vintage" à brasileira. 

A ênfase deixa de ser focada no "sertanejo", estilo brega-popularesco em maioria associado ao bolsonarismo, e passa a ser ritmos associados aos paradigmas de alegria festiva, como axé-music, "pagode romântico" e "funk".

O culturalismo continua mantendo a bregalização cultural, o conservadorismo religioso (com o Espiritismo brasileiro ensaiando tomar o lugar do Neopentecostalismo), e toda uma sociedade do espetáculo marcada pelas subcelebridades, pelo lazer alienante nas redes sociais ou até mesmo pela idiotização cultural dos brasileiros, promovida sob o pretexto da "liberdade" e da "alegria". 

Já se cogita a conversão de antigos bolsomínions (internautas que apoiavam Bolsonaro) para este novo momento sob Lula, retomando os pseudo-esquerdistas de 2005-2007, que promoviam "tribunais de Internet" com todo seu reacionarismo, mas vestiam a capa de pretensos esquerdistas, diante da alta popularidade de Lula na época. Algo que se pode definir como uma "espiral do silêncio", adesão a algum fenômeno considerado socialmente mais influente ou prestigiado.

Isso quer dizer, em outras palavras, que o culturalismo continuará conservador, e as únicas "melhorias culturais" se darão com a recriação do Ministério da Cultura e na distribuição generosa de grandes verbas para o que se entende como "Cultura", ainda que seja um balaio de gatos que pode incluir tanto grupos folclóricos regionais, carentes de sustento financeiro, quanto ídolos popularescos milionários que já possuem verbas de empresas privadas para financiar suas carreiras.

Não haverá mudanças profundas, porque o cenário repetirá as sabotagens culturais de 2002-2014, quando uma elite de intelectuais, centralizada pelas pessoas do historiador Paulo César de Araújo, pelo jornalista Pedro Alexandre Sanches e pelo antropólogo Hermano Vianna - a "santíssima trindade" descrita no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes... - , desqualificou os debates culturais através de uma engenhosa campanha de exaltação da bregalização cultural, sob o pretexto do "fim do preconceito".

Tudo permanecerá no mesmo cenário de pretensos artistas da música brega-popularesca ou de subcelebridades lançadas ou relançadas por reality shows, povoando o show business com suas nulidades socioculturais, supérfluas ou até mesmo culturalmente nocivas, vide, por exemplo, a forma com que a indústria do entretenimento brasileira trabalha a imagem da pessoa solteira, extremamente preconceituosa, como uma pessoa imbecilizada, hedonista e irresponsável.

Há também o conservadorismo religioso, calcado numa fé pseudo-racional e num assistencialismo filantrópico, que supostamente ajuda os pobres sem que ameaçasse os privilégios dos ricos e promovesse nos misteráveis uma evolução significativa de vida. Mas se essa caridade paliativa, que suaviza a dor da pobreza sem curar essa doença social, será feita também pelo Bolsa Família, isso significa o que pode ser o tom desse aparente misto de espiritualidade, humildade e solidariedade dentro de padrões paternalistas e conservadores.

Por isso, o Brasil não atingirá grandes progressos sociais que garantissem a tão sonhada entrada no Primeiro Mundo, expectativa reacendida com as promessas que Lula havia feito no começo de sua campanha presidencial e que teve que descartar uma a uma. 

O Brasil só será um simulacro de "primeiro mundo" para uma classe média cansada de ser humilhada nos seus exílios no exterior, da Flórida, no Sul dos EUA, a Portugal, e cansada de passar as viradas do ano sob um frio intenso. A chamada "elite do atraso", agora convertida ao bom mocismo, quer voltar ao Brasil para viver seus privilégios de maneira festiva, hedonista e consumista.

Com Lula, a classe média, cheia de dinheiro e ávida por diversão e consumismo, poderá se sentir como turista no próprio Brasil, consumindo cidades arrumadas, paisagens de consumo, boates e restaurantes de prestígio e com o povo pobre razoavelmente assistido, o bastante para que seja evitada a "formação" de novos assaltantes a tirar joias, dinheiro, celulares e outros bens da elite "bacana" que consome a vida noturna nas grandes cidades.

No discurso, o novo momento sugere mais amor, mais humanismo e mais altruísmo. Mas, na prática, a nova Era Lula será apenas a eliminação de aspectos explicitamente raivosos, criando uma "democracia qualquer nota" em que tudo é aceitação, conformidade e alegria. 

Essa "democracia" foi motivada por uma articulação das elites ricas, ou seja, a classe média e os banqueiros e o grande empresariado, para forjar um novo momento político, estabelecendo um acordo com Lula que, ao sair da prisão imposta pelos factoides da Operação Lava Jato, teve sua liberdade condicionada com a suavização do projeto político, adaptado aos interesses da direita moderada, substituindo o antigo esquerdismo petista pelo neoliberalismo assistencialista de "centro".

A classe média, que sempre foi feliz mesmo sob os governos maléficos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, continuará na sua, enquanto um Brasil brega, vira-lata e alucinado, seja entre a libertinagem sexual de uns e a castração religiosa de outros, segue seu curso como se ainda estivéssemos no tempo do "milagre brasileiro", que, pelo jeito, continuará, apenas jogando no lixo os aspectos negativos como AI-5, DOI-CODI e derivados.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.

FONTES:

Portal G1, Portal Universo On Line (UOL), Blogue O Kylocyclo, Blogue Mingau de Aço, Blogue Linhaça Atômica, Brasil 247, Carta Capital, Caros Amigos, Folha de São Paulo, O Globo, Diário do Centro do Mundo, Terra Diversão.

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