LULA DANÇA SARRADINHA COM ESTUDANTES EM SALVADOR - Clima de festa num Brasil em situação dramática.
Por Alexandre Figueiredo
A aparente decadência do bolsonarismo, com o suposto favoritismo de Lula na campanha presidencial, através de dados supostamente colhidos por pesquisas de intenção de voto, inaugura uma fase bastante inusitada no Brasil. O golpe político de 2016, que derrubou Dilma Rousseff, não acabou, mas seus principais idealizadores passaram a apoiar Lula sob o pretexto da "democracia".
Apesar de, oficialmente, haver uma polarização representada por uma direita fascista e uma esquerda democrática, a verdadeira dualidade se situa entre a "raiva" e a "alegria", respectivamente simbolizadas por Jair Bolsonaro e Lula. Enquanto Bolsonaro busca a reeleição, Lula busca conquistar um terceiro mandato presidencial, numa campanha presidencial considerada difícil e bastante confusa.
Os tempos atuais se contrapõem aos primeiros anos golpistas, sob a batuta de Michel Temer e culminando com a campanha de Bolsonaro em 2018, por ser o primeiro momento marcado pela indignação social dos chamados "coxinhas", manifestantes anti-PT que se tornaram a direita social marcada pelas camisetas da CBF e pela defesa de causas reacionárias que incluem, entre outras coisas, o armamento da população e manifestos de racismo e homofobia.
Atualmente, o que se observa é o crescimento do fenômeno da "positividade tóxica", que já estava presente em grande parte da chamada classe média desde que Dilma saiu definitivamente do poder, no fim de agosto de 2016. A classe que Jessé Souza denomina como "elite do atraso", mesmo a de esquerda, sempre se comportou com alegria e não sofreu sérios prejuízos sob Temer e Bolsonaro no poder. Quando muito, só se sentiam incomodadas por vê-los presidindo o Brasil.
A "nova fase" tem como objetivo substituir o período raivoso de Jair Bolsonaro, sua agenda antissocial e sua agenda ressentida, por uma agenda "democrática", marcada por expressões como "alegria", "positividade", "liberdade", "progresso" e "união", entre outras palavras mais agradáveis.
A partir dessa perspectiva nova, trocam-se alguns paradigmas, para acompanhar a sonhada substituição de Jair Bolsonaro por Lula, segundo grande parte dos brasileiros. No lugar de fenômenos aliados do bolsonarismo, como a "música sertaneja", a religiosidade neopentecostal e a violência, se colocam o "pagode romântico", a "espiritualidade" religiosa (os "bons" católicos, evangélicos e "espíritas") e o entretenimento "saudável" (ainda que situado no hedonismo sexual e etílico).
Trata-se de um fenômeno que não corresponde necessariamente a um progresso humanitário significativo, até porque a ampla adesão da mesma direita liberal que comandou o golpe de 2016 à candidatura de Lula soa por demais estranha e repentina. Embora vários economistas, políticos e empresários ligados ao neoliberalismo reclamem que os retrocessos de Temer tenham contribuído para o agravamento da crise econômica, eles não mudaram de lado ideológico.
Lula é que mudou de lado, fazendo concessões para um neoliberalismo com brechas sociais, mas o suficiente para se encaixar no clima de ânimo de boa parte de seus seguidores orgânicos, as chamadas esquerdas "identitárias" - voltadas a interesses de grupos socioculturais que envolvem critérios que vão da etnia à opção sexual - , e de adesões recentes da direita moderada, todos sintonizados nesse clima de otimismo e entusiasmo pelo fim do bolsonarismo.
E por que isso representa uma positividade tóxica? O conceito de positividade tóxica se define por uma obsessão pela alegria e pelo otimismo sem que haja condições objetivas para isso. É uma espécie de "felicidade obtida à força", mesmo num momento de crise extrema e numa situação bastante dramática, na qual há pessoas que preferem esquecer os problemas e acreditar que, se tudo ainda não está bem, estará ótimo daqui a poucos momentos.
"BRINQUEDOS CULTURAIS"
Da parte das esquerdas, o que chama a atenção é o acolhimento de valores ultraconservadores ou mesmo de pautas análogas às do bolsonarismo, mas que são oferecidas por meio de um discurso desprovido de raiva e de agressividade. Só isso mostra o quanto a polarização entre Lula e Bolsonaro não se dá necessariamente pelo nível ideológico, mas pelo nível do temperamento e do humor.
Nos dois primeiros mandatos de Lula, as esquerdas acolheram um culturalismo próprio da direita. São os chamados "brinquedos culturais", denominação por mim dada devido ao acolhimento desses valores ser feito com um sentimentalismo tipicamente infantil, mais apropriado entre crianças pequenas que acreditam em Papai Noel e no Coelhinho da Páscoa.
Através dos "brinquedos culturais", acolhidos pela suposta associação a uma simbologia mais "positiva" - como, aparentemente, fazer o povo pobre sorrir - , as esquerdas mostram seu caráter de classe média sonhadora, muito diferente das antigas e desacreditadas esquerdas trabalhistas, em grande parte desiludidas com Lula, que veem como um pelego (nome dado a um representante dos trabalhadores que colabora com os interesses dos patrões em detrimento dos interesses dos empregados).
Com os "brinquedos culturais", as esquerdas veem o Brasil como se fosse um país de núcleo pobre e semi-pobre da novela das 21 horas da Rede Globo, a chamada "novela das nove". Com paradigmas associados, em tese, a práticas assistenciais ou ao entretenimento do povo pobre, as esquerdas cultuam ícones de um conservadorismo social rígido, mas abordado sem raiva, indo desde o "assistencialismo" dos chamados "médiuns espíritas" ao espetáculo dos jogadores de futebol, passando pela diversão do "funk", entre outros aspectos similares.
Tudo isso é acolhido pelas esquerdas através de palavras-chaves mágicas como "paz", "periferia", "interatividade", "prazer", "espiritualidade", "liberdade" e tantas outras do mesmo nível. Pouco importa se é a Teologia do Sofrimento que aparece no imaginário esquerdista, porque essa corrente medieval, mesmo sendo, na prática, uma doutrina religiosa digna do imaginário bolsonarista, é oferecida sem um discurso raivoso e sob a promessa de "vida melhor" e "progresso futuro", enganando as esquerdas com esse discurso "água com açúcar".
A própria escolha de Geraldo Alckmin por Lula para ser vice-presidente na chapa presidencial é ilustrativa dessas esquerdas que não fazem questão de esquerdismo, aceitando um direitismo abertamente conservador, mas seu o signo da hidrofobia e da intolerância social.
Alckmin está associado à repressão aos movimentos sociais, reprimindo protestos de trabalhadores e estudantes na capital paulista. Também está associado à ordem para a Prefeitura de São José dos Campos, acatando pedido de reivindicação de posse dada pelo empresário e especulador Naji Nahas, realizar um violento despejo de moradores do bairro popular de Pinheirinho, cuja forma repressiva fez o episódio ser denunciado aos órgãos humanitários internacionais como crime contra os direitos humanos.
Apesar disso, e apesar de Alckmin ter comemorado a prisão de Lula em 2018, motivado pelos factoides da Operação Lava Jato, o então tucano foi aceito porque não está associado a uma simbologia da raiva, sempre falando pausado e aparentemente se comportando com relativa elegância, o suficiente para as esquerdas médias (que predominam nas forças progressistas) aceitarem sem críticas, ainda que o ex-governador de São Paulo não tenha manifestado um pingo de autocrítica dos erros antigos (até agora nenhum pedido de desculpas foi feito ao povo de Pinheirinho) nem de vontade real de mudança.
A título de comparação, Alexandre Frota, que havia sido uma espécie de "subcelebridade da política", fez autocrítica de erros graves e grosseiros por ele cometidos e teve uma vontade sincera de mudar, mas foi alvo de chacotas dentro de um cenário de opinião pública digno de livro de Franz Kafka, pois as esquerdas médias preferem um Alckmin sem autocrítica nem remorso do que um Frota arrependido e com vontade real de mudar.
O próprio histórico de falta de escrúpulos que faz o "jeitinho brasileiro", essa forma tropical de arrivismo, já fez um "médium espírita" de Minas Gerais alcançar uma reputação elevada apesar de seus livros fake - falsamente atribuídos a autores mortos, por destoarem severamente de seus aspectos pessoais - , do reacionarismo extremo (manifestou apoio radical à ditadura num programa de TV de estrondosa audiência) e de um assistencialismo fajuto. Apesar disso, as esquerdas veem no religioso um "herói", apesar de suas pregações religiosas extremamente conservadoras.
Isso significa que, neste tempo de positividade tóxica de hoje, as esquerdas não são tão progressistas quanto se dizem, tendo se revelado bastante conservadoras até mesmo quando se fala do povo pobre, defendendo a permanência das classes populares em sua inferioridade social, através de narrativas que glamourizam as favelas como "paisagens de consumo" e "safáris humanos", dentro de uma perspectiva ufanista não muito diferente do ufanismo ditatorial do governo do general Emílio Médici.
Daí que vemos que as esquerdas no Brasil são dominadas pela classe média que não consegue disfarçar seu desprezo pelas causas trabalhistas - lembradas apenas a serem promessas eleitorais de um Lula mais afinado com a Faria Lima do que com o ABC paulista e o agreste nordestino - e se prende a causas identitárias mais adequadas ao seu hedonismo cheio de dinheiro no bolso.
As esquerdas não querem senso crítico, não querem pessoas ressentidas, mas também não querem ver gente solitária em casa quando há um jogo de futebol num estádio mais próximo ou uma noitada de cerveja nas boates da moda. Tudo tem que ser uma alegria forçada, uma permissividade a ser aceita sem contestação, um hedonismo que deva ser vivido na marra, mesmo quando os instintos emocionais se sintam incapazes de entrar nesse clima frenético de festa e curtição.
Tudo dentro da positividade tóxica, a obsessão pela felicidade a qualquer preço, a ilusão de que tudo está bem e ficará melhor sem haver movitos nem condições objetivas para isso. Daí que deixemos o cérebro de molho e, em vez de raciocinar e questionar, devamos acreditar e curtir, pois a fantasia agrega mais pessoas do que o realismo distópico. E lacra nas redes sociais.
As esquerdas brasileiras não querem esquerdismo. Querem um Brasil para seus caprichos hedonistas, que ofereça um "milagre brasileiro" sem AI-5 nem DOI-CODI. Querem ser turistas dentro do Brasil, com réplicas de cidades turísticas e sem depender do exílio no exterior, quando as elites brasileiras são tratadas como se fossem "miseráveis". Por isso, usam a palavra "democracia" para defender um cenário qualquer nota, cuja única grande realização é tirar Bolsonaro do poder e afastar o risco de reações bolsonaristas.
De resto, pode até haver crenças religiosas reacionárias, transmissão de fake news "cristãs" sob a máscara das "psicografias", e o mesmo cenário cultural da época do governo Médici, com os mesmos ídolos cafonas fazendo grande sucesso e a MPB cumprindo papel secundário no mainstream. Que seja tudo de pior no Brasil, desde que sem o aparato repressivo, censor e intolerante. Que seja um Brasil marcado pelo viralatismo cultural de sempre, mas que em vez da simbologia da raiva, haja a simbologia da alegria, da união (ainda que seja a "da raposa com a galinha") e da permissividade.
FONTES:
Carta Capital, Caros Amigos, Revista Fórum, Folha de São Paulo, Blogue Linhaça Atômica.
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