RENSGA HITS - COM SÉRIE DO CANAL GLOBOPLAY, ATÉ O RECENTE FEMINEJO JÁ VIROU ARTIGO PRETENSAMENTE "VINTAGE".
Por Alexandre Figueiredo
Uma tendência que ocorre nos últimos anos é a mídia e o mercado do entretenimento no Brasil vender o comercialismo mainstream em geral como se fosse falsa vanguarda. Não bastasse o pop comercial dos EUA dos últimos anos ser marcado por pretensas excentricidades de astros como Dua Lipa, Doja Cat, Nicky Minaj, Ke$ha, Kanye West, Post Malone e outros, até mesmo o hit-parade mais tradicional agora é vendido como algo melhor do que realmente é, ou mesmo sendo bom, está sendo supervalorizado.
Na carona disso tudo, temos o falso "vintage" brasileiro, um culturalismo que realimenta os sucessos comerciais como se fossem algo "sofisticado" ou "novidadeiro". Aqui não vamos detalhar sobre a música estrangeira aqui consumida, em que os mesmos sucessos do passado que se repetem nas rádios de pop adulto são supervalorizados mesmo quando são realmente bons, ainda que quase sempre longe de serem excepcionais. Mas é sintomático que, mesmo aqui, o fanatismo cego de um público viralatista se manifesta com intolerância às críticas e completa inversão de valores.
De maneira surreal, veio o costume estranhíssimo do comercialismo que é visto como "não-comercial" e o não-comercialismo agora visto como "comercial", por meio de um terraplanismo cultural que anda na moda nas redes sociais. É a mesma lógica reacionária de acreditar que rico não rouba porque já tem muito dinheiro e pobre é que precisa sempre roubar porque não tem grana.
Essa lógica torta faz com que o comercialismo seja "não-comercial" porque vende muito e faz sucesso enquanto que, supostamente, ao tocar nas rádios diariamente, fala do "cotidiano" vivido pelos seus ouvintes. Mesmo um nome do hit-parade estrangeiro falando o verso "dancing the night away" ("dançando a noite toda") seria algo "vivido" pelos ouvintes brasileiros, que nos fins de semana vão para a agitação noturna ("balada", no jargão lançado pela Jovem Pan).
Imagine então com que "intimidade" um público mais afeito aos ritmos brega-popularescos se "identifica" com versos de sucessos de gêneros como "forró eletrônico" e "sertanejo" e seus derivados atuais, a "pisadinha" e a "sofrência" respectivamente, que mencionam redes sociais e aplicativos de celular em relações de amor frustrado?
Tudo agora é "autêntico", "engajado", "clássico" e "excêntrico". E o falso "vintage" pega a parcela mais antiga do comercialismo popularesco, acompanhando a vassalagem que aqui se tem com o hit-parade gringo, visto como "coisa de outro mundo", mesmo através de intérpretes que o público não tem ideia do que realmente são, como Haddaway, do sucesso "What's Love?", ou mesmo uma banda roqueira mediana, como Outfield, do sucesso "Your Love".
Num contexto cultural em que opinião se confunde com fato, quando as pessoas só veem razão naquilo que lhes agrada, a inversão de compreensão entre comercialismo e não-comercialismo chega aos níveis do absurdo. Enquanto "não-comercial" é aquele sucesso comercial que "fala do dia a dia" dos seus fãs, "comercial" seria aquele nome antigo não-comercial que é até respeitável, mas não para o público contemporâneo, que parte para humilhar, depreciar e ofender qualquer banda extinta ou artista falecido que envolvam disputa de heranças pelo nome ou pelo legado artístico deixado.
Esta é uma visão fora da realidade, que acaba derrubando a reputação de nomes antes de alta respeitabilidade, como o cantor de Bossa Nova João Gilberto e a banda de rock Legião Urbana, mas favorece a permanência do sucesso, praticamente sem críticas severas, de nomes medíocres como Exaltasamba, É O Tchan, Ivete Sangalo, Chitãozinho & Xororó e Alexandre Pires, contra os quais é proibido até falar de uma vírgula de seus trabalhos abertamente comerciais.
BREGA ANTIGO "GLORIFICADO"
O público que predomina nas redes sociais é reacionário e desrespeitoso. Tem um apreço cego pelo que é "estabelecido", e não tolera críticas alheias a isso. Quando essas críticas aparecem, surge então o "Tribunal da Internet", que consiste numa campanha de ofensas contra o discordante de ocasião, alvo de ameaças que vão de invasão de sua conta na Internet até mesmo "visitas" do agressor à cidade onde mora a vítima, além de blogues e perfis nas redes sociais criados para difamar o agredido.
Isso é grave, porque se trata de um juízo de valor autoritário a serviço do mercado, que tenta fazer crer que a cultura "tem que fluir ao sabor do vento", mesmo que esse "vento" parta de escritórios refrigerados de editoras musicais, da indústria fonográfica, de agências de talentos ou de empresas de entretenimento em geral, para não dizer os escritórios da grande mídia.
A justificativa para a imposição dessa "nova realidade", portanto, se dá porque o mainstream, de tão saturado, não consegue comportar tanta gente e o sucesso não é para todo mundo. Com isso, muita gente que fez sucesso no passado fica de fora e o mercado precisa relançar esses ídolos sob um novo rótulo, com a finalidade de não só voltar a torná-los vendáveis mas também alcançar uma popularidade mais duradoura.
Além disso, a precarização musical dos últimos anos faz com que até a mediocridade comercial popularesca de uns anos atrás seja vista como "genial", por parecerem suas músicas mais "elaboradas" em relação às que hoje fazem sucesso. Sempre o ruim de ontem que parece "melhor" hoje, como se tivéssemos que optar entre o ruim e o pior.
Desse modo, o falso "vintage" brasileiro prioriza as tendências da música brega-popularesca que fizeram sucesso até meados dos anos 1990. Nota-se que alguns nomes se tornaram focos desse culto tendencioso, dessa necessidade de retomar o sucesso sob um rótulo mais "preciosista": Odair José, Leandro Lehart, Péricles (Exaltasamba), Benito di Paula, Michael Sullivan, Gretchen (agora como dublê de influenciadora digital), É O Tchan, entre outros.
O falso "vintage" atua em duas frentes: uma é criar um rótulo de "sofisticado" ao que é mais antigo, como Michael Sullivan e Benito di Paula, e outra é dar uma reputação falsamente "alternativa", que é o caso de Leandro Lehart, por exemplo, ou, num contexto mais diferente, Odair José. Mas mesmo entre um e outro há a pretensão de forjar uma reputação de falso vanguardismo, que tanto pode envolver Sullivan como Lehart.
As argumentações são pífias, mas vão além da choradeira fácil do "combate ao preconceito" - explicada no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes.. - do tempo em que se produziam filmes como Os Dois Filhos de Francisco, de Breno Silveira, já falecido, e Sou Feia Mas Tô Na Moda, de Denise Garcia, duas produções de uma propaganda mais simplificada do brega-popularesco.
Hoje as argumentações vão além de apelos como "não é preciso gostar, mas tem que aceitar", pois chegam mesmo ao falso reconhecimento de algum "diferencial" musical, sendo um "conceito" já forjado, uma suposta reputação que já não se "persegue", como na retórica anterior, mas que busca uma consolidação, pois a etapa do "combate ao preconceito" se supõe ter sido cumprida.
Dessa forma, o ídolo popularesco já não é o "coitadinho" pedindo para ter um lugar sob o Sol da "boa música", mas um ídolo supostamente "diferenciado" que precisa apenas de um "reconhecimento mais efetivo". São ídolos que já possuem um lobby fortalecido, como Michael Sullivan, Leandro Lehart e Benito di Paula, blindados por empresários do entretenimento com trânsito em programas de TV. Esses ídolos já ultrapassaram a etapa do antigo "combate ao preconceito" e, recuperando o mercado, agora buscam consolidar com um status mais grandiloquente.
Mas a coisa é tão pretensiosa que mesmo o feminejo, a onda de cantoras do "sertanejo de sofrência", também foi introduzido neste falso glamour do brega-popularesco, no qual mesmo uma série com o nome evidente de Rensga Hits, exibida na plataforma Globoplay, das Organizações Globo, se vende como pretenso "vintage", como se fosse possível acreditar na lorota de que hits são sinônimo de "vanguarda". Até o reino mineral sabe que hit-parade é o contrário de vanguarda, não seu sinônimo.
E é isso que se alimenta o falso "vintage", na onda de saudosismo fabricado que a grande mídia, associada a um poderoso mercado do entretenimento, promove não só entre o grande público, mas também entre o chamado senso comum, como um meio de não apenas resgatar antigos ícones do comercialismo musical, mas criar um faz-de-conta no qual os antigos ídolos popularescos, de cerca de 30, 40 ou 50 anos atrás, são vistos agora como "sofisticados" ou "vanguardistas".
Não vamos nos iludir. Afinal, trata-se de um jogo de cena. É como ocorre no Natal, quando lojas e centros comerciais escolhem algum funcionário para fazer o papel do Papai Noel e a criançada precisa acreditar que é mesmo o lendário idoso que veio de longe, do Pólo Norte, para dar presentes às boas crianças.
Temos que acreditar que Michael Sullivan, Benito di Paula e Leandro Lehart são "vanguarda", que Chitãozinho & Xororó e É O Tchan são cult e que o "funk" é um "movimento libertário" e uma "rebelião popular revolucionária". Temos que acreditar nestas mentiras, vendidas como "verdades indiscutíveis" para atender a interesses comerciais estratégicos. Afinal, o comercial, para se vender por mais tempo, não pode se assumir como tal. A mentira é a alma do negócio. Se o comercial se vender como comercial, o público se afasta. A mentira vende mais do que a verdade. E lacra na Internet.
FONTES: UOL, G1, Terra Diversão, Quem Acontece, Blogue Linhaça Atômica.
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