Pular para o conteúdo principal

AS NARRATIVAS QUE "DRIBLAM" A PROBLEMÁTICA DO CULTURALISMO VIRA-LATA

REGINA CASÉ É ACUSADA DE EXPLORAR O MITO DA "PERIFERIA LEGAL" EM PROGRAMAS DA REDE GLOBO. MAS ELA É SÓ A APRESENTADORA, EXISTE UMA EQUIPE POR TRÁS.

Por Alexandre Figueiredo

O chamado senso comum, pelo menos o que se considera dos setores mainstream da opinião pública considerada "isenta" ou "progressista", tende a driblar as narrativas que problematizam o culturalismo vira-lata brasileiro, criando limites de abordagem para evitar a desqualificação de muitos fenômenos que atendem a interesses comerciais e financeiros estratégicos.

Desde que uma geração de intelectuais passou a blindar a bregalização cultural, usando como desculpa o "combate ao preconceito" - tema explorado no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes... - , há cerca de 20 anos, culturalismo vira-lata ou conservador teve que ter um contexto bastante limitado, que só se alargou conforme as conveniências do momento.

Inicialmente, entendíamos como "degradação cultural" somente o noticiário político. Na primeira metade da década de 2010, as avaliações reacionárias de comentaristas do combo Rede Globo/Globo News / O Globo, da Folha de São Paulo, da Veja e do Estadão, contra os governos de Lula e Dilma Rousseff, eram tudo o que era considerado "culturalismo conservador", junto a pautas preconceituosas contra causas identitárias. Um culturalismo mais jornalístico, e político, do que cultural, diga-se de passagem.

Isso criava situações constrangedoras, dentro da blindagem da bregalização cultural e das "passagens de pano" nos fenômenos popularescos. Nesta época houve a narrativa dominante que mascarava a objetificação do corpo feminino, dentro da retórica em prol da bregalização, como uma suposta "liberdade sexual feminina".

As críticas aos "padrões dominantes" se dirigiam a revistas franqueadas pela mídia corporativa, como Marie Claire (Globo) e Cláudia (Abril), acusadas de estimular as mulheres a perseguir, através de plásticas e roupas da moda, padrões "perfeitos" de beleza. Mas a hipocrisia do discurso "progressista" não esperava que era justamente no âmbito "popular" das musas popularescas e subcelebridades que havia todo um processo de cirurgias plásticas, exercícios e anabolizantes para a busca de uma beleza "mais atraente".

A retórica que prevalecia na mídia de esquerda, através de veículos como Caros Amigos, Carta Capital e Fórum, caía em contradição quando se alerta sobre problemas como a objetificação da mulher, a precariedade da vida nas favelas, a tragédia da prostituição e a questão do "pobrismo", espécie de ideologia que defende que o pobre permaneça essencialmente pobre, mesmo quando recebe alguns benefícios sociais, como dinheiro, saneamento básico e acesso a bens de consumo e tecnologia.

Por isso, o culturalismo conservador se limitou, durante muito tempo, em narrativas que só creditavam a tal condição o noticiário político, numa época em que jornalistas das chamadas "esquerdas médias" (espécie de "esquerda mainstream" brasileira) preferiam discutir problemas externos, como a tirania em Israel contra o Estado Palestino, enquanto adotavam postura complacente e apologética com a degradação cultural travestida, retoricamente, em "cultura das periferias".

Só depois de 2014 a narrativa começou a flexibilizar. Primeiro, ao ampliar a abordagem para humorísticos de cunho preconceituoso ou conservador, como nos casos de Danilo Gentili e Rafinha Bastos, ambos ex-CQC, de Marcelo Madureira, do Casseta & Planeta e do também ex-CQC Marcelo Tas. O humorismo que ridicularizava o então presidente Lula ou humilhava negros e mulheres entrava no cardápio restrito do culturalismo conservador.

O golpe político de 2016 também abriu o leque, mostrando que o universo dos ídolos popularescos estava longe de ser um paraíso de isenção social ou de bolivarianismo cultural. Antes queridinha das esquerdas, a dupla "sertaneja" Zezé di Camargo & Luciano deixou a máscara do seu "lulismo de resultados" cair para votar em Aécio Neves, candidato tucano, em detrimento da petista Dilma Rousseff, em 2014, fazendo com que a dupla estivesse entre as vozes golpistas dois anos depois.

Depois que fez comentários contra pobres em um evento social, a atriz Regina Casé virou bode expiatório do culturalismo conservador que explorava o mito da "periferia legal", da "pobreza linda", apenas porque ela foi apresentadora de programas do gênero, como Central da Periferia e Esquenta!, ambos da Rede Globo de Televisão.

Só que Regina Casé apenas apresentava o programa, enquanto sua equipe de criação era comandada pelo antropólogo Hermano Vianna, um dos ideólogos da bregalização cultural. E aí a professora universitária Ivana Bentes, certa vez, caiu no ridículo em criticar o Central da Periferia, por conta de ser um programa da Rede Globo, acusado de explorar o mito da "periferia legal". 

Só que Ivana elogiou o documentário Sou Feia Mas Tô Na Moda, de Denise Garcia - ex-RBS, por sinal afiliada gaúcha da Rede Globo - , filme que, embora com alguns tons dramáticos, também explora o mito da "periferia legal". Vale lembrar que Ivana não dirigiu suas críticas a Hermano, considerado uma das figuras mais blindadas da intelectualidade pró-brega, junto a Paulo César de Araújo e Pedro Alexandre Sanches. Eu defino os três como a "santíssima trindade" do intelectualismo pró-brega.

O bolsonarismo deixou claro que uma boa parcela de ídolos popularescos estava apoiando o político fascista. Depois que intelectuais pró-brega perguntavam se havia algum esquerdismo entre os músicos "sertanejos", a exemplo do que atribuíam ao "funk", a música "sertaneja" mostrou vários apoiadores de Jair Bolsonaro, em 2018: Zezé di Camargo & Luciano, Leonardo, Gusttavo Lima, Bruno & Marrone, Christian & Ralf, entre outros. 

Fora do "sertanejo", nomes como o funqueiro Buchecha (sobrevivente da dupla Claudinho & Buchecha), o ídolo brega Amado Batista - curiosamente, com estilo semelhante ao de Odair José, este declarado apoiador de Lula - e o cantor de axé-music Netinho também declararam apoio a Bolsonaro.

Outros músicos popularescos acabaram também se associando a contextos variavelmente reacionários, como o funqueiro Nego do Borel, a cantora de forró-brega Joelma, o cantor de "pagode romântico" Belo e o também ídolo do forró-brega Wesley Safadão, quebrando com a blindagem aos popularescos que antes era generalizada.

Os "dribles" da narrativa pró-brega em limitar o sentido do culturalismo vira-lata encontraram obstáculos diversos, já que não somente meu antigo blogue Mingau de Aço como os comentários de internautas comuns rejeitando a retórica em prol dos fenômenos popularescos, alargaram o repertório problemático do culturalismo conservador, para tristeza de esquerdistas e isentos complacentes que tiveram que engolir as críticas a narrativas tão depreciativas ao povo pobre.

Neste contexto de "reconstrução do Brasil" que se anuncia, mesmo com uma campanha do candidato petista Lula, que busca um terceiro e último mandato (o petista irá se aposentar, depois de encerrado o governo), marcada por contradições e erros, o que se espera da compreensão do culturalismo conservador? Espera-se uma ampliação de questionamentos, talvez á revelia da agenda petista dominante, e mais uma vez o tal "combate ao preconceito" será posto em xeque, diante dos preconceitos a serem identificados por trás dessa narrativa "sem preconceitos".

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.

FONTES:

Caros Amigos, Carta Capital, Revista Fórum, Folha de São Paulo, O Globo, Blogue Linhaça Atômica, Blogue Mingau de Aço.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A POLÊMICA DA HISTÓRIA DAS MENTALIDADES

Por Alexandre Figueiredo Recentemente, a mídia lançou mão da história das mentalidades para legitimar tendências e ídolos musicais de gosto bastante duvidoso. O "funk carioca", o pagode baiano, o forró-brega, o breganejo e outros fenômenos comerciais da música feita no Brasil sempre lançam mão de dados biográficos, de sentimentos, hábitos pessoais dos envolvidos, chegando ao ponto da ostentação da vida pessoal. Também são mostradas platéias, e se faz uma pretensa história sociológica de seus fãs. Fala-se até em "rituais" e as letras de duplo sentido - na maioria das vezes encomendada por executivos de gravadoras ou pelos empresários dos ídolos em questão - são atribuídas a uma suposta expressão da iniciação sexual dos jovens. Com essa exploração das mentalidades de ídolos duvidosos, cujo grande êxito na venda de discos, execução de rádios e apresentações lotadas é simétrico à qualidade musical, parece que a História das Mentalidades, que tomou conta da abordagem his

O RESSENTIMENTO "POSITIVO" DE UMA ESQUERDA FESTIVA E VIRA-LATA

ROGÉRIO SKYLAB ENTREVISTA O PARCEIRO MICHAEL SULLIVAN NO PROGRAMA APRESENTADO PELO PRIMEIRO, MATADOR DE PASSARINHO, DO CANAL BRASIL. Por Alexandre Figueiredo Estranha a esquerda que exerce o protagonismo nos governos de Lula. Uma esquerda não apenas de perfil identitário, o que já causa estranheza, por importar um culturalismo próprio do Partido Democrata, sigla da direita moderada dos EUA. É uma esquerda que prefere apoiar alguns valores conservadores do que outros, mais progressistas, mas vistos erroneamente como "ultrapassados". Trata-se de uma esquerda que, no ideário marxista, se identifica com o perfil pequeno-burguês. Uma "esquerda" de professores, artistas ricos, celebridades, socialites, jornalistas da grande mídia, carregados de um juízo de valor que destoa das causas esquerdistas originais, por estar mais voltado a uma visão hierárquica que vê no povo pobre um bando de idiotas pueris. Essa esquerda está distante do esquerdismo tradicional que, em outros t

OS TATARANETOS DA GERAÇÃO DA REPÚBLICA VELHA

Por Alexandre Figueiredo O que faz a elite que apoia incondicionalmente o governo Lula e obtém hábitos estranhos, que vão desde falar "dialetos" em portinglês - como na frase "Troquei o meu boy  pelo meu dog " - até jogar comida fora depois de comer cinco garfadas de um almoço farto, ser comparável às velhas elites escravocratas, fisiológicas e golpistas do passado, incluindo a "cultura do cabresto" das elites da República Velha? Apesar do verniz de modernidade, progressismo e alegria, a elite que obteve o protagonismo no cenário sociocultural comandado pelo atual mandato de Lula - que sacrificou seus antigos princípios de esquerda preferindo artifícios como a política externa e o fisiologismo político para obter vantagens pessoais - , trata-se da mesma sociedade conservadora que tenta se repaginar apenas expurgando os radicais bolsonaristas, hoje "bodes expiatórios" de tudo de ruim que aconteceu na História do Brasil. A mediocrização cultural, a