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VERBAS ILÍCITAS PARA SHOWS "SERTANEJOS" SÃO O PREÇO CARO DO "COMBATE AO PRECONCEITO"

MUITAS PESSOAS ACREDITAM QUE BASTA INVESTIR DINHEIRO EM ÍDOLOS POPULARESCOS, COMO MC CRÉU (E), PARA ELE SE TRANSFORMAR NUM MÚSICO RENOMADO COMO TOM JOBIM.

Por Alexandre Figueiredo

A crise causada pelos escândalos de desvios de dinheiro público e investimentos abusivos em eventos com ídolos "sertanejos", como Gusttavo Lima e Zé Neto & Cristiano, mostra uma crise que não pode ser vista somente pelo viés econômico. Precisa ser vista, também, sob o âmbito cultural, pois revela um mercado dominado pela mediocrização cultural que atingiu níveis insustentáveis e absolutistas, transformando o Brasil num país da bregalização, empurrando o que há de melhor na diversidade musical para "bolhas sociais" que mal conseguem se comunicar com a sociedade.

A polêmica começou quando Gusttavo Lima foi acusado de receber verbas de prefeituras de cidades do interior do país, que desviavam recursos para ações de interesse público para patrocinar o cantor em suas apresentações locais. São cidades atrasadas que, em vez de investir no desenvolvimento social e urbano, preferem promover um ídolo musical da moda. Outro incidente que provocou a crise foi Zé Neto que, acusado de ter o mesmo privilégio, tentou abafar criticando a cantora Anitta (hoje cliente do magnata do pop comercial mundial, Max Martin) por conta de uma taguagem íntima.

Fala-se agora na CPI do Sertanejo, depois que prefeituras de pequeno porte, em Estados como Bahia e Minas Gerais, desviaram dinheiro que seria para Educação, Saúde, Saneamento e combate à fome, para investir nas apresentações ao vivo de ídolos do chamado "sertanejo universitário", estilo que nada tem a ver com a boa cultura das universidades e que não passou de um mero rótulo para atrair jovens de maior poder aquisitivo e que estudavam em universidades particulares.

Isso abriu uma crise no "sertanejo", estilo que exerce uma supremacia incontrolável e desigual, pois, enquanto este estilo invadia cidades litorâneas e um público juvenil associado à vida urbana, a ponto de haver até um representante do gênero em Niterói, o cantor João Gabriel, nos seus lugares de origem o mercado dessa música era tão fechado que nomes da MPB e do Rock Brasil tinham que fazer duetos com ídolos "sertanejos" para poderem penetrar nesses locais. Vide nomes como o grupo carioca Biquíni Cavadão e a cantora Gal Costa, esta duetando com a falecida Marília Mendonça.

A crise é semelhante e no plano nacional à que sofreu a axé-music por volta de 2010, depois de cerca de duas décadas de supremacia absoluta, que obrigava grupos como Barão Vermelho e Skank a tocarem em Salvador como "bandas de abertura" dos grandes grupos carnavalescos, cujo mercado impedia a projeção de outras tendências musicais, que teriam que se projetar em outras capitais, como Belo Horizonte e, principalmente, São Paulo. Ex-integrante do Inkoma, a cantora Pitty passou a fazer carreira na capital paulista.

A axé-music, que tratava a alegria humana como "mercadoria", e cujas letras falavam mais em "beijar na boca", curtir festas e tomar cerveja, era acusada de exploração de músicos subalternos ou coadjuvantes, como no caso trágico do guitarrista Cacique Jonny, da banda Chiclete Com Banana, que apesar de ter sido um dos fundadores da banda, era tratado por Bell Marques, vocalista e baixista, como um músico de apoio e, mesmo assim, de forma humilhante. 

A atuação prepotente de Bell no Chiclete, que entre outras coisas não deu assistência à carreira de uma jovem cantora e, numa apresentação no interior da Bahia, chamou o povo baiano de "tabarel" (que quer dizer "matuto"), custou sua permanência na banda. Hoje o cantor segue carreira solo e sua banda, com outro vocalista.

Outras acusações, como o uso da pejotização - quando empregados atuam como "pessoas jurídicas" dentro de padrões de trabalho precário sem um patrão visível - para músicos de apoio, e denúncias de assédio moral de dançarinas do É O Tchan e de acusações de estupro de fãs de um grupo de "pagodão", o New Hit, também derrubaram a supremacia da axé-music, ritmo que chegou a penetrar no Sul do Brasil e hoje só consegue fazer sucesso entre jovens ricos da capital baiana.

Com a crise da axé-music, ritmos popularescos baianos como o arrocha e a pisadinha, para se projetarem nacionalmente, teriam que combinar com os mercados de "sertanejo" e "forró eletrônico" do interior do Brasil para estabelecerem parcerias em regime de franquia, sendo nacionalmente lançados fora do âmbito da música baiana.

ALGORITMOS

O "sertanejo universitário", que prometia ser uma versão modernizada do já caricato "sertanejo" - estilo popularesco dos anos 1980-1990 que deturpava a música caipira e foi consagrado por nomes como Chitãozinho & Xororó, Christian & Ralf, Zezé di Camargo & Luciano, Rick & Renner, Leandro & Leonardo etc - , com supostas influências de folk rock (citando nomes como REM e Neil Young e até adotando um som imitação de cítara num dos sucessos), atingiu seu auge de sucesso nos anos 2010.

O pretexto do "sertanejo universitário" já veio a partir do nome, pretensamente voltado a um público cultural, educacional e economicamente mais qualificado, e prometendo uma combinação entre as raízes da música caipira e inserções de rock e até de reggae. Nomes como Victor & Léo e um então adolescente Luan Santana (condição estranha para um músico "universitário") foram os primeiros ídolos dessa tendência.

Com o tempo, criou-se uma fórmula de "sertanejo universitário" que consistia em duplas masculinas cantarem como se estivessem faendo força e as mulheres cantarem letras de amor invocado, como o chamado "feminejo". Os temas nunca variavam entre noitadas, problemas amorosos, bebedeira e carrões, num cenário marcado pela alta mortalidade prematura de seus cantores, a partir de casos famosos como Cristiano Araújo em 2015 e Marília Mendonça em 2021.

O sucesso do "sertanejo universitário" foi montado por um esquema que incluiu grandes proprietários de terras que atuavam no segmento de forte apelo industrial que é o agronegócio. Em 2010, eu já descrevia o vínculo desse gênero ao agronegócio, quando isso era considerado tabu dentro da campanha de "combate ao preconceito" que um lobby de intelectuais desenvolveu para fortalecer o mercado da música popularesca.

O CANTOR GUSTTAVO LIMA, ENVOLVIDO EM ESCÂNDALOS DE VERBAS ILÍCITAS PARA SUAS APRESENTAÇÕES.

O crescimento da música popularesca aconteceu por diversas frentes, desde o resgate de antigos ídolos da música brega - como Michael Sullivan, que agora aposta no coitadismo para retomar o antigo sucesso, Odair José e Márcio Greyck, além de uma Gretchen transformada em uma influenciadora informal nas redes sociais - até novos nomes da Internet (no momento, um conjunto chamado Jovem Dionísio viraliza com a música "Acorda, Pedrinho").

Todavia, nada se compara com o exemplo local da axé-music na Bahia dos anos 1990 e 2000 e no "sertanejo universitário" no Brasil dos anos 2010, com subrótulos como "sofrência" e "urbanejo" acompanhando essa geração de cantores.

Ao longo do tempo,os cantores de "sertanejo universitário" demonstraram-se tão caricatos que a crítica especializada, de forma equivocada ou tendenciosa, classifica nomes como Chitãozinho & Xororó como "sertanejo de raiz", mesmo quando a dupla de Astorga, no interior do Paraná, seja responsável por boa parte das deturpações da música caipira que condicionaram a atual geração. Exemplo disso é "Cerveja", sucesso de Chitãozinho & Xororó que explora a mesma temática do "sertanejo universitário" que é alvo de queixas até de quem adora curtir uma cerveja de fim de semana.

O sucesso do "sertanejo universitário" envolve um esquema muito engenhoso que inclui não apenas o jabaculê das rádios FM - num contexto em que, nessas rádios, o futebol rende um jabaculê (esquema de propinas) muito maior e mais rentável que a música - , mas também o reduto de casas noturnas específicas (como a rede Villa Mix e as boates em Jurerê Internacional, praia de Florianópolis), as inserções milionárias em programas de televisão e nas redes sociais da Internet.

Até mesmo as temáticas de bebedeira, uso de Internet pelo celular e de posses em carrões esportivos ou utilitários soam como mershandising de produtos associados. Houve até uma canção da dupla Munhoz & Mariano, chamada "Camaro Amarelo", em alusão a uma famosa marca da Chevrolet.

Mas o que chama a atenção são os mecanismos de algoritmos que impulsionaram o "sertanejo" nas redes sociais. No YouTube, o feed de vídeos, quando o usuário não entra com sua conta individual, o que se nota na maioria dos vídeos recomendados é de intérpretes "sertanejos". E isso alimentado pelas coberturas de páginas da Internet dedicadas a "famosos" (em grande parte subcelebridades e ídolos musicais popularescos).

O pior não é isso, é quando os algoritmos acabam empurrando os "sertanejos" nas redes sociais de forma que atinja quem não se interessa pelo estilo. A dupla Simone & Simaria, por exemplo, invade o Instagram coma quantidade ilimitada de canais de fãs, mesmo quando o perfil envolve apenas uma das duas irmãs.

No Spotify, a coisa chega ao ponto da ação fraudulenta, quando internautas que curtem outros gêneros influem, involuntariamente, nas votações e nas visualizações de "sertanejos", mesmo sem dar uma única contribuição para isso. Até mesmo nas retrospectivas anuais de cada usuário, músicas de "sertanejo universitário" aparecem em destaque nas listas, por mais que o respectivo usuário seja alguém dedicado a outro estilo musical e passe longe do estilo dos "caubóis de boate". "Milagres" da manipulação dos algoritmos.

CUSTO DO "COMBATE AO PRECONCEITO"

A crise do "sertanejo universitário" se deu pela sorte de haver um contexto que tenha feito os seus ídolos perderem a blindagem de intelectuais pró-brega e da parcela da sociedade alinhados a um pretenso progressismo de caráter identitário. É o contexto do bolsonarismo, pelo qual Gusttavo Lima (cuja participação na XVI Festa da Banana em Teolândia, interior da Bahia, foi pivô da suspensão do evento),  tornou-se um de seus maiores apoiadores.

O escândalo das prefeituras apoiadoras do governo Bolsonaro criou uma discussão que desqualificou os apoiadores do atual presidente, que se queixavam das verbas da Lei Rouanet para ídolos musicais que, em tese, eram considerados "apoiadores do PT". Isso criou debates que envolviam a liberação de verbas públicas ou de impostos de entidades e empresas privadas para atividades culturais e que, em muitos casos, privilegiavam ídolos popularescos, como a cantora de axé-music Cláudia Leitte e o grupo popularesco carioca Tchakabum.

A discussão aparece polarizada, pois em que pese acusações de privilegiar a mediocridade musical, os conflitos dos dois lados, direita e esquerda, seguem motivações ideológicas, cada lado blindando o popularesco da sua trincheira ideológica.

Esquecem os dois polos ideológicos que o problema envolve uma questão bem maior, que é a do suposto "combate ao preconceito", promovido pela intelectualidade pró-brega a partir do empenho de Paulo César Araújo e Pedro Alexandre Sanches, respectivamente historiador da PUC-RJ e jornalista iniciado na Folha de São Paulo e, em caráter regional, nas campanhas porraloucas de Milton Moura e Roberto Albergaria (este falecido), na Bahia, e Eugênio Raggi, em Minas Gerais. Essa campanha é analisada no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes....

Combinando vitimismo com chantagem, a "campanha contra o preconceito" se apropriava da ideia de "preconceito" trazida pelos noticiários sobre o apartheid da África do Sul, e a palavra seria usada para definir, com fins levianos, a rejeição que a crítica especializada e setores da opinião pública expressava contra a chamada "música popular demais", a música brega-popularesca.

Embora os intelectuais - treinados por meios acadêmicos conservadores e infiltrados no culturalismo esquerdista - adotassem um tom provocativo pretensamente modernista e agissem em prol de um suposto reconhecimento cultural de toda a linhagem brega-popularesca, como uma "verdadeira cultura musical" atribuída ao povo pobre ou, então, às "periferias", o real objetivo dessa campanha "contra o preconceito" era criar novas reservas de mercado para a bregalização musical, alcançando demandas de maior poder aquisitivo e melhor formação sociocultural.

Esse "combate ao preconceito" já nascia preconceituoso, quando uma elite de acadêmicos, cineastas, artistas e jornalistas supostamente "cultos" e "sabedores da história musical brasileira" defendiam a bregalização que já mostrava uma leitura caricatural do povo pobre, mascarada por um etnocentrismo "bondoso" dos intelectuais, que preferiram ver os pobres rebolando do que protestando por melhorias sociais.

Isso fez crescer todo um imaginário popularesco que esvaziou os movimentos populares e abriu caminho para o golpe político contra Dilma Rousseff, em 2016, e para a eleição de Jair Bolsonaro e seu consequente governo nefasto.

Foi um preço muito caro a ser cobrado a quem, sob a desculpa do "fim do preconceito", defendia padrões culturais que depreciavam o povo pobre, sempre associado à mediocridade e à glamourização das mazelas que sofriam, como se pobreza não fosse um problema social, mas uma "identidade" e um "estilo de vida". Nada mais preconceituoso do que aceitar isso, mesmo sob a desculpa do "fim do preconceito".

Daí que, dos lamentos chorosos de Paulo César de Araújo devido ao "não-reconhecimento cultural" dos ídolos cafonas até o esquema de desvio de dinheiro público para favorecer ídolos "sertanejos", se desenvolveu um longo e engenhoso caminho, sempre prejudicial ao verdadeiro patrimônio musical brasileiro.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.

FONTES:

Portal G1, Blogue O Kylocyclo, Blogue Mingau de Aço, Blogue Linhaça Atômica, Carta Capital, Caros Amigos, Folha de São Paulo, O Globo, Diário do Centro do Mundo.

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