O CHAMADO VIRALATISMO CULTURAL, PARA MUITAS PESSOAS, SE LIMITA A FENÔMENOS COMO (DA ESQ. PARA A DIR.) A OPERAÇÃO LAVA JATO (NA FOTO, SÉRGIO MORO), AS MOTOCIATAS DE JAIR BOLSONARO E O JORNAL NACIONAL COM WILLIAM BONNER.
Por Alexandre Figueiredo
O viralatismo cultural ou o culturalismo conservador brasileiro são apenas parcialmente percebidos pelo senso comum dominante, regido por uma classe média que controla o senso comum dos brasileiros. É uma elite do atraso que varia, conforme o contexto atual, entre o bolsonarista mais histérico ao lulista mais deslumbrado, estando no meio do caminho os "isentões" a assinar em baixo em qualquer tendência.
O sociólogo Jessé Souza, por critérios que só ele sabe e tem o respeitável direito de saber, fez uma concepção limitada de "viralatismo cultural" ou "culturalismo conservador". Ele a fez visando seu próprio roteiro de abordagem, dentro de um cenário intelectual marcado por muita complacência - a popular "passagem de pano" - quanto aos fenômenos culturalistas socialmente nocivos mas que envolvem um poderoso lobby que penetra até em setores intelectuais de esquerda.
Por isso, Jessé Souza preferiu não mexer em vespeiro. Sua concepção de viralatismo cultural se limita a pontos básicos que têm menos a ver com cultura e mais com pedagogia, jornalismo, propaganda política. Não que ele quisesse por si só limitar esse conceito, mas é o que as circunstâncias e o contexto de sua abordagem permitiu que fosse feito.
Visto ao pé-da-letra, o viralatismo cultural se limita apenas a conceitos como educação familiar, relações hierárquicas entre empregadas domésticas e suas patroas, a propaganda política que investe na falácia do "patrimonialismo" que movimentaria a corrupção estatal e fenômenos que vão da hoje desqualificada Operação Lava Jato de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol e dos passeios de moto (motociatas) e jet-ski de Jair Bolsonaro, além da hidrofobia jornalística que tem no Jornal Nacional seu expoente mais caraterístico.
Entendendo assim, esquece-se de muita coisa que foi feita durante o período da ditadura militar, que desenvolveu um engenhoso culturalismo que sufocou, mesmo à margem do aparelho repressivo, o legado cultural popular dos tempos de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart, e os trabalhos da Teologia da Libertação, movimento católico progressista que havia se tornado a principal corrente de oposição sociopolítica à ditadura militar.
Infelizmente, as esquerdas sucumbiram ao culturalismo conservador, e isso o próprio Jessé Souza admite sem dar muitos detalhes. Mas quem imagina que essa adesão das esquerdas se deu apenas em posturas como uma sutil credulidade com a ação da Operação Lava Jato no combate à corrupção praticamente não viu um milésimo do problema real.
Esse culturalismo conservador envolve muita "coisa legal", muita coisa conservadora vista de forma ingênua como "valores positivos", apenas por um simples aspecto: esses valores não são carregados de uma retórica "raivosa", que eu já defino como o "idioma hidrofobês", sendo o seu discurso, pelo contrário, aparentemente positivo e que promete coisas "boas" como, em tese, alegrar o povo pobre ou promover a fraternidade e a paz entre os povos.
"BRINQUEDOS CULTURAIS"
Com a transição, nos últimos tempos relativamente pós-Covid 19 - quando as restrições sociais da pandemia, se não acabaram, foram drasticamente reduzidas - , do período de ódio golpista de 2013-2018 para a positividade tóxica de 2020 para cá, vemos crescer um imaginário conservador "positivo", que se contrapõe ao negativismo golpista que derrubou Dilma Rousseff e elegeu Jair Bolsonaro.
Notemos que, durante a crise do governo Dilma Rousseff até hoje, a elite do atraso, a classe média em seu conjunto, sempre agiu com "positividade", como se tudo estivesse bem. Fora os extremistas de um lado e outro, com o protagonismo dado à extrema-direita, das convulsões sociais - que envolvem até mesmo a famigerada onda de feminicídios e extermínio de negros, indígenas e mestiços em geral - aos conflitos de terras nas regiões rurais, tudo parece como se o Brasil fosse sucursal do Paraíso.
Neste sentido, temos um círculo de pessoas "de bem com a vida" que, da queda de Dilma até a recente reabilitação de Lula, sempre agiu como se "tudo estivesse bem", fossem quais as ocorrências infelizes ocorridas no Brasil, como os retrocessos do projeto político de Michel Temer e Jair Bolsonaro e tragédias como os incêndios no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, e na Amazônia e os desastres ambientais em Mariana e Brumadinho, ambos em Minas Gerais.
É a classe média, variante entre os suburbanos "remediados" e os "novos ricos", de um lado, e os famosos e pequenos empresários, de outro, que se dedica boa parte do seu tempo para as redes sociais e, portanto, compartilha do universo de ilusão e positividade tóxica que aplicativos como o Instagram, o Facebook e o WhatsApp mostram através da ação de maioria dos usuários.
Nas esquerdas brasileiras, costumo definir como "brinquedos culturais" todo um culturalismo conservador que, desprovido de alguma retórica agressiva ou de algum propósito abertamente elitista, que é acolhido sob o rótulo de "progressista", não como um universo externo que as esquerdas acolhem por qualidades afins, mas como se fosse algo "próprio" desse mesmo esquerdismo.
A ideia de "brinquedos" tem como base as fantasias idealizadas de setores das esquerdas que adotam um comportamento infantilizado e piegas, acolhendo tudo aquilo que representar "alegria" e "positividade", mesmo destoando de valores próprios do pensamento de esquerda.
É uma analogia à criança que recebe um brinquedo de presente do seu pai ou de sua mãe, comparada aqui com os esquerdistas que recebem "valores culturais" trazidos pelo ideário da direita moderada, por meio da grande mídia representada por veículos vistos por esquerdistas, como Folha de São Paulo, Rede Globo e SBT.
Trata-se de um imaginário baseado numa leitura de país que as chamadas esquerdas médias - parte dos movimentos progressistas formado por pessoas pequeno-burguesas que defendem valores convencionais associados à centro-direita - veem nas novelas das nove da Rede Globo de Televisão, sobretudo nos núcleos pobre e relativamente pobre.
Com base na ideia difundida pelos acadêmicos brasileiros desde os anos 1990, que acolheram a cultura de massa de maneira apologética e passaram a difundir a narrativa do "conteúdo social" das novelas de televisão, criou-se uma abordagem na qual as novelas "refletiam" a realidade brasileira. Dessa forma, setores das esquerdas passaram a pensar o Brasil como se fosse uma aplicação na vida real da abordagem idealizada dos enredos novelescos.
Dessa forma, estereótipos trazidos por personagens de novelas passaram a compor o imaginário do "culturalismo conservador de esquerda", marcado por narrativas mais "amistosas" e promessas de "fazer o pobre sorrir" e até "promover a paz mundial". Alguns desses estereótipos são:
1) A "periferia feliz" do mundo pobre dos enredos novelescos, usada como um "alívio cômico" para novelas que, no seu conjunto, são em maior parte dramáticas. É necessário observar o uso do povo pobre como recurso humorístico, sendo um artifício da grande mídia, a partir da Rede Globo, de defender a resignação da pobreza nas classes populares, a partir de um estereótipo dos pobres "felizes" que "resolvem tudo na vida" e "não dão espaço para a tristeza", simbolizado sobretudo por festas animadas pelos sons do "pagode romântico" e do "funk";
2) A "mocinha sensual" pobre, instrumento de valores meritocráticos da dramaturgia da Globo, aparece ora como a miserável arrivista que recorre a tudo para levar vantagem na vida, ou a "humilde garota da periferia", que, ao som de "funk", pretende alcançar o "reconhecimento social" e, assim, conquistar um "lugar nobre" na sociedade em que vive;
3) O jogador de futebol de origem humilde, mas fisicamente atraente e de boa aparência - diferente da aparência física pouco atrativa dos verdadeiros craques da bola - , e que também serve como um exemplo masculino de meritocracia trabalhado pela dramaturgia da Globo, como o "menino pobre" que "chegou lá", através de seus triunfos como artilheiro de um campeonato de futebol;
4) O "velhinho bonachão e generoso" dos núcleos menos pobres, vivendo ao lado de sua esposa também idosa numa casa simples, antiga e modesta, é outro estereótipo que serve para o enredo novelesco de maneira bastante sutil. Seria uma forma subliminar de valorizar a hierarquia moral de velhos conservadores, favorecendo a figura de um ídolo religioso, um "médium espírita", tido como suposto filantropo. Até porque o ator Nelson Xavier esteve associado aos dois personagens;
5) O "bom empresário" é o tipo mais recente de estereótipo acolhido pelas esquerdas dentro dos "brinquedos culturais" da direita moderada. Diferente do estereótipo do "mau empresário" (simbolizado por alguns personagens do ator José Mayer), que vive de sérias crises existenciais, o "bom empresário" (que o imaginário recorre à imagem do ator Antônio Fagundes) é um homem rico que age de forma gentil e paternal com o povo pobre. Atualmente esse estereótipo encontra relação com a imagem repaginada do ex-tucano Geraldo Alckmin, agora vice-presidente na chapa presidencial de Lula.
Esses exemplos refletem um viralatismo cultural, por conta do acolhimento de valores conservadores considerados "positivos" por uma parcela de classe média entre a direita moderada e o esquerdismo mainstream, mas também envolvendo setores "neutros" da sociedade brasileira.
Eles remetem a fenômenos associados a uma essência ideológica conservadora, mas comprometida com paradigmas que, em tese, evocam valores positivos como "alegria", "consolo", "paz", "fraternidade" e "caridade". São valores que não dispensam, no entanto, princípios de submissão social, como a obediência hierárquica e a fé religiosa, e estão mais próximas de um sentimentalismo emotivo conservador do que de algum realismo objetivo e naturalmente progressista.
MÚSICA BREGA-POPULARESCA
Valores como a religiosidade (inclusive os "bons católicos e evangélicos" e o Espiritismo brasileiro, religião a virar um "contraponto" ao aparato odioso das seitas evangélicas neopentecostais, como a Igreja Universal), a competitividade esportiva - que envolve valores de meritocracia que mascaram a desigualdade de perdedores e vencedores - e um hedonismo imprudente mostram o quanto o viralatismo cultural contamina as esquerdas, que acolhem qualquer coisa do imaginário da direita sociocultural que não apresentar um discurso abertamente raivoso.
Na música, o comercialismo explícito e atrasado da música brega-popularesca, sempre preocupada a imitar o pop comercial dos EUA de maneira tardia e sob uma mentalidade provinciana e anacrônica, também revela essa influência viralatista nas esquerdas, embora não somente nelas.
A música brega-popularesca, que vai desde os primeiros ídolos cafonas, como Waldick Soriano e Odair José, passando por outros como Paulo Sérgio, Benito di Paula e outros, e vai até os fenômenos contemporâneos como a "pisadinha" e o "sertanejo de sofrência" (novo nome do "sertanejo universitário"), sem falar do famigerado "funk", reflete esse viralatismo que, sendo desprovido de discurso hidrófobo, torna seu lado negativo invisível aos olhos das mentes progressistas comuns.
Fazendo parte de uma classe média que adota uma postura paternalista em relação ao povo pobre e vê a "periferia" de forma idealizada, como um "paraíso distante" esteticamente "caótico", as esquerdas, ao acolherem a música brega-popularesca e todo um sistema de valores culturais associados, mostra o seu caráter elitista mascarado por uma postura supostamente "mais generosa" com o povo pobre, escondendo o caráter de culturalismo conservador sob o tapete de seus lares confortáveis.
Isso se deu a partir de uma campanha de "combate ao preconceito" trazida em larga escala a partir de 2002 - embora haja precedentes como a atuação do acadêmico baiano Milton Moura em blindar o "pagodão" de É O Tchan e derivados, já em 1996 - , difundida por vários intelectuais, entre acadêmicos, jornalistas e cineastas, que passaram a pregar a "glorificação do oprimido" ao definir como "positivos" aspectos negativos encarados como "males necessários" para a sobrevivência econômica do povo pobre.
Dessa forma, se defendeu o "ufanismo das favelas", quebrando com uma abordagem sociológica séria difundida há décadas: a de que as favelas são construções precárias que expressam um problema de exclusão habitacional das classes populares, marginalizadas pela expansão urbana das cidades e expulsas das regiões centrais e dos bairros nobres devido à incapacidade de obter uma moradia digna devido às conhecidas limitações não só socioeconômicas mas também devido ao racismo estrutural, que quase sempre traz prejuízos sociais a povos de origem negra, índia ou mestiça.
Com isso, as favelas deixaram de serem vistas como "problemas" e passaram a ser "paisagens de consumo", como supostas "arquiteturas pós-modernas". Com isso, o discurso da "pobreza linda", princípio maior da campanha "contra o preconceito", também se serviu de outras simbologias, como mitificar a prostituição (agora um "coletivo de mulheres empoderadas"), o comércio clandestino (forma "criativa" de emprego), o alcoolismo (o álcool como "amigo" para consolar o homem pobre das frustrações profissionais e amorosas), entre outros fenômenos.
A música brega-popularesca, a partir dos pioneiros ídolos cafonas, é tratada como um fenômeno meritocrático, sem mencionar esse termo. As elites de classe média definem esse culturalismo como "a verdadeira cultura popular", uma tese extremamente discutível, uma vez que, por trás desses fenômenos "populares demais", existe uma poderosa e multimilionária estrutura empresarial de entretenimento que envolve o respaldo da mídia oligárquica nacional (incluindo Rede Globo e Folha de São Paulo, por exemplo) e regional (FMs popularescas), além de empresas multinacionais e até políticos de direita.
Os ídolos cafonas pioneiros, como os bregas que fizeram muito sucesso nos anos 1970, são erroneamente definidos como "vanguarda" pela visão solipsista de intelectuais burgueses paulistas que só conheceram esses ídolos tardiamente, nos anos 1980. Trata-se de uma visão claramente etnocêntrica, um juízo de valor que até produziu um consenso entre a classe média que domina as narrativas oficiais de compreensão sociocultural de nosso país, mas que não encontram coerência lógica.
A música cafona, como vimos neste blogue, se vale pela assimilação tardia de modismos estrangeiros que se tornaram obsoletos. Waldick Soriano, por exemplo, passou a fazer arremedos de boleros e serestas que não faziam mais sentido no tempo em que o cantor fez sucesso nas rádios brasileiras.
Essa assimilação era feita dentro de uma mentalidade provinciana, basicamente rural ou suburbana, que não percebia as nuances de contemporaneidade que seriam próprias de uma antropofagia cultural, conceito do modernista Oswald de Andrade ao qual os bregas são erroneamente associados pela intelectualidade pró-brega - a intelectualidade "bacana" - , que ignora que a bregalização cultural ocorre sob influência do poder midiático-mercadológico dominante, diferente do que seria uma verdadeira antropofagia cultural.
Aliás, a bregalização musical reflete muito bem esse viralatismo cultural que a classe média brasileira, que simboliza a "boa sociedade" que toma as rédeas da chamada opinião pública e fabrica um padrão determinado de consensos e valores, esconde debaixo do tapete.
A "boa sociedade" quer que o viralatismo cultural se limita apenas às formas hidrófobas de pregação ideológica, restritas ao Jornalismo, à Política, à Propaganda e à Educação, enquanto oculta fenômenos como a música brega-popularesca e religiões como o Espiritismo brasileiro, mesmo comprometidas com o modo conservador de tratar o povo pobre, dentro da defesa da inferioridade social denunciada por Jessé Souza no livro Como o Racismo Criou o Brasil.
Em outras palavras, a "boa sociedade" da classe média dominante, incluindo setores de esquerda, só vê o viralatismo cultural ou o culturalismo conservador dentro dos limites do aparato discursivo em que envolve raiva e intolerância social explícita.
Se envolve um discurso mais simpático e uma simbologia assistencialista e tolerante, até mesmo as esquerdas acolhem, de maneira cega e acrítica, os valores viralatistas, por mais que, dentro do aparato das promessas de "fazer o povo pobre sorrir" e "promover a paz e a fraternidade", esportistas, "espíritas", brega-popularescos e similares apresentem algum valor conservador vinculado a ideais meritocráticos e a princípios contrários à rupturas profundas do sistema de luta de classes e de desigualdades sociais.
Desse modo, qualquer conservador que fale macio e passe a mão na cabeça do povo pobre vira "progressista", mesmo que se empenhe em somente aliviar a dor dos pobres sem oferecer a cura definitiva da pobreza, e sem comprometer os privilégios abusivos dos mais ricos, não somente os econômicos, mas os simbólicos e culturais.
E assim nossas esquerdas infantilizadas permanecem jogando seus "brinquedos culturais" sob o sono tranquilo dos conservadores da direita moderada que, através da chapa presidencial de Lula e Geraldo Alckmin, têm as forças progressistas nos bolsos de suas calças neoliberais. Tudo para o bem de um viralatismo cultural "mais positivo" e cujo lado negativo é mantido invisível para os olhos da opinião pública dominante.
FONTES: Carta Capital, Caros Amigos, O Globo, Folha de São Paulo, Blogue Mingeu de Aço, Blogue Linhaça Atômica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.
SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira ou Como o País se Deixa Manipular pela Elite. São Paulo, Leya, 2015.
SOUZA, Jessé. Como o Racismo Criou o Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2021.
Comentários