Por Alexandre Figueiredo
A cultura brasileira sempre existiu. Mas seu reconhecimento oficial se deu a partir de um evento artístico que, em que pese ser organizado pela classe média artística e patrocinado pelas elites empresariais, sobretudo cafeeiras, de São Paulo, foi crucial na valorização do patrimônio cultural diversificado do povo brasileiro.
Entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, aconteceu, no Teatro Municipal de São Paulo, situado no Centro histórico, na altura da Praça Ramos de Azevedo, nome que se refere ao engenheiro que elaborou o edifício, a Semana de Arte Moderna. Era um dos vários eventos que, no Brasil, aconteceram para celebrar, na época, o Centenário da Independência do Brasil. Ou seja, se hoje celebramos 100 anos de Modernismo, celebraremos os 200 anos da Independência do nosso país do jugo oficial de Portugal.
Vários nomes participaram do evento: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Ronald de Carvalho, Anita Malfatti, Manuel Bandeira, Victor Brecheret, Di Cavalcanti, Heitor Villa-Lobos, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet e os depois militantes do movimento integralista (primeira manifestação política de extrema-direita no Brasil), Menotti del Picchia e Plínio Salgado (que encerrou a vida como um político da ARENA, o partido da ditadura militar). Integrante do Modernismo, a artista plástica Tarsila do Amaral não foi para a Semana porque estava doente.
A Semana de 1922 quebrou mil protocolos. Ainda que seus participantes fossem pessoas adultas, o clima lembrava o de uma algazarra universitária, o que chocou a sociedade da época, com as inúmeras ousadias que haviam ocorrido no evento.
A própria quebra da visão eurocêntrica que existia nas elites culturais até então era um detalhe a ser considerado, assim como as provocações, como Ronald de Carvalho lendo o poema "Os Sapos", de Manuel Bandeira, uma crítica ao então inatacável movimento parnasiano literário e a arte expressionista de Anita Malfatti, duramente atacada por um artigo de Monteiro Lobato, o famoso escritor de O Sítio do Picapau Amarelo, em O Estado de São Paulo, que, pela repercussão das críticas, fez a artista plástica receber solidariedade e daí o Modernismo se projetar como um movimento em ascensão.
Havia vaias, aplausos, gritos. A arte divulgada era arejada demais para os padrões da época. Tendências como o futurismo de Filippo Tomazzo Marinetti, o dadaísmo, o cubismo e o expressionismo eram lançadas no Brasil. O evento causou muita polêmica, mas depois passou a ser aceito pelo seu legado transformador e pelo impacto que causou na cultura brasileira.
Por ironia, um dos que ajudaram na organização do evento foi o escritor maranhense José Pereira de Graça Aranha, ou simplesmente Graça Aranha, que era um escritor pré-modernista, que em 1902 havia se tornado conhecido com a narrativa de cunho nacionalista de sua principal obra, o romance Canaã.
Seu legado se iniciou quando seus membros passaram a atuar na imprensa literária ou em órgãos culturais de instituições governamentais. Mário de Andrade, por exemplo, foi idealizador de uma instituição voltada à preservação do patrimônio cultural brasileiro, com uma visão ampla e arrojada que só muito mais tarde foi devidamente entendida.
Essa instituição, inicialmente o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), hoje Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), teria, no projeto original de Mário de Andrade, uma arrojada cobertura de bens culturais, não apenas os bens móveis e imóveis, mas também os bens imateriais, voltados à culinárias, rituais, brincadeiras infantis e outros valores sociais simbólicos dos mais diversos povos viventes no Brasil.
No entanto, as restrições políticas, no caso o Estado Novo instituído em 1937, e as restrições econômicas, fizeram com que o SPHAN surgisse com atuação limitada, sem a amplitude sonhada pelo autor de Macunaíma. Presidido pelo amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade (sem parentesco com o modernista), o SPHAN (que passou por diversos nomes até virar o atual IPHAN) somente em 2000 acolheu o patrimônio imaterial, através de regulamentação legal.
Mário de Andrade realizou pesquisas musicais. Foi autor de Pequena História da Música Popular Brasileira. Excursionava pelo país gravando uma série de manifestações musicais e realizava pesquisas também de outras modalidades culturais. Teve que interromper esse trabalho devido às restrições políticas do Estado Novo de Getúlio Vargas e, além disso, o escritor e um dos líderes modernistas teve morte prematura, em 1945, com 52 anos incompletos.
Os dois principais pensadores do Modernismo, quanto aos parâmetros da cultura brasileira, foram Mário e Oswald de Andrade, também sem parentescos entre si. Enquanto Mário de Andrade se preocupava com o patrimônio cultural brasileiro acumulado por séculos, construindo a memória cultural nacional, Oswald de Andrade se preocupava com a influência estrangeira e a forma com que o Brasil assimilava, adaptava e transformava cada fenômeno cultural forasteiro.
Era a Antropofagia Cultural, que, com base no mito religioso da antiga antropofagia indígena - que, ao praticar canibalismo comendo os restos mortais de um inimigo morto por um ataque, acreditava-se absorver os poderes e a vitalidade da vítima - , lançou a tese de que, ao assimilar um fenômeno cultural estrangeiro, havia a possibilidade de adaptá-lo e enriquecê-lo conforme as perspectivas culturais locais, desenvolvendo na adaptação de uma cultura estrangeira expressões propriamente regionais.
Em seguida, o legado modernista se deu a partir de uma geração posterior que era influenciada pelas primeiras revistas de divulgação do Modernismo, como Klaxon, que durou apenas um ano, entre 1922 e 1923, Terra Roxa e Outras Terras, que durou de 20 de janeiro a 17 de setembro de 1926, e A Cigarra, mais tarde adquirida pelos Diários Associados e alterado sua linha editorial para enfatizar moda, turismo e assuntos culturais em geral.
Publicações como A Revista, de 1925, que revelou os talentos de Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, a Revista de Antropofagia (1928-1929), que tinha muitos colaboradores da antiga Klaxon, e a revista Festa, que teve duração efêmera, porém mais longa, entre 1927 e 1935, que revelou os escritores Murilo Mendes e Cecília Meirelle e que teve Di Cavalcanti como um dos principais ilustradores.
Ao longo dos anos 1940, escritores diversos, como Fernando Sabino, Rachel de Queiroz, Paulo Mendes Campos, a ucraniana naturalizada brasileira Clarice Lispector, entre tantos outros, influenciaram na transformação do imaginário literário brasileiro, através de prosas ou poesias informais, que pareciam "conversar" com os leitores, através de temáticas voltadas ao cotidiano. Era o legado modernista reciclado pela chamada Geração de 1945, que arejou a literatura brasileira no começo do pós-guerra.
Outras expressões herdeiras do Modernismo vieram. A poesia concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e de Ferreira Gullar, este envolvido com o projeto do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (1961-1964), esta herdeira dos debates culturais que Mário de Andrade havia lançado em seu tempo.
Temos o exemplo antropofágico da Bossa Nova (1957-1964) que, em que pese a acusação enérgica do crítico musical José Ramos Tinhorão de ser um "subproduto do jazz americano", conseguia assimilar as influências estrangeiras não só do jazz mas também da canção standard estadunidense, desenvolvendo uma linguagem própria dentro do contexto específico da juventude urbana da Zona Sul do Rio de Janeiro, então se despedindo da condição de capital federal.
Lembremos que standard é o que se deve denominar a canção dos filmes da fase áurea de Hollywood, da qual Frank Sinatra foi o maior expoente. Embora tivesse elementos de jazz, não pode ser confundido com o gênero. Na verdade, o standard era uma combinação entre o Dixieland, o jazz comportado da burguesia branca dos EUA, e a canção das peças da Broadway, predominantemente românticas e com orquestração que incluía metais e cordas.
Em seguida, tivemos o movimento da Tropicália (1967-1969), que recicla o Modernismo acolhendo as novidades da Contracultura da década de 1960, como o Living Theatre de Nova York e a psicodelia pós-Beatles. Os baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil foram os principais líderes, com o respaldo dos conterrâneos Gal Costa, José Carlos Capinam, Tom Zé e Maria Bethânia (irmã de Caetano), além da carioca Nara Leão, do pernambucano Torquato Neto e do grupo paulista Mutantes (Rita Lee e os irmãos Arnaldo e Sérgio Dias Baptista), além do maestro concretista Rogério Duprat.
Uma curiosidade é que Rogério Duprat foi produtor do programa de música erudita da TV Excelsior, entre 1960 e 1961, chamado Música e Imagem. Estudioso do concretismo da música erudita, foi aluno, na Alemanha, do maestro e compositor Karlheinz Stockhausen, estudando na mesma turma que o futuro músico Frank Zappa.
Em seguida, o movimento Lira Paulistana, nos anos 1970 e 1980, foi uma das mais atuantes heranças do Modernismo, comandada por Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, ambos influenciados por Zappa. Junto a eles, outros artistas como Vânia Bastos e Grupo Rumo também representaram a renovação musical de São Paulo, se apresentando no clube chamado Lira Paulistana, nome de uma antologia poética de Mário de Andrade.
Mais recentemente, o movimento Mangue Beat, comandado por Chico Science e Fred Zero Quatro, respectivamente da Nação Zumbi e do Mundo Livre S/A, lançaram o manifesto Caranguejos com Cérebro, em 1992, tendo sido o primeiro movimento a enfrentar a hegemonia popularesca do começo dos anos 1990, combinando tradições culturais pernambucanas, como o maracatu, o coco e o frevo, com influências do rock pesado e do hip hop, em mais uma aventura culturalmente antropofágica.
Depois disso, não houve um grande movimento cultural que herdasse em grande escala o legado modernista. Em vez disso, mesmo o seu legado se diluiu. Hoje os fenômenos popularescos se servem apenas do único aspecto remanescente do Modernismo: a vaia e a controvérsia por parte da crítica - que não atua mais na imprensa, mas na Internet - , mas a serviço de subcelebridades e artistas medíocres, representantes de um esquema mercadológico e midiático que, do contrário que certas elites intelectuais insistem em afirmar, não têm compromisso real com o desenvolvimento de valores culturais.
Até mesmo na literatura o legado da geração de 1945 se banalizou, quando as obras literárias que mais repercutem e vendem são pastiches da crônica e poética de Carlos Drummond de Andrade e da prosa de Clarice Lispector, mas sem o brilhantismo e o vigor dos autores originais. Hoje o que se vê é uma violenta acomodação cultural dos brasileiros, presos a zonas de conforto de uma mediocridade artístico-cultural que prevalece porque influi nos lucros dos investidores envolvidos e não ameaça o sistema de valores desigual mas organizado dos temas de hoje.
Num período de fragilidade cultural do Brasil, essa trágica situação que não é admitida de forma alguma pelo senso comum - no máximo, surgem "isentões" da imprensa ou mesmo dos comentários da Internet, que "admitem defeitos" na sociedade atual, mas preferem "passar pano" em cima - , a dúvida é se o legado do Modernismo fracassou no Brasil.
Consideremos, a nosso ver, que não. O que existe é uma grande acomodação social, através da ilusão de uma movimentação social e uma intensa produtividade das redes sociais. É uma ilusão que, só por haver uma grande quantidade de gente se expressando na Internet, o Brasil seja visto por setores influentes da chamada opinião pública como "culturalmente próspero".
Mesmo as chamadas "manifestações das periferias" ainda refletem uma mediocridade, oferecendo apenas "um pouco mais" além da costumeira precarização cultural das expressões popularescas. Dessa maneira, cenários como o hip hop brasileiro apenas acrescentam de leve alguma expressão artística, explorando temáticas sociais relevantes, mas longe de representar a recuperação das expressões musicais de quando a MPB autêntica comandava o mainstream brasileiro.
Na literatura, no teatro e no cinema, a situação é semelhante, com alguma relativa fertilidade artística, mas dentro de um contexto em que pouca coisa consegue furar o cerco da mediocridade e da precarização culturais, principalmente quando os fenômenos popularescos e eminentemente comerciais - cujos exemplos mais recentes, na música, são o "sertanejo", a pisadinha e o "funk" e, no entretenimento, o Big Brother Brasil - se tornaram hegemônicos através de uma campanha tendenciosa de "combate ao preconceito" (ver Esses Intelectuais Pertinentes...).
Portanto, é só uma questão de tempo para que se veja alguma luz no fim do túnel das trevas culturais do Brasil. A superação de uma narrativa dominante, que glorifica a precarização cultural mediante um habilidoso repertório de desculpas - como a própria popularidade e o suposto vínculo com o cotidiano vivido pelo público - , através de novas posições críticas a contestar sem medo valores estabelecidos, pode representar um debate que, realmente, possa recuperar o culturalismo brilhante perdido há mais de 30 anos.
Dessa maneira, um novo debate, menos "isento" no sentido das "passagens de pano" atuais e mais contundente em botar em xeque a validade de modismos consagrados, pode, ao lado da projeção de excluídos culturais de hoje (toda a sociedade que vai na contramão da precarização cultural, independente de serem pessoas pobres ou de classe média não-medíocre), que poderão recuperar o legado modernista que hoje anda tão esquecido ou, quando muito, deturpado. Esperemos uma nova geração com coragem para contestar e rejeitar a mediocrização e precarização cultural de hoje.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.
FONTES: Isto É, Folha de São Paulo, Blogue Linhaça Atômica, Blogue Mingau de Aço.
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