Pular para o conteúdo principal

CLASSE MÉDIA BRASILEIRA É VELHA E PROVINCIANA

A CLASSE MÉDIA BRASILEIRA VIVE FORA DA REALIDADE E DENTRO DA FANTASIA CONSUMISTA DE PRODUTOS E EMOÇÕES.

Por Alexandre Figueiredo

Mesmo com um quadro de tragédias e distopias trazidos pelo golpe político de 2016, existe uma parcela da sociedade brasileira que insiste em ser feliz. Não se trata de um espírito de perseverança ou de algum otimismo que resiste às dificuldades, mas da chamada positividade tóxica, uma alegria forçada e ilusória que não tolera os problemas alheios ou, quando os admite, não dá o devido valor.

Trata-se da classe média brasileira, antiquada, ignorante, provinciana mas narcisista e arrogante o suficiente para se julgar dona do mundo e se impor como a "sociedade imperfeita, mas ideal (?!) do planeta". Tomada pela Síndrome de Dunning-Kruger - fenômeno no qual pessoas ignorantes se acham mais sábias do que aqueles que realmente sabem das coisas - , a classe média brasileira é atrasada e culturalmente precarizada, mas se julga "contemporânea" e "antenada com o mundo".

Lembremos que estamos falando da maioria da classe média, aquela que atua como formadora de opinião e produtora de bom senso. Uma classe média que é anacrônica, atrasada, precariamente informada das coisas e mais preocupada com seus privilégios pessoais e suas emoções do que com a realidade em volta. Não falamos de uma parte da classe média que destoa desses valores e que talvez não mereça participar dessa categoria movida a hedonismo vazio. Seria sugestivo definir a "boa" classe média, informalmente, como "classe mediana", e a "má" classe média, como "classe medíocre".

Essa classe média se baseia nos critérios do sociólogo Jessé Souza. O que significa que, ao mesmo tempo que não se trata daquela "classe média" sofrida do imaginário trabalhista dos anos 1970, também não é a extrema burguesia fechada em mansões, apartamentos de luxo e edifícios empresariais.

A classe média, com base nas ideias de Souza, é aquela sociedade influente no imaginário do chamado senso comum e com um poder aquisitivo bastante considerável. Ela pode variar dos antigos pobres "emancipados", com dinheiro para fazer festas na laje todo fim de semana e comprar engradados de cerveja, TV de plasma e bons carros semi-novos, até os famosos muito ricos mas que não têm o poder político decisório do empresariado propriamente dito.

Seu culturalismo envolve, no âmbito musical, desde o acolhimento de ritmos popularescos - como a "sofrência sertaneja", a pisadinha, o "funk" e o ultracomercialismo brasileiro de nomes como Anitta e Pabblo Vittar - , a vassalagem musical estrangeira - ou seja, supervalorizam o pop comercial de sucesso nos EUA, sobretudo o mais antigo - e o superficialismo na apreciação da MPB e do rock, limitada apenas aos intérpretes e músicas mais manjadas.

Fora da música, nota-se o apreço a uma literatura mais "analgésica", não necessariamente com o compromisso de obter Conhecimento, com exceção de obras exigidas pelo ENEM e por concursos públicos ou pela visibilidade de autores veteranos, de Jane Austen a Fernando Morais, de Clarice Lispector a George Orwell. No entretenimento geral, há o apreço a programas de comédia do SBT, ao policialesco da Record e Band, e sobretudo ao reality show Big Brother Brasil, da Rede Globo.

A classe média usufrui tudo isso se achando "vanguardista" e "diferenciada". Com certo exagero, seus públicos diversos se autoproclamam "alternativos" e "antenados", apesar da submissão extrema ao que é comercial e convencional. Fala-se até em "liberdade", mas da forma como é feita ela é praticamente uma franquia de veículos midiáticos como Rede Globo, Folha de São Paulo, Record, SBT, Rede TV! e Rádio Jovem Pan.

Sem se resolver entre a modernidade e o tradicionalismo, a classe média brasileira descobriu, de modo tardio e superficial, a Contracultura de 1965-1970, pelo menos nos clichês do hedonismo identitarista e da indumentária hippie ou black power, sem no entanto seguir a trilha sonora psicodélica ou o engajamento político vigoroso. Em vez disso, o máximo que conseguem ouvir é a MPB comportada de nomes como Anavitória, Melim, Tiago Iorc, Vítor Kley e outros, enquanto os protestos populares se reduziram às micaretas fracassadas do "Comitê Movimento Fora Bolsonaro".

Religiosamente, consomem um engodo de valores que, entre outras contradições, apela para as pessoas valorizarem a sua autoestima e, todavia, pregam o "combate ao inimigo de si mesmo". Variando entre neopentecostais e evangélicos e católicos tradicionalistas, além do conservadorismo enrustido do Espiritismo brasileiro, a classe média pedante desenha um confuso repertório de "Conhecimento transcendental" misturando cranças medievais com clichês da Física, Psicologia, práticas esotéricas e misticismo chinês e indiano.

No plano ideológico, a classe média brasileira varia entre o bolsonarismo orgânico que, no momento, vive o luto da perda do seu ideólogo Olavo de Carvalho, e o esquerdismo infantilizado que, atualmente, sonha com profundo sentimentalismo a vitória política de Luís Inácio Lula da Silva. Entre uns e outros, há também os neoliberais orgânicos da direita moderada.

NETOS DO "MILAGRE BRASILEIRO"

Midiatizada e mercantilizada, a classe média brasileira de hoje é atrasada culturalmente e bastante submissa nos valores. Seus membros costumam ser beatos religiosos ou então fanáticos por futebol e cerveja, se apegam a modismos que juram serem "eternos" e são voltados à Espiral do Silêncio, smpre aderindo ao que está em evidência na mídia.

Essa elite do atraso chega mesmo a ver contemporaneidade onde não existe. Em 2004, por exemplo, os jovens de classe média "descobriram" a música eletrônica e as raves - definidas pela constrangedora expressão "balada", patenteada pela Jovem Pan - que, no exterior, já haviam sido moda em 1988-1992 e que no mesmo ano em que virou moda no Brasil já era "coisa do passado" no Reino Unido. Da mesma forma, esses jovens também "descobriram" o hip hop que, no entanto, vivia uma crise nos EUA, bem distante do vigor original dos tempos de Sugarhill Gang, Grandmaster Flash e Public Enemy.

A classe média brasileira de hoje é "filha" do neoliberalismo da Era FHC. É, portanto, "neta" do "milagre brasileiro" da Era Médici. Os ancestrais teriam sido elites do engenho que comandavam o trabalho escravo e tinham influência na política do Brasil colonial.

Em certos casos, até parece que a classe média "ilustrada" e "moderna" de hoje vive no século XVII, quando, em seu discurso em prol da bregalização cultural - a tal campanha do "combate ao preconceito" de 2002-2014 - , trata as favelas brasileira de maneira pseudo-etnográfica, ora definidas como atualizações das ocas indígenas, ora como supostos quilombos pós-modernos.

Dessa linhagem, há a marca comum, mantida ao longo dos tempos mas adaptada às variações de contexto, de um culturalismo superficial, elitista e subordinado à supremacia dos países mais desenvolvidos. A partir dessa ideia, a classe média vive fora da realidade e dentro da fantasia consumista de produtos e emoções. Para ela, distopia é coisa de obras de ficção da Coreia do Sul ou da Polônia.

Mais voltada ao consumismo do que à cidadania, a classe média passou todo o período dos governos de Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022) na recreação digital das redes sociais, produzindo um "mundo cor de rosa" através de um otimismo ilusório e uma prosperidade egocêntrica e solipsista, que ignorava ou subestimava as tragédias ocorridas de 2015 até agora.

A classe média, desprezando as tradições culturais - para elas, pouco importa se o antigo e valioso acervo cultural se desfaça em incêndios (como nas sedes das emissoras de TV no passado e, recentemente, no Museu Nacional do Rio de Janeiro) ou nas mortes prematuras de vários artistas (do escritor Mário de Andrade até músicos como Nara Leão, Elis Regina, Chico Science e Vander Lee) - , se ilude em viver "o momento presente" em completo desprezo com a realidade dura do país.

Para elas, pouco importam as tragédias ambientais de Mariana e Brumadinho, as enchentes na Bahia e em Minas Gerais, as convulsões sociais cotidianas, as perdas de acervos culturais valiosos, porque, para elas, o que vale é o "mundo de paz e alegria" em que vivem, na ilusão de que uma esperança imaginária pode melhorar, por si, a realidade.

A classe média é dotada de certos equívocos movidos pela ignorância. Ela é capaz de consumir a literatura fake do Espiritismo brasileiro - que publica obras "medíunicas" que sempre entram em conflito com algum aspecto pessoal do suposto autor espiritual - , assim como de confundir "divulgar" com "publicar" obras literárias.

Neste caso, cabe explicarmos a diferença entre "publicar" e "divulgar": publicar é quando o escritor transforma um arquivo pessoal de seu livro numa obra publicada de forma independente num serviço de publicação de livros na Internet. Divulgar é outra coisa, que é recorrer a páginas sobre assuntos literários, de comunidades nas redes sociais a editorias na imprensa, e notificar as pessoas da existência de um livro já publicado.

Mas a confusão já fez outros estragos, como as esquerdas identitárias acharem possível um "feminismo de mulher-objeto", no qual mulheres exageradamente erotizadas "mostravam demais" seus corpos siliconados, representando uma imagem machista da mulher sexualizada, mas promovendo essa imagem como falso feminismo, supostamente para "dominar" o público masculino. 

Outro equívoco é essas mulheres acharem que as redes sociais são como o espelho do armário de casa, se esquecendo da diferença entre o público e o privado, com as mulheres-objetos se "mostrando demais" sob a desculpa da "liberdade do corpo", pensando que estão se exibindo para si mesmas, quando elas se expõem para o público machista que se sente empoderado diante da adoração a essas "musas".

O desprezo aos problemas e a indignação seletiva fazem com que a classe média brasileira nem esteja aí com qualidade de vida. Em Niterói, há o aberrante desprezo das elites à mobilidade urbana, tanto pelo consentimento com pseudo-praças como parklets, que vendem a falsa imagem de "praças públicas" para atenderem a interesses privados de comerciantes locais, enquanto suas instalações, colocadas em plenas ruas, atrapalham os estacionamentos de carros e o trânsito de veículos.

Também em Niterói há o silêncio absoluto quanto ao gravíssimo problema de dois bairros, Rio do Ouro e Várzea das Moças, não terem uma avenida própria de ligação, dependendo de uma rodovia estadual (a RJ-106) para se comunicarem, o que atrapalha o tráfego de quem vai e vem, por longas distâncias, de cidades da Região dos Lagos como Cabo Frio e Macaé, com danos que afetam até a economia desses lugares.

Outros exemplos são o fanatismo cego pelo futebol, a beatitude religiosa que cairia bem em igrejas e templos mas que invade os ambientes laicos das redes sociais, não raro atrapalhando o lazer de quem usa a Internet para se distrair. 

O fanatismo pelo futebol, no Rio de Janeiro, chega ao ponto de os cariocas e fluminenses manifestarem violenta intolerância social contra quem não curte futebol, a ponto de influir em práticas de valentonismo (bullying) e assédio moral nos ambientes de trabalho, pondo o risco de demissão àquele que não compartilhar desse fanatismo esportivo.

Na religião, o lazer virtual do público comum é bombardeado por mensagens de "motivação" e "aconselhamento religioso", muitos dotados de estética atraente e positividade tóxica, forçadamente jogados pelos algoritmos para forçar o proselitismo religioso de quem usa as redes sociais para um lazer descompromissado ou para a obtenção de Conhecimento e aprendizado. Não raro se impõe o culto à personalidade de figuras religiosas falsamente promovidas como "sábios", através de frases pedantes ou de recados moralistas bastante conservadores.

Há também a "carteirada por baixo" da classe média cujo princípio cultural maior é a mediocridade (conceito praticado, mas não assumido no discurso). Há um orgulho de dizer que "todos erram", "todos são imperfeitos", e a suposta simplicidade humana e a pretensa liberdade são medidas pelas piores qualidades: a embriaguez, a ignorância, as gafes, as encrencas criadas pelo temperamento impulsivo e o juízo de valor religioso.

Estes são os principais aspectos de uma classe média brasileira, que é velha, provinciana, decadente e atrasada, mas que quer se impor ao mundo, como é de praxe em todo portador da Síndrome de Dunning-Kruger.

Pouco importando se, em 2018, o que prevaleceu foi a defesa do "soldado da moral" Jair Bolsonaro e, em 2022, a defesa do "cavaleiro da esperança" de Lula, a classe média vive nas suas fantasias isolacionistas, regidas pelo "Tribunal do Umbigo" que faz com que somente seus egos sejam considerados como a palavra final do que deve ser o mundo e a realidade. A ignorância bairrista da classe média brasileira teima em se impor acima da sabedoria e experiência do resto do mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.

SODRÉ, Muniz. A Sociedade Incivil. Mídia, iliberalismo e finanças. 1. ed. Petrópolis, Vozes, 2021.

SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro, Leya, 2017.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

IPHAN TOMBA CENTRO HISTÓRICO DE JOÃO PESSOA

Por Alexandre Figueiredo No dia 05 de agosto de 2008, o Centro Histórico da cidade de João Pessoa, capital da Paraíba, passa a ser considerado patrimônio histórico. Uma cerimônia realizada na Câmara Municipal de João Pessoa celebrou a homologação do tombamento. No evento, estava presente o presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Luiz Fernando de Almeida, representando não somente a instituição mas também o ministro interino da Cultura, Juca Ferreira, ausente na ocasião. Luiz Fernando recebeu dos parlamentares municipais o título de "Cidadão Pessoense", em homenagem à dedicação dada ao Centro Histórico da capital paraibana. Depois do evento, o presidente do IPHAN visitou várias áreas da cidade, como o próprio local tombado, além do Conjunto Franciscano, o Convento Santo Antônio e a Estação Cabo Branco, esta última um projeto do arquiteto Oscar Niemeyer que foi inaugurado no mês passado. Luiz Fernando de Almeida participou também da abertura da Fei...

A POLÊMICA DA HISTÓRIA DAS MENTALIDADES

Por Alexandre Figueiredo Recentemente, a mídia lançou mão da história das mentalidades para legitimar tendências e ídolos musicais de gosto bastante duvidoso. O "funk carioca", o pagode baiano, o forró-brega, o breganejo e outros fenômenos comerciais da música feita no Brasil sempre lançam mão de dados biográficos, de sentimentos, hábitos pessoais dos envolvidos, chegando ao ponto da ostentação da vida pessoal. Também são mostradas platéias, e se faz uma pretensa história sociológica de seus fãs. Fala-se até em "rituais" e as letras de duplo sentido - na maioria das vezes encomendada por executivos de gravadoras ou pelos empresários dos ídolos em questão - são atribuídas a uma suposta expressão da iniciação sexual dos jovens. Com essa exploração das mentalidades de ídolos duvidosos, cujo grande êxito na venda de discos, execução de rádios e apresentações lotadas é simétrico à qualidade musical, parece que a História das Mentalidades, que tomou conta da abordagem his...

SÍLVIO SANTOS E ROBERTO CARLOS: COMEÇO DO FIM DE UMA ERA?

Por Alexandre Figueiredo Símbolos de um culturalismo aparentemente de fácil apelo popular, mas também estruturalmente conservador, o apresentador Sílvio Santos e o cantor Roberto Carlos foram notícias respectivamente pelos seus desfechos respectivos. Sílvio faleceu depois de vários dias internado, aos 94 anos incompletos, e Roberto anunciou sua aposentadoria simbólica ao decidir pelo encerramento, previsto para o ano que vem, do seu especial de Natal, principal vitrine para sua carreira. Roberto também conta com idade avançada, tendo hoje 83 anos de idade, e há muito não renova sua legião de fãs, pois há muito tempo não representa mais algum vestígio de modernidade sonora, desde que mudou sua orientação musical a um romantismo mais conservador, a partir de 1978, justamente depois de começar a fazer os especiais natalinos da Rede Globo de Televisão.  E lembremos que o antigo parceiro de composições, Erasmo Carlos, faleceu em 2022, curiosamente num caminho oposto ao do "amigo de fé ...