Por Alexandre Figueiredo
A discriminação do senso crítico nos meios acadêmicos, nos quais a produção de teses de pós-graduação seguem uma lógica de pretensa objetividade, sob o pretexto de que a transmissão de conhecimento crítico é tido como "opinativo demais", é uma tendência que reflete duas tendências não muito conhecidas pelo público leigo.
Uma delas é a alodoxia cultural, que é uma abordagem na qual o discurso do Outro, analisado em um suposto problema fenomenológico, é legitimado como uma narrativa prestigiada, descrita na tese acadêmica de maneira acrítica, aliás, com o aspecto descritivo levado às últimas consequências, praticamente transformando a problemática em patrimônio.
A alodoxia cultural supervaloriza o sentido de alteridade, mas não pela capacidade nem ao menos como tentativa de compreender a natureza do Outro, e nem enxergá-lo de maneira realmente objetiva sob o menor risco de julgamentos preconceituosos, mas antes de apreciá-lo como um fenômeno exótico ou até mesmo mitológico, e abordá-lo de maneira sempre positiva e condescendente.
Portanto, a alodoxia cultural seria uma forma de prestigiar o discurso do Outro, a imagem da fenomenologia supostamente externa ao nível de compreensão do acadêmico em questão, mesmo o aluno de pós-graduação, mas também o próprio professor do corpo docente, através de artigos produzidos em periódicos acadêmicos em geral.
Essa imagem da fenomenologia, uma suposta problemática que foi desproblematizada pela narrativa da monografia, acaba sendo glorificada ou, ao menos, consentida, mesmo sob o verniz da imparcialidade narrativa ou da objetividade textual.
Mesmo que haja abordagens meramente subjetivistas - certa vez, Milton Moura atribuiu "espontaneidade" à pressa com que os grupos de "pagodão" baiano (o cenário musical de Salvador surgido a partir do sucesso do É O Tchan) - , que não raro destoam da verdadeira objetividade analística, o compromisso da alodoxia cultural que predomina nos meios acadêmicos brasileiros não é o de produzir conhecimento crítico, mas de narrativas legitimadoras de fenômenos abordados de maneira meramente expositiva.
Outra tendência é o positivismo funcionalista. Evita-se a abordagem crítica porque uma fenomenologia precisa, dentro de uma perspectiva positivista - aqui leva-se em conta o Positivismo de Auguste Comte - , ser "respeitada" e, portanto, apenas "descrita", como se uma monografia se limitasse apenas a explicá-la e não questioná-la.
Não se apontam causas nem efeitos da tal fenomenologia mas, em vez disso, apenas se descrevem, de maneira passiva e acrítica, aspectos postiivos e negativos de um fenômeno estudado para dar um aparato de "controvérsia".
Dessa maneira, quando se fala, por exemplo, do "funk", são mencionados processos de rejeição de alguns agentes sociais, como a tradicional aristocracia brasileira ou uma parcela de críticos musicais, que aparecem discretamente "demonizados" dentro da educada e comedida narrativa acadêmica.
A ideia inicial não é transformar monografias em panfletos, embora, sutilmente, isso acabe se tornando a sua consequência natural. Por isso, mesmo as críticas a abordagens repudiadoras de tal fenomenologia - que soam como "pedras no caminho" para um fenômeno conquistar a sua legitimidade social - precisam ser discretas e ligeiras, uma vez que a preocupação é mostrar o lado quase sempre positivo de um fenômeno em estudo.
REPRODUÇÃO DA REALIDADE
O fenômeno precisa ser legitimado porque ele se encontra, sob o olhar das elites docentes dos cursos de pós-graduação nas universidades, num processo de desenvolvimento positivista da sociedade, a utopia comtiana que, no Brasil, inspirou até a inclusão do termo "Ordem e Progresso" em sua bandeira.
A problematização pressupõe reconhecer retrocessos num fenômeno estudado, e isso se torna arriscado num país emergente como o Brasil e num meio carente de recursos financeiros, que são as universidades, vitimadas pela marginalização sócio-econômica que a Educação pública sofre no Brasil e pela mentalidade mercantilista que contamina as universidades particulares.
Ao problematizar uma fenomenologia, cria-se um quadro conflituoso, e isso vai contra a "paz econômica" que se observa, no Brasil, nos meios acadêmicos, jornalísticos, jurídicos etc, que no país estão a serviço de interesses privados de grupos detentores de privilégios econômicos.
Por isso é que as teses acadêmicas têm a preferência de se tornar apenas meros reflexos da realidade, reproduzindo padrões estabelecidos, principalmente quando se levam em conta interesses em jogo, já que empresas de entretenimento, entidades religiosas, veículos da grande mídia e outras instituições acabam influindo para que as monografias se tornem "chapas-brancas", quase como propagandas implícitas dos fenômenos estudados.
Na música popularesca, a tendência chapa-branca observada tanto na crítica especializada quanto nos documentários cinematográficos e nas monografias acadêmicas mostra o caso das empresas de entretenimento que envolvem ídolos relacionados a esse universo.
Assim, são esses empresários que patrocinam, ainda que de forma indireta, todo um processo de "abordagem objetiva" que serve como legitimação "científica" ou "imparcial" desses ídolos, trazendo um reforço ideológico para fazê-los sobreviver muito além dos modismos em que eles foram lançados.
E isso faz com que, se fossem brasileiros e vivessem hoje na relativa juventude, nomes como Umberto Eco, Jean Baudrillard, Guy Debord, Noam Chomsky e tantos outros, pela forma com que exercem o conhecimento crítico, que incomoda os interesses estratégicos dos corpos docentes que dominam as universidades em geral.
Aqui o que reina é a complacência e o jogo de interesses, uma "política da boa vizinhança" na qual "problemática" é apenas uma maneira de dizer, porque tudo o que se faz, através de monografias e outros recursos de narrativa textual "objetiva", é fazer crer que não há problema algum nas fenomenologias manifestas em nosso país.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.
SODRÉ, Muniz. A Sociedade Incivil. Mídia, iliberalismo e finanças. 1. ed. Petrópolis, Vozes, 2021.
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