Por Alexandre Figueiredo
As esquerdas estão pagando o preço determinado pelo brega-identitarismo que soterrou as causas trabalhistas e permitiu o sufocamento dos movimentos sociais, inclusive o golpismo político que atuou imediatamente para enfraquecer os sindicatos proletários e dificultar financeiramente as ações trabalhistas pela extorsão legalizada (trabalhadores que processam patrões por abusos trabalhistas, se perderem a causa, terão que pagar custos advocatícios não se sabe com que dinheiro).
A bregalização cultural, que foi a causa maior de uma elite de intelectuais badalados pelos meios esquerdistas, mas oriundos dos porões acadêmicos do PSDB, se firmou no imaginário das esquerdas através de um discurso vitimista, em que os fenômenos popularescos de grande sucesso eram descritos da forma coitadista, sob a desculpa esfarrapada do "preconceito". Meu livro Esses Intelectuais Pertinentes... dá detalhes sobre essa campanha de "combate ao preconceito" que iludiu as esquerdas no Brasil.
Com a bregalização, o imaginário das esquerdas se deteriorou, ao abraçar como "positiva" a deterioração cultural em que a mediocridade musical e comportamental, a vida em favelas, o trabalho degradante na prostituição e no comércio informal que mistura produtos piratas e contrabandeados com artigos usados, entre outros problemas, eram glorificados por uma elite de "esclarecidos" que julgavam serem estes os "privilégios" de uma "pobreza linda de um povo que sabe viver".
A carnavalização e a gourmetização da pobreza sócio-econômica e da degradação cultural chegaram ao ponto máximo nos últimos anos, quando a cultura popularesca se tornou praticamente totalitária - atualmente representada por estilos derivados do "sertanejo", "funk carioca", "pagodão baiano" e "forró eletrônico", como o "arrocha", a "sofrência", a "pisadinha", o "paredão" e o "funk ostentação", e pelo ultracomercialismo para exportação de Pabblo Vittar e Anitta - e a idiotização sócio-cultural contaminou completamente as redes sociais.
O Brasil viu nascer uma "realidade paralela" nas "bolhas digitais" do Facebook, WhatsApp, Twitter, YouTube, Tik Tok e, principalmente, o Instagram, a principal arena de uma multidão que briga com a realidade, com a lógica dos fatos e com a coerência das informações, tornando-se as redes sociais um reduto da fantasia, onde o que prevalece são sempre abordagens que sempre agradem àqueles que as produzem ou divulgam, por mais ilusórias e enganosas que sejam.
Mas se alguém imagina que o "mundo da fantasia" e dos terraplanismos conceituais contaminam tão somente a extrema-direita e a centro-direita e seus "pobretões" relacionados, supostamente limitados às ações manipulativas de seitas religiosas neopentecostais (como a Igreja Universal, a Assembleia de Deus e a Igreja Internacional da Graça de Deus), se engana completamente.
Afinal, as esquerdas são as que, ultimamente, mais estão trabalhando no âmbito da ilusão, em condição simétrica à da extrema-direita bolsonarista, a partir de aspectos formais opostos mas dentro de um modus operandi igual em ilusionismo triunfalista e em arrogância.
A polarização entre as esquerdas que se apoiam na candidatura do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva a um novo mandato - precipitadamente festejada por interpretar como "certeiras" situações pontuais como a absolvição de acusações lançadas pela Operação Lava Jato (como o triplex do Guarujá e o sítio em Atibaia) e especulativas como a suposta vantagem em pesquisas eleitorais - e a extrema-direita que está no poder através do presidente Jair Bolsonaro, cotado para reeleição, produzem um maniqueísmo que vai além dos rótulos "esquerda versus direita".
O maniqueísmo, aliás, cria uma nova base: a direita seria "raivosa", "indignada" e "resmungona", enquanto a esquerda seria "alegre", "conciliadora" e "conformadora". Esse contraste cria problemas ideológicos sérios, permitindo com que as esquerdas identitárias brasileiras, encarando o Brasil como se fosse a personificação real de uma novela das 21 horas da Rede Globo e seu estranhamente alegre núcleo de pessoas pobres, acolhesse o que eu defino como "brinquedos culturais da centro-direita".
Esses "brinquedos culturais" seriam um culturalismo conservador mas que, por simbolizar, em tese, conceitos de paz, alegria e solidariedade, envolvem referenciais que cairiam bem numa sociedade paternalista de centro-direita, com seus personagens próprios: de "médiuns espíritas" a funqueiros, passando por craques de futebol fanfarrões, ídolos bregas do passado e mulheres-objetos com pretensa inclinação feminista e pegando carona no suposto apoio à causa LGBTQIA+.
Os "brinquedos culturais" representam uma simbologia na qual o povo pobre é visto de uma forma ao mesmo tempo positivista e inferiorizada, dentro de uma ilusão de que as favelas ou mesmo as calçadas das ruas e os entornos de praças e viadutos seriam "habitats naturais" do povo pobre, através de uma suposta etnografia paternalista que o mito da "pobreza linda" trazido por intelectuais pró-brega - que denomino intelectualidade "bacana" - difunde sob a desculpa de "combater o preconceito".
DESPREZO ÀS CAUSAS TRABALHISTAS
Isso tudo transforma o Brasil num estranho paraíso, em que o imaginário das esquerdas atuais fez extinguir de fez a valorização das causas trabalhistas, subestimando, agora, as lutas dos operários, desempregados, camponeses, sem-teto e tribos indígenas.
Quanto aos sem-teto, as esquerdas identitárias vão dormir tranquilas diante da ação rara e isolada do padre católico Júlio Lancelotti e seus voluntários e colaboradores ou parceiros de causa - entre eles, o roqueiro punk João Gordo, dos Ratos do Porão - na assistência aos desabrigados permanentes, em vez de reforçar a ajuda que eles realizam. Pior: as esquerdas sucumbem à ilusão de que a bondade humana, em vez de ser um dom público, tornou-se um bem privativo da religiosidade humana, sendo uma atitude meramente institucional.
As esquerdas são as que mais investem num "mundo cor-de-rosa" difundido nas redes sociais. Elas perderam a noção realista do cotidiano, e a popularidade de Lula, antes um lúcido veterano a alertar para os perigos ameaçando o nosso país, se converteu numa fantasia em que o triunfalismo cego e o fanatismo em torno da figura mítica do petista, iludiram até o próprio ex-presidente.
Dessa forma, as esquerdas esqueceram sua vocação estratégica, jogaram fora sua vocação de analisar criticamente a sociedade - na medida em que passaram a ver o senso crítico como um "vício da direita ressentida" - e passaram a ver a vida humana apenas com alegações supostamente positivas, dentro de uma positividade tóxica que envergonharia os antigos esquerdistas de raiz, como envergonha os esquerdistas mais experientes que estão preocupados com o infantilismo da maioria das esquerdas.
Enquanto as causas trabalhistas foram deixadas de lado, apenas defendidas da boca para fora, sem muita convicção, as causas identitárias tornaram-se o princípio maior, se esquecendo os esquerdistas que o identitarismo social é um dos princípios do neoliberalismo econômico por diversos motivos, dos quais incluem a representatividade simbólica de supostos excluídos integrados ao projeto de poder e a ampliação de faixas de consumidores para produtos e serviços de grandes empresas.
Neste último caso, até mesmo redes como a Riachuelo, cujo dono Flávio Rocha é um dos militantes da direita empresarial conservadora, apelam para o identitarismo nas suas propagandas, incluindo pessoas gordas, negras e outros tipos "excluídos" como meio de forjar uma "diversidade para consumo".
A própria cultura popularesca não é um patrimônio das esquerdas e toda uma linhagem de ídolos popularescos que vão de Waldick Soriano a Pabblo Vittar, passando por axézeiros, breganejos, pagodeiros e forrozeiros bregas e, principalmente, funqueiros, é resultante de um culturalismo ue envolveu desde uma mídia radiofônica coronelista no interior do Brasil até a difusão certeira de animadores de auditório solidários à ditadura militar e ao presidente Jair Bolsonaro, como Sílvio Santos.
No entanto, as esquerdas persistem em coisas como encarar o "funk" como se fosse um "movimento de esquerda", mesmo quando eu mesmo constatei o envolvimento secreto de nomes como o DJ Rômulo Costa e o presidente da Liga do Funk, Bruno Ramos, com forças golpistas contra Dilma Rousseff (ver blogue Linhaça Atômica buscando pelos respectivos nomes).
E isso quando não cometem a gafe das esquerdas atribuírem o sucesso de axé-music "Xibom Bombom", do grupo As Meninas, como "inspirado" no livro O Capital, de Karl Marx. Eu mesmo pensei se isso não era ironia, mas a alegação era "séria", segundo as esquerdas.
Só que isso aponta uma incoerência, pois, não bastasse um dos autores da música ter sido o hoje falecido Wesley Rangel, produtor e um dos empresários mais ricos de Salvador, que compôs o sucesso com Rogério Gaspar, o grupo As Meninas recebia baixa remuneração nas apresentações, sofrendo na carne a ganância capitalista por trás de uma canção supostamente marxista. A cantora Carla Cristina, vitrine do grupo, recebia R$ 500 por apresentação. As demais, menos de R$ 100.
ESQUERDAS COM MÁ VONTADE DE FAZER PROTESTOS DE RUA
São tolices como classificar de "marxista" um sucesso de axé-music dos mais banais, feitos por uma esquerda que imagina que Odair José é um "cantor de protesto" - eu examinei as letras de suas músicas e vi que o som do ídolo brega é um bubblegum dos mais inócuos, destes que fariam corar de vergonha um verdadeiro cantor de protesto - , que fazem as esquerdas mergulharem num processo de idiotização que as mergulha numa crise que elas mesmas não percebem.
Diante da gravidade do governo Jair Bolsonaro - que ameaçou, em episódios recentes, realizar um golpe contra o Judiciário e o Legislativo - , as esquerdas infantilizadas se acomodam no recreio das redes sociais. Acovardadas, fingem para si mesmas um triunfalismo que não existe, o que faz elas se recusarem a fazer o que seria necessário para realmente reconquistar direitos e protagonismo.
Assim, as esquerdas se recusam a fazer protestos de rua de verdade, preferindo arremedos de protestos, que mais parecem micaretas políticas, e separar um evento de outro com intervalos grandes: 19 de junho, 24 de julho, 07 de setembro e, adiante, 15 de novembro, só pontuando os intervalos de manifestações pontuais que mal conseguem surtir efeito, devido a uma certa má vontade ativista.
Contagiado com este clima, Lula deixou de ser a voz sábia, lúcida e realista dos momentos em que esteve preso pela arbitrariedade farsante da Operação Lava Jato e dos momentos de cautela da pandemia da Covid-19 em 2020.
Ele mesmo se esqueceu que poderia ser o grande líder dos protestos populares no momento mais crítico do governo Jair Bolsonaro, mas, depois de um nada convincente discurso de 06 de setembro, que mais parecia uma repetição de clichês de promessas eleitorais, Lula "desapareceu" para reaparecer, depois, dando entrevistas anódinas a um canal, enfatizando um tema fora de contexto que é o aborto.
O próprio Lula parece imaginar, iludido com a popularidade que recebe nas redes sociais, que o Brasil "está bem" e que o petista está com tudo sob o seu controle. Guiado pela arrogância das esquerdas que o cultuam, o próprio Lula deixa de ser estratégico e passa a se preocupar com banalidades, como mostrar uma suposta forma física cultivada por ginásticas para consolidar seu sucesso nas redes sociais, alimentado por circunstâncias artificialmente favoráveis, como a absolvição das acusações da Lava Jato e o suposto favoritismo nas pesquisas de intenção de voto.
Isso tudo é decorrente da visão ilusória das esquerdas nos últimos vinte anos, motivada pelo maniqueísmo fácil de que o esquerdismo é "alegria" e o direitismo é "raiva", que provoca acomodação dos esquerdistas e permite com que o neoliberalismo se sobressaia diante de sua reprovação ao senso crítico que as forças de esquerda, equivocadamente, corroboram, mesmo sob o risco de serem prejudicadas por isso.
E elas são. Enquanto elas se iludem no mundo encantado do Instagram e de outras plataformas de redes sociais, achando que Lula está vencendo todos os obstáculos, no mundo real temos o empoderamento perigoso de Jair Bolsonaro com suas "caneladas" e seus esforços de estar sempre na mídia. Uma comparação exata é que, se as esquerdas não aguentam ir para as ruas em sábados consecutivos, num mesmo Sete de Setembro Bolsonaro esteve em Brasília e depois foi para o protesto em São Paulo.
Mas até mesmo a terceira via, considerada insossa e alvo de chacotas das esquerdas festivas e arrogantes, está começando a aparecer, e estamos ainda em setembro de 2021, apenas um pouco mais de um ano para as eleições presidenciais. Muita coisa irá acontecer e se as esquerdas acham que ir para as ruas com mais frequência iria banalizar os protestos populares, mas o que está banalizando mesmo é a conversa de que Lula "está vencendo todas as batalhas", o que faz os brasileiros cansarem a ponto de fazer renascer o antipetismo que irá colocar a terceira via no poder.
Desse modo, a ilusão das esquerdas festivas atuais de que a "alegria do povo brasileiro" irá desligar os canhões, revólveres e fuzis não encontra sustentação prática, enquanto Jair Bolsonaro tem para si os recursos bélicos e financeiros para se manter no poder, e a terceira via tem o mercado como seu patrocinador mais certeiro. Sinal de que as esquerdas estão perdidas ao investir no maniqueísmo fácil que coloca a "alegria" no seu lado e a tristeza e a raiva na terceira via e no bolsonarismo.
FONTES: Blogue Linhaça Atômica, Brasil 247, Diário do Centro do Mundo.
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