O JORNALISTA MUSICAL (E DE OUTRAS ESFERAS CULTURAIS) ADOTA UMA POSTURA COMPLACENTE À MEDIOCRIDADE REINANTE.
Por Alexandre Figueiredo
O chamado senso comum acha que o Brasil de hoje está num período culturalmente próspero, tido como o melhor de toda a História. Aparentemente, há espaços para várias expressões culturais, para vários estilos musicais, teatrais, literários etc, há várias vozes e várias narrativas em trânsito livre. Mas será mesmo que isso é verdade?
Infelizmente, não. Embora seja fato que existam diferentes manifestações culturais, juntando diversos locais, diversas expressões, diversas épocas e referenciais de diversos países apreciados no Brasil, inclusive os referenciais culturais próprios, a questão dos espaços de expressão, que priorizam fenômenos comerciais e culturalmente medíocres, atestam para uma crise cultural e não para uma prosperidade.
E por que muitos falam nessa prosperidade, que na prática não existe? Devemos observar duas linhas de percepção: uma é a ilusão de que a movimentação plena das redes sociais e de, aparentemente, diferentes vozes disputando narrativas, esteja dando produtividade aos fatos socioculturais. Outra é a experiência solipsista de analistas que, por terem acesso a um gigantesco e variado acervo de referências culturais diversas, tem a falsa impressão de que vivemos o melhor de todos os momentos.
No primeiro caso, a plena atividade das redes sociais dá um caráter de aparente dinamismo, em que a coletividade e seus diversos indivíduos interagem em diversos temas, o que dá a crer de que a sociedade está culturalmente bastante produtiva, e a opinião pública é uma usina de produção de mensagens e comentários dos mais diversos.
No segundo caso, a facilidade com que os chamados "especialistas", de uma postura mais "isenta" em relação à fenomenologia sócio-cultural de hoje, pode conseguir bens culturais mais relevantes - como, por exemplo, a poesia de Charles Baudelaire e o jazz de Nina Simone - podendo comprá-los em lojas estrangeiras existentes na Internet.
O solipsismo desses especialistas, complacentes com o universo de subcelebridades e fenômenos popularescos que o público comum aprecia, permite essa ilusão da diversidade, que o discurso do "combate ao preconceito", notabilizado pelas posturas provocativas dos intelectuais "bacanas" - defensores da bregalização cultural, analisados no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes... - , e agora defendido por intelectuais mais "isentos", traz uma aparência mais verossímil.
Afinal, embora a chamada "cultura de massa" exerça uma força monopolista na maioria dos espaços de apreciação cultural da sociedade brasileira, existe o discurso que não apenas sugere a aparente existência de "muitas vozes e muitas narrativas" como tenta passar pano na mediocridade dos fenômenos popularescos, alguns travestidos de "independentes", sob a desculpa de "perder o preconceito" ao forçar um reconhecimento artístico-cultural em fenômenos comerciais.
GOURMETIZAÇÃO
Com a radicalização de uma tendência que cresceu nos anos 1990, que é o suposto "combate ao preconceito" como pretexto para aceitar até mesmo os fenômenos culturais de gosto duvidoso - como a música popularesca e a literatura analgésica que se distancia de qualquer compromisso verdadeiro com o Saber - , a tendência da chamada opinião pública e de seus pensadores mais empenhados é evitar o senso crítico, adotando uma atitude complacente em relação a tudo.
O pretexto é a compreensão da alteridade, como se tendências de gosto bastante duvidoso tivessem seu "valor relevante" em outros contextos. Até aí, nada demais. O problema é que a apreciação dessa ideia é compreendida sem as tensões que estão por trás de muitos fenômenos do chamado "entretenimento", palavra que é erroneamente confundida com "cultura".
Será que, por exemplo, o grupo musical de maior sucesso no momento não é controlado por empresários gananciosos? Será que uma subcelebridade não explora uma visão mentirosa e canastrona para se tornar popular? Será que ritmos como o samba não estão sendo honrados, como legado cultural, por conjuntos comerciais que supostamente atuam em seu nome, como o chamado "pagode romântico"?
E os "livros para colorir"? Numa época em que revistas e jornais impressos estão sendo extintos e se limitando a serem páginas da Internet, é um desperdício que editoras usem suas gráficas para obras tão supérfluas, que na melhor das hipóteses poderiam ser disponibilizadas para quem gosta delas através de um serviço de assinatura na Internet. Seria uma economia de papel e menos trabalho inútil nas gráficas, porque a impressão seria da escolha da própria pessoa, que pode até selecionar as páginas que quer imprimir.
Questões assim não aparecem e, para piorar, existe ainda a gourmetização da música comercial popularesca dos anos 1980 e 1990, que, a pretexto de ser mais antiga e, supostamente, mais elaborada, é tratada por setores influentes da opinião pública como se fosse "genial" e até "sofisticado".
Nomes como Michael Sullivan, Chitãozinho & Xororó, Alexandre Pires, Grupo Molejo, É O Tchan, Art Popular e seu vocalista Leandro Lehart, juntamente com outros mais antigos como Gretchen, estão sendo vendidos como uma pretensa vanguarda cultural, quando eles integram o cenário comercial da música brega e, em termos de expressão artístico-cultural, soam bastante superficiais.
Mas num cenário em que defensores do "funk", ritmo popularesco marcado pela blindagem de setores influentes da chamada opinião pública, é avaliado conforme o juízo de valor solispsista de certos intelectuais, que, como quem vê cabelo em ovo, atribui aos funqueiros referenciais culturais que só existem na imaginação desses intelectuais, expressos em comparações tendenciosas e pretensamente técnicas e musicólogas, então a situação se complica.
A gourmetização do culturalismo pop ou brega, do qual a glamourização do pop comercial sul-coreano, o k-pop, é um exemplo típico, mostra o quanto a cultura de hoje não está bem e que a relativização da baixa qualidade dos fenômenos culturais comerciais - não só musicais, como também de outras esferas, como os reality shows que servem de celeiros para subcelebridades - , sob a desculpa de "reconhecer o outro", não resolvem as questões acerca de aspectos duvidosos desses fenômenos.
POR QUE O CENÁRIO CULTURAL ESTÁ RUIM?
Os interesses comerciais estratégicos, o poderio da mídia que difunde esse culturalismo pop ou brega, tudo isso é ignorado, e, mesmo numa sociedade claramente hipermidiatizada e hipermercantilizada, na qual o uso de redes sociais praticamente dominou a vida das pessoas, tudo é visto como se fosse "natural" como o ar que respiramos.
As "lacrações" da Internet são fenômenos equiparados ao hit-parade e ao agenda setting, seleções temáticas e fenomenológicas de caráter comercial que marcam o gosto de um grande público. Mas as lacrações, assim como outros fenômenos como os trend topics, são tidos como pretensas vanguardas, pelo suposto caráter novidadeiro da repercussão de certos fenômenos e temas nas redes sociais.
A ignorância do poder midiático ocorre de tal forma que, ao mesmo tempo, se superestima a aparente decadência de veículos como a Rede Globo e o SBT, ignora-se o poder regional de veículos como a Rede Brasil Sul (RBS), do Rio Grande do Sul, e o Grupo Metrópole, na Bahia, e despreza-se a força da nova grande mídia representada pelas empresas de Big Tech, como o Facebook de Mark Zuckerberg, dono também do Instagram e do WhatsApp.
Esse desprezo aponta para um dado grave nas redes sociais, que é o fato de que, por trás da aparente gratuidade de seus serviços, há a condição de que os usuários desses serviços são as mercadorias, enquanto as empresas anunciantes é que são clientes dos provedores das redes sociais.
A transformação das pessoas em mercadorias contradiz a falsa impressão de que tudo é "fluente" e "natural" como o ar puro de um bosque e que os fenômenos comerciais do culturalismo pop e brega são "vanguardistas" ou até mesmo "alternativos" e "indie".
O superficialismo cultural e a indigência intelectual, tão presente em textos mal escritos, ideias incoerentes e atitudes idiotizadas nas redes sociais, como o hedonismo desenfreado e a idiotização no tratamento de situações como a vida amorosa, revelam o quanto a situação cultural no Brasil não está boa. O Instagram, um dos "paraísos" desse "ótimo momento cultural" em que vivemos, é conhecido pela ilusão de um "mundo cor-de-rosa" que contrasta com a realidade cruel e complicada de hoje.
Em 2018, permitiu-se que uma figura sem virtudes minimamente razoáveis sequer, Jair Bolsonaro, fosse eleito presidente da República. Só isso demonstra o quanto o Brasil está culturalmente ruim, do contrário que o julgamento de valor condescendente dos intelectuais e jornalistas culturais "mais isentos" insiste em sugerir.
A chamada "infantilização da humanidade" traz o tom dessa crise cultural não assumida, por trás dessa megastore que a aparente diversidade cultural apresenta para os intelectuais e jornalistas "isentões", muitos deles iludidos com a mobilidade dos fenômenos socioculturais existentes.
Além disso, as "diferentes narrativas, vozes e espaços" indicam apenas o devaneio desses intelectuais e jornalistas, porque eles têm acesso a bens culturais mais expressivos e relevantes. Só que, fora desse megastore ao "ar livre" (ou à "rede livre") de quem tem dinheiro e vive no conforto de seus apartamentos, vemos que a mediocridade cultural disputa espaços com a cultura mais expressiva, sob prejuízo desta última.
A música brega-popularesca, sob a desculpa de "conquistar seus próprios espaços", busca ocupar os espaços da MPB, que acaba restringindo sua influência mesmo para públicos mais específicos. O que resta de MPB hoje em dia são revivais de tendências dos anos 1960 e 1970 e novas gerações mais inócuas e musicalmente mais superficiais, se comparados com os nomes que se projetaram nos antigos festivais da canção entre 1966 e 1968 e da geração de 1970-1976.
Ver que Michael Sullivan, por exemplo, um ferrenho defensor do comercialismo da música dos EUA, a ponto de querer destruir a MPB, agora ser visto como "MPB de vanguarda", é assustador, ainda mais com o apoio de jornalistas, intelectuais e blogueiros "sérios" que veem no compositor e produtor um suposto gênio, ignorando o lado traiçoeiro do "fabricante de sucessos" que comandava cantores e grupos com mão de ferro, nos anos 1980.
O Brasil está culturalmente doente e isso se reflete nesse espírito de complacência e condescendência de intelectuais "isentos", que, no que se refere ao apoio aos fenômenos popularescos, não difere muito dos intelectuais "bacanas" e sua provocatividade.
Intelectuais também podem servir a interesses comerciais - que os permitem, entre outras coisas, viajar de graça para ver festivais de música em cidades distantes - e serem ideólogos de processos sócio-culturais nocivos e, no Brasil de Jair Bolsonaro, a moçada "isenta" acaba se tornando propagandista de fenômenos culturais duvidosos, usando um discurso de "combate ao preconceito" que só serve para mascarar expressões já preconceituosas da suposta cultura popular de hoje.
FONTES: Portal G1, Carta Capital, Caros Amigos, Universo On Line, Blogue Linhaça Atômica, Blogue Mingau de Aço.
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