Por Alexandre Figueiredo
Virou moda gourmetizar a mediocridade musical dos anos 1990. A música romântica piegas de Sullivan & Massadas agora é tida sob o pretenso rótulo de "MPB sofisticada". Leandro Lehart, do Art Popular, se autoproclama "artista alternativo". Raça Negra e Molejo viraram pretensos ícones cult. Também são tidos como "sofisticados" Alexandre Pires e Chitãozinho & Xororó.
Embora a maioria dos ídolos musicais gourmetizados remeta ao início dos anos 1990 ou à segunda metade dos anos 1980, também há exemplos na segunda metade da década que hoje viraram pretensos ícones cult: Joelma, É O Tchan, até mesmo o inexpressivo Tchakabum. Entre os mais antigos, Gretchen, que iniciou carreira no final dos anos 1970, e Odair José, que se lançou na segunda metade dos anos 1960. E tem ainda Wando, o falecido ídolo brega também beneficiado pela pretensa "cultura vintage".
Por que, de repente, a bregalização musical passou a ser gourmetizada a ponto de se ver vanguarda em retaguarda, a partir de uma narrativa construída habilidosamente para combinar vitimismo comercial, quando os ídolos foram supostos alvos de uma "raiva coletiva da crítica especializada", e a glamourização de sua simbologia, pegando carona em clichês do identitarismo cultural.
Evidentemente, eles não se transformaram em vanguarda e nem suas linguagens musicais mostraram algo que acrescentasse à relevância artística da música brasileira. Mesmo a suposição de que eles viraram "preciosidades ocultas" da Música Popular Brasileira é uma falácia muito bem construída e com forte apelo emocional, por mais que sua narrativa apresente um aparato de objetividade e racionalidade.
MEDIOCRIDADE ORGANIZADA E PROFISSIONAL
E por que, mesmo quando parte da opinião pública admita que alguns fenômenos popularescos mais recentes, como o "sertanejo universitário", e nomes "canceláveis" pelas redes sociais, como o funqueiro Latino e a cantora de axé-music Cláudia Leitte, a música brega-popularesca, pelo menos os seus ícones mais veteranos, é alvo de uma aparente unanimidade favorável, como se seus ídolos fossem "gênios visionários"?
Em terra de cego quem tem um olho é rei e a música comercial passa por uma deterioração tão grande que seus intérpretes precisam caprichar no marketing e pegar carona em causas identitárias, sobretudo se promovendo às custas da comunidade LGBTQ (agora LGBTQIA) ou mesmo por alguma "carteirada" étnica, como no caso dos asiáticos do pop sul-coreano, o k-pop, cujo maior ícone é o conjunto vocal BTS.
Mas mesmo esse pop comercial é gourmetizado por um público de mileniais (jovens nascidos a partir dos anos 1990 que radicalizam a degradação cultural marcada pela geração pós-1978 e pré-1990, os pré-mileniais) que, de tão adentrados na bolha das redes sociais, se recusa a perceber que vive numa sociedade hipermidiatizada e mercantilista.
Os mileniais imaginam que tudo que acreditam, pensam, agem e falam vem como o ar que respiramos, e, num meio em que o terraplanismo informativo das fake news ganha legitimidade, é comum entre os mileniais e pré-mileniais tentarem inverter a realidade e chamar artistas não-comerciais de "comerciais" e ídolos comerciais de "não-comerciais".
A própria mídia musical contribui, mesmo sem querer, para essa inversão. Enquanto denuncia grandes nomes da MPB autêntica e do rock clássico dos anos 1960 a 1980 no que se refere a problemas ligados a direitos autorais, sugerindo um hipotético comercialismo, a mídia musical noticia pretensos atos de engajamento social que envolvem ídolos do pop adolescente - alguns antes envolvidos com vícios em drogas - , dando a falsa impressão de que eles "é que são os libertários".
O suposto ativismo relacionado ao k-pop - cujos bastidores revelam uma rigidez comercial de ídolos jovens comandados por empresários ambiciosos - é ilustrativo dessa inversão discursiva. Fãs do k-pop articulando (provavelmente, sob a orientação de algum adulto por trás) atos ativistas, contrastando com um Eric Clapton surtando e falando mal da vacina contra a Covid-19, servem para reforçar essa falsa impressão.
É claro que, nesse caso, está em jogo é o narcisismo do gosto cultural dos mais jovens, que geralmente se consideram os "donos da verdade" naquilo que consomem e acreditam em seu restrito universo sócio-cultural. Para eles, os grandes nomes da música não passam de "meras instituições burocráticas", e, por serem artistas mais antigos, eles não expressam qualquer identificação para o imaginário dos mileniais, que preferem o superficialismo palatável de seus ídolos do momento, sejam o k-pop, o pop identitarista, e, no Brasil, o hip hop mais convencional, o "funk", o "sertanejo" e a "pisadinha".
Mas no caso dos ídolos veteranos popularescos, há ainda o complexo de superioridade marcado pela "carteirada" do sucesso comercial, que, de maneira contraditória, coloca vários de seus ídolos (alguns, arrogantes, não aceitam críticas à mediocridade do seu talento) na pretensão de se acharem "geniais", sob a desculpa de que "lutaram muito para atingir o que conquistaram".
E por que a música brega-popularesca dos anos 1990 passou a ser vista como uma pretensa unanimidade positiva por setores influentes da opinião pública, a ponto de receber mais elogios do que críticas negativas e serem objeto de um saudosismo glamourizado que nem era tão glorioso assim, mas que as narrativas tentam fazer muita gente crer que havia sido?
A justificativa mais provável dessa gourmetização da mediocridade musical dos anos 1990 está no fato de que seus intérpretes desenvolviam um certo profissionalismo, ainda que seus talentos fossem sofríveis. Os discos tinham uma concepção mais caprichada, com arranjos mais corretos, estética mais organizada e a técnica instrumental era também correta.
Nos anos 1990, os ídolos brega-popularescos encontraram um suporte técnico, estético e publicitário que, nas grandes gravadoras, foi usado para os cantores de MPB na década anterior. Assistentes de arranjadores de MPB dos anos 1980 passaram a fazer arranjos musicais e vocais para os ídolos neo-bregas (brega falsamente sofisticado).
Músicos de bandas respeitáveis como The Jordans - histórica banda instrumental do cenário pré-Jovem Guarda dos anos 1960 - e Casa das Máquinas - ícone do rock clássico brasileiro dos anos 1970 - passaram a tocar para nomes como o Molejo e a dupla Zezé di Camargo & Luciano.
Além disso, a estética visual, que envolvia desde um banho de loja, de ginástica física e um treinamento musical que deixava os ídolos popularescos musicalmente tão "corretos" quanto calouros de reality shows musicais, fazia com que a música brega-popularesca se tornasse aceita por um público mais elitista.
Até as capas de discos imitavam a estética da MPB pasteurizada dos anos 1980: o cantor Daniel, remanescente da dupla breganeja João Paulo & Daniel, se inspirou na emepebista Simone (codinome artístico de Simone Bittencourt de Oliveira) para usar sua própria assinatura como logotipo.
CRÍTICA "ISENTA"
Outro fator da gourmetização da música brega-popularesca dos anos 1990, além do fato de serem fenômenos já antigos - já se passaram cerca de 25 a 30 anos, o que dá margem a uma tendenciosa exploração saudosista - , é todo o suporte comunicativo que buscava "mudar a imagem" dos ídolos brega-popularescos, que até 2001 eram alvo de críticas pesadas por parte da opinião pública.
Depois que, durante um breve período, entre 2002 e 2014, se ascendeu uma geração de intelectuais defensores da bregalização cultural, usando como pretexto o "combate ao preconceito" - esta fase é o tema do meu livro Esses Intelectuais Pertinentes... - , o senso crítico que avaliava a mediocridade da música brega-popularesca entrou em declínio, e, depois dos exageros provocativos da intelectualidade pró-brega, o caminho foi aberto, agora, para os chamados "isentões".
Os "isentões" são pensadores ou jornalistas da música brasileira que, em que pese acolherem tendências autênticas, sendo capazes de escrever brilhantes e respeitáveis ensaios sobre nomes como João Gilberto, Pixinguinha, Elizeth Cardoso, Milton Nascimento, Cartola e até Heitor Villa-Lobos, adotam uma postura complacente aos ídolos da música brega-popularesca.
A pretensa imparcialidade em colocar, sob o mesmo peso, prós e contras de um ídolo popularesco, mas frequentemente dando um peso mais favorável, faz com que o chamado crítico musical "isento" refletisse o estado de espírito de uma mediocridade glamourizada, de bordões como "gente como a gente" que se baseiam na ilusão de uma "perfeição imperfeita", de uma aparente neutralidade de valores e conceitos sócio-culturais.
Com isso, sob o pretexto de "dar maior atenção" aos aspectos técnicos e ao "esforço" dos ídolos popularescos em lançar seus discos e conduzir suas carreiras, a crítica musical "isenta" também está de acordo com uma norma dos meios acadêmicos brasileiros, que, diferente do que ocorre na Europa, discrimina o senso crítico, confundido com "opinião", fazendo com que as monografias de pós-graduação sejam verdadeiras "passadoras de pano" nas problemáticas abordadas nas teses.
E isso contribui muito para que não somente a bregalização musical mais antiga seja alvo de uma narrativa gourmetizada, como ela passa a ganhar um suporte "objetivo" de intelectuais e jornalistas que adotam uma postura complacente, que é revestida por um discurso "técnico" que, no fundo, não é mais do que desculpa para evitar críticas negativas.
Mesmo sob o risco de se levar gato por lebre, quando vários ídolos brega-popularescos do passado se vendem sob o falso rótulo de "MPB injustiçada", o discurso pretensamente objetivo lhes serve de blindagem para uma mediocridade que, em si, é vista como um "patrimônio" do Brasil, a partir do ideal do "complexo de vira-lata", que é a doutrina dessa mediocrização glamourizada que impede o nosso país de adotar um desenvolvimento social, cultural, econômico e político de verdade.
FONTES: Folha de São Paulo, Portal G1, Jornal do Brasil, Blogue Linhaça Atômica, Blogue Mingau de Aço.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.
Comentários