Por Alexandre Figueiredo
Michael Sullivan, "MPB de vanguarda"? Gretchen, "ícone cult"? Leandro Lehart, "artista alternativo"? De repente, o crescimento extremo da música brega-popularesca nos últimos 50 anos, que atingiu níveis ainda maiores na medida em que o tempo passa, criou uma falsa impressão de que ela é a "música brasileira" por excelência e que, por isso, nomes veteranos se acham no direito de se autoproclamarem contrários ao comercialismo que os consagraram.
É como quem cospe no prato em que comeu, e, no desespero de tentar voltar à carreira, apela para pretensões fora da realidade. Que as pessoas podem mudar, é verdade, mas não a ponto de considerarmos que a vida seja uma "casa da Mãe Joana" de supostos arrependidos ou de arrivistas que, sem se arrependerem do que fizeram, apenas mudaram suas estratégias e atitudes como quem troca de roupa.
A gourmetização da cultura popularesca, que se deu desde a atuação da intelectualidade "bacana", descrita no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes..., superou esta etapa, na medida em que os intelectuais pró-brega mudaram de assunto. Mas hoje, no lugar deles, há críticos e intelectuais mais competentes, que até priorizam expressões musicais de qualidade, mas adotam uma atitude complacente com os ícones popularescos, às vezes até com ingênuo apoio, por boa-fé.
Ela segue a lógica da gourmetização do hit-parade, na qual a visão comercial das paradas de sucesso retomou a superioridade que havia perdido na década de 1980 e que busca glamourizar os sucessos musicais mais antigos, embarcando numa nostalgia tendenciosa, em que o passado é tratado como se fosse uma época excepcional, independente de qualquer contexto ou critério a ser levado em conta.
Os casos de Michael Sullivan e Chitãozinho & Xororó são ilustrativos. Nomes comerciais com talento medíocre, os dois vieram de um tempo em que a mediocridade musical era mais organizada e, de certa forma, "lapidada" por um trabalho de arranjadores e músicos de apoio mais profissionais.
Os dois gozam de uma reputação desmerecidamente elevada, por suas músicas serem associadas a memórias saudosistas e não representarem o nível das "baixarias musicais" que fazem sucesso hoje. No entanto, é notório observar, com atenção, as canastrices musicais do cantor e da dupla, dotadas de um cancioneiro romântico banal, piegas e primário tanto nas letras quanto nas melodias, enquanto a pretensa sofisticação se deve à ajuda de arranjadores e músicos de apoio que criam uma "cosmética" para tais canções.
Em outras palavras, havia um profissionalismo e uma cautela nas escolhas temáticas das letras cantadas, o que dá a falsa impressão de que o medíocre de outrora é hoje um "gênio indiscutível". Se a mediocridade seguiu sucessivos retrocessos nas expressões musical e comportamental, as pessoas imaginam que o medíocre do passado, por ser "melhor" que o medíocre do presente, pode ser considerado "genial" por conta de alguma lembrança saudosa da vida das pessoas.
BANALIZAÇÃO DA NOSTALGIA
Conceitos como "nostalgia", "saudade" e "vintage" surgem com a banalização da ideia do passado. Com um presente marcado por incidentes desagradáveis, como a tragédia da Covid-19, o saudosismo vira um fenômeno desenvolvido sem o menor critério, medido pela memória subjetiva de cada um, que, de maneira exagerada, calcula o valor de cada época pela sua respectiva experiência pessoal.
Eventualmente, o mercado saudosista chega ao nível da imbecilização, como foi no breve projeto Ploc 80, em que a ideia de "anos 80", durante parte da década de 2000, foi tão distorcida que mesmo fenômenos dos anos 1950, como o automóvel Cadillac, dos anos 1960, como os desenhos animados Flintstones e Manda-Chuva, ambos de Hanna-Barbera, e dos anos 1970, como o seriado mexicano Chaves, eram incluídos no balaio de gatos do saudosismo oitentista.
A campanha do "combate ao preconceito" de uma elite de intelectuais pró-brega que, entre 2002 e 2014, defendeu o crescimento da bregalização cultural até em espaços considerados de "alta cultura", abriu espaço para toda a complacência com a mediocrização artístico-cultural dominante, de tal forma que o mainstream musical brasileiro, de tão gigante, permite que nomes sob risco de esquecimento apelem para pretensões acima de suas limitações culturais.
É o caso de Michael Sullivan que, mesmo denunciado por Alceu Valença por ter ameaçado destruir a MPB, a usou para retomar a carreira como cantor laico, depois que assumiu uma carreira paralela de cantor gospel, tendo o ex-prefeito do Rio de Janeiro, o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcello Crivella, como um dos parceiros nas composições.
Por sorte, existe hoje a gourmetização da mediocridade artístico-cultural, quando mais antiga, por ser ela associada a tempos considerados "mais vantajosos" do que a atualidade, como em toda onda saudosista. E aí Sullivan, como outros nomes do brega mais cosmético, como Chitãozinho & Xororó e Alexandre Pires, atingiram uma "respeitabilidade" que faz com que esses nomes da música brega pareçam "MPB de verdade" diante das "pisadinhas" que se multiplicam hoje em dia.
Há vários fatores que também levam a essa onda de pretensiosismo, como a ilusão de que as pessoas estão mais informadas só por usarem a Internet durante a maior parte do dia. Isso cria uma falsa impressão de inteligência mais apurada e de uma cultura mais desenvolvida, e atualmente existe até mesmo a mania de promover o mainstream como uma suposta transgressão cultural.
As pessoas então brincam de "cultura alternativa" nos quintais delimitados do mainstream. Criam falsos fenômenos cult através da lacração de assuntos na Internet, principalmente nos trend topics, a lista dos dez assuntos de destaque do Twitter. O modismo se retroalimenta como se fosse um anti-modismo, e participar desse fenômeno faz com que as pessoas tenham a falsa impressão de estarem na vanguarda, por mais que essa adesão seja uma atitude banal.
E aí vemos o quanto a cantora Gretchen, ícone da música brega dos anos 1970, foi promovida a um pretenso ícone cult, alimentada tanto pelo saudosismo infantilizado do Ploc 80 quanto pelo "combate ao preconceito" dos intelectuais pró-brega. E, cobiçando as "viradas culturais", o cantor do Art Popular, ícone do comercialíssimo "pagode romântico", Leandro Lehart, quer se vender como "artista alternativo" sem saber que seus critérios adotados não chocam mais o comercialismo vigente.
No hit-parade estrangeiro, o comercialismo musical é justamente marcado pela aparente excentricidade, pelos escândalos e até por casos antes restritos ao rock, como o uso de drogas, que quase tirou a vida da cantora Demi Lovato. A atuação do produtor, empresário e compositor Max Martin no pop estadunidense contemporâneo permite que o mainstream musical seja caraterizado justamente por referências que antes pareciam assustadoramente transgressoras.
Numa sociedade mercantilizada e midiatizada, a transgressão é apenas uma mercadoria a mais, que em nenhum momento causa incômodo ao "sistema", muito pelo contrário. O "sistema" em geral e o comercialismo musical em particular gostam da "cara feia" de nomes como Leandro Lehart e das poses vitimistas de Michael Sullivan.
E as redes sociais, controladas por grandes corporações da Tecnologia da Informação, coordenam todo esse recreio da lacração, o que significa que o mainstream está mais forte do que nunca, acolhendo para si todo um aparato de referências supostamente contrárias ao mesmo.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.
FONTES: Blogue Mingau de Aço, Blogue Linhaça Atômica, Carta Capital, Caros Amigos, Folha de São Paulo, O Globo.
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